terça-feira, 14 de abril de 2009

:: Anna Karenina ::

Greta Garbo como Anna Karênina

TOLSTÓI
"Anna Karênina"

:: NOTAS DE LEITURA ::


Ah! Foi de longe um dos melhores livros da minha vida, lido com ardor, com fome, com pressa, com amor! Eu já manjava da manjadíssima história de Anna Karenina, ainda que resumida, distorcida e mutilada. Até porque o enredo é tão amplamente conhecido que muita gente se abstêm de ler o livro com este pretexto péssimo: “ah, mas eu já sei o que vai acontecer!” Pois eu também já sabia, como todo mundo, em linhas gerais, o que “acontecia”. Mas agora percebo que o que eu tinha eram apenas pequenas migalhas de informação sobre as aventuras sentimentais da desventurada Ana Karenina, uma das adúlteras mais famosas da história da literatura, que não chegavam nem perto de passar uma idéia adequada da estatura dessa inesquecível personagem: uma lady da elite russa que abandona-se a uma avassaladora paixão extra-marital e é levada pelo trem desgovernado do destino a suicidar-se nos trilhos da desilusão.

Agora sei o quanto eu perdia só conhecendo o enredo através de filmes e de-ouvir-dizer - e olha que poucos romances clássicos foram mais adaptados para o cinema e para a TV do que este: contam-se pelo menos umas 15 versões, inclusive algumas de muito luxo, com Ana Karenina encarnada na telona por vedetes hollywoodianas de primeira estirpe, de Greta Garbo a Vivien Leigh... Mas claro que é impossível, em 2 ou 3 horas de película, realizar uma transposição que chegue aos pés do gigantesco e monumental romance de Tolstói: a leitura deixa uma cicatriz muito mais profunda na nossa carne, coração e memória do que quaisquer versões de 2a linha de Anna Karenina. E, aliás, pra quê ficar nos xerox ao invés de agarrar a gema genuína?!

Além disso, obviamente o livro não se reduz a narrar as façanhas e desventuras sentimentais do triângulo amoroso Ana-Vronski-Karênin, sendo que o casal Liêvin e Kitty tem um peso e uma importância enormes no romance, sendo injustamente omitidos e excluídos das adaptações pro cinema e de muitos comentários que se faz sobre a obra. Eu, pessoalmente, acho Liêvin um personagem tão marcante (se não for mais!) quanto Ana! É em Liêvin, uma espécie de alter-ego de Tolstói, que se concentram os grandes dramas metafísicos (a batalha para compreender a morte, os dilaceramentos do aguardo do filho, a busca pelo sentido da vida), as grandes metamorfoses sentimentais (da idealização à dor da rejeição, do isolamento ao reencontro do amor, do desejar-em-vão à aventura sem certezas do casamento...) e as discussões políticas mais relevantes que recheiam o romance (com toda a análise da situação agrária da Rússia, dos movimentos sociais revolucionários e do combate entre diferentes concepções sobre os camponeses e os modos ideais de organizar o trabalho...). Faço aqui, pois, ainda com a memória fresca e o coração ainda pulsando sob o efeito da leitura, algumas impressões e viagens sobre Anna Karenina, esta magistral obra-prima!


* * * * *

[ IDEALISMO, DESENCANTO E REENCONTRO: Liêvin e Kitty ]

Somos apresentados à Liêvin quando ele se encontra em estado de encantamento: enternecido, repleto de esperanças, sonhando mil felicidades radiosas que viverá junto à Kitty, a princesinha encantada que ele pretende pedir em casamento, trêmulo de temor e de desejo! No princípio, a idealização é o que domina a sua percepção da realidade – uma realidade vista através das míopes lentes do amor, que distorcem tudo para melhor!...

Quando Kitty vai a ele, é o Sol que se aproxima - e não se olha direto nos olhos do Astro-Rei sem calcinar as retinas! Onde quer que ela esteja, este lugar torna-se um "santuário inacessível" e o sorriso dela "o transporta a um mundo de magia, em que se sente enternecido e dulcificado como só raras vezes se lembrava de se ter sentido na primeira infância." (30) "Para ele as mulheres do mundo se dividiam em duas classes: a primeira incluía todas, exceto Kitty, e essas tinham todas as fraquezas humanas, sendo absolutamente vulgares. Na segunda, só cabia ela, que não tinha fraqueza alguma e pairava muito acima de tudo o que era humano." (37) Liêvin estava apaixonado e por isso Kitty lhe parecia uma criatura tão perfeita em todos os sentidos, tão para além das coisas terrenas, quando ele, pelo contrário, era um ser baixo e mundano, que não podia pensar sequer que ela e os outros o considerassem digno de aspirar à sua mão." (24-25)

Ele, que conhece o Banquete de Platão, e certamente se vê como encarnação do que chamamos de um "amante platônico", diz: "os que só compreendem o amor não-platônico, esses não têm o direito de falar de dramas. Com um amor dessa classe não pode existir nenhum drama. 'Agradeço-lhe muito o prazer que me proporcionou, e adeus...'" (41). Esse idealismo todo só pode mesmo ter uma fonte - e Tolstói não precisa ter lido Freud para diagnosticá-la: fixação materna. "Embora mal se lembrasse da mãe, Liêvin mantinha um verdadeiro culto de sua memória e parecia-lhe impossível desposar uma mulher que não fosse a encarnação desse ideal adorado. Não concebia o amor fora do casamento" (83).

Kitty, porém (e aí começa o drama eterno, sempre repetido!), está dividida entre os cortejos de Liêvin e Vronski, dilacerada pela dúvida tão comum a tantas moçoilas: quem escolher?! "Quando recordava o passado, era com prazer e ternura que evocava sua intimidade com Liêvin. As recordações de infância bem como a amizade de Liêvin com o falecido irmão nimbavam de um encanto especial e poético suas relações com ele. O amor que Liêvin lhe tinha, amor de que ela estava certa, inundava-a, enchendo-a de contentamento. Era-lhe agradável lembrar-se de Liêvin. Pelo contrário, ao pensar em Vronski uma espécie de mal-estar a assaltava... Com Liêvin sentia-se completamente sincera e tranquila. Todavia, se pensava no seu futuro com Vronski, o futuro aparecia-lhe brilhante e feliz, enquanto com Liêvin lhe surgia nebuloso." (45) E ela escolhe aquilo que nós, leitores, certamente vamos acabar considerando como o Caminho Errado: pois o narrador de Tolstoi, num arroubo de parcialidade, nos garante sem rodeios que "a maneira como Vronski a estava tratando tinha um nome específico: tentativa de sedução sem intenções matrimoniais, má ação corrente entre jovens arrogantes como ele." (53)

Tolstói também conhece muitíssimo bem a Dor da Rejeição, que carrega alguns de seus personagens a cumes de sofrimento e perdição. Kitty, quando é rejeitada por Vronski, obviamente cai doente e fica à beira da morte - e Tolstói também não precisou ler Freud para ter o insight genial do que significa uma "enfermidade psicosomática". Não se cura com matéria um espírito dilacerado! E é isso que Kitty percebe: "Sua doença e os tratamentos que lhe impunham pareciam-lhe tolos e ridículos. Tratá-la dessa maneira era tão absurdo como apanhar do chão pedaços de um vaso partido e tentar colá-los. Tinha o coração despedaçado e queriam curá-lo com pílulas e pós?" (105) O orgulho ferido também demora a cicatrizar: "cem anos que eu viva, nunca poderei esquecer esta afronta!", garante Kitty.

O baque da rejeição de Kitty também é terrível para o inconsolável Liêvin. Tendo depositado tão imensas esperanças nela, ele também não pode deixar de sentir-se como um vaso quebrado em mil cacos ao ser preterido. "A culpa é minha. Com que direito pensei eu que ela estivesse disposta a unir a sua à minha vida? Quem sou eu? Que sou eu? Um homem inútil, de quem ninguém precisa..." (74) Por mais que se dedique aos trabalhos agrícolas e que se isole no campo, por mais que o tempo passe agindo com lenta mas certeira terapia (time heals all wounds...), por várias vezes "a injúria do repúdio trespassava-lhe de novo o coração como uma ferida recente." (146)

Ainda que grogue do golpe, Liêvin persevera: as feridas de amor também geram frutos de sabedoria. "Decidiu que daí em diante não poria as suas esperanças numa felicidade extraordinária, como a que esperara do casamento, e que, por conseguinte, não iria menosprezar tanto o momento presente", pensa (81). Desiludido no amor, Liêvin procura a satisfação e a beatitude no trabalho braçal, no contato concreto com os camponeses, num "mergulho" na terra - ele, que quis o céu, agora procura resignar-se, asceticamente, a uma fatia de pão e um copo d'água. Oblonski, a certo ponto, o confronta: "Tu não admites que uma pessoa possa desejar guloseimas quando já tem sua ração de pão. Na tua opinião é um crime, mas eu não admito que se possa viver sem amor." (138) E Liêvin, aos poucos, verá que seu "romantismo" não foi inteiramente assassinado pelo primeiro "não" de Kitty e que ela permanece sendo sua "musa".

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[“TINHA POR NOIVA A PERFEIÇÃO PERSONIFICADA..."]

Quando os pombinhos se reencontram e se re-encantam, Liêvin "sente-se em tal altura que tinha vertigens" (318). Uma maré de bondade passa a jorrar do peito deste enamorado: "Liêvin tinha a impressão de ver a alma das pessoas por pequenos pormenores, até então imperceptíveis, e comprovar que todos eram bons." (329)

O que se desencadeia é nada menos que uma EPIDEMIA DE AMOR: "Liêvin teve a impressão de que o esperavam e que se sentiam contentes por compartilhar da felicidade dele, como, aliás, todos com quem privava naqueles dias. Era extraordinário não só como todos o estimavam mas até mesmo como aqueles que lhe tinham parecido antipáticos, frios e indiferentes pareciam entusiasmados com ele. (...) Participavam da convicção em que ele vivia, de que era o ser mais feliz do mundo, uma vez que tinha por noiva a perfeição personificada." (355)

O casamento, porém, é uma aventura misteriosa rumo ao coração do desconhecido. "Exatamente como aquele que depois de admirar o barquinho que singra, sereno e ligeiro, pelas águas de um lago, verifica, ao pôr os pés a bordo, que não basta ir quieto lá dentro, mas que é preciso estar atento a todo momento ao rumo a seguir e à água que lhe corre por baixo, e que tem de remar e que lhe doem as mãos não acostumadas aos remos, outro tanto ocorria com o seu casamento. Em sima: era bem mais fácil olhar, pois, o barco que fazê-lo singrar." (391)

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["ESSA MULHER ME É MAIS PRECIOSA QUE A PRÓPRIA VIDA...."]

"Ana Karenina era uma grande dama e esposa de uma das personalidades mais importantes de São Peterburgo". Mas Dolly fareja algo de podre no reino dos Karênin: "havia qualquer coisa de falso na maneira de viver daquela família". Logo depois de conhecer Vronski e inflamar-se por ele - combustão espontânea de material inflamável - ela julga seu próprio marido, em contraste, como o cúmulo do ridículo. Numa das cenas mais cômicas do romance, deixa escapulir, estando já encantada por seu futuro amante, a repulsa pelo marido: 'Meu Deus! Por que lhe terão crescido tanto as orelhas?'" (90) A paixão, repentina, violenta, faz com que ela apareça como "o terrível resplendor de um incêndio numa noite escura" (124).

Já Vronski é descrito, a princípio, como um boêmio um tanto fanfarrão: "As pessoas do seu meio dividiam a humanidade em duas categorias opostas: a primeira, de gente vulgar, estúpida e sobretudo ridícula, supõe que os maridos devem ser fiéis às suas mulheres, as donzelas puras, as mulheres castas, os homens corajosos, firmes e moderados, e que devem educar os filhos, ganhar a vida, pagar as dívidas e outras frioleiras do mesmo gênero. Esta era a gente antiquada e ridícula. A segunda, pelo contrário - a gente da 'alta' -, à qual eles se vangloriam sempre de pertencer, preza a elegância, a generosidade, a audácia, o bom humor, entrega-se sem pudor a todas as paixões e ri-se de tudo o mais." (98) Ademais, vê heroísmo e nobreza nesta "tentativa de conquista": "homem que persegue uma mulher casada e que tudo arrisca para a seduzir tem algo de belo e grandioso e nunca pode parecer ridículo." (112)

Mas, conforme as relações com Ana se intensificam, o sentimento de Vronski passa a uma paixão cruciante "à la Werther": "esta mulher me é mais preciosa que a própria vida" (155), garante. E o narrador o confirma: "O amor que Ana lhe inspirava não era um entusiasmo passageiro destinado, como tantas outras ligações, a desaparecer sem deixar mais vestígios que algumas recordações, alegres ou penosas. Sentia vivamente a falsidade da situação, amaldiçoava as obrigações mundanas que os constrangiam, para salvarem as aparências, a levar uma vida de dissimulação e hipocrisia, a preocuparem-se constantemente com a opinião pública, quando era verdade que todas as coisas estranhas à paixão em que se abrasavam se lhes tinham tornado de todo indiferentes." (155)

"Todas as suas forças, relaxadas e dispersas até então, se enfeixavam e tendiam como que para um fim único e maravilhoso. Vê-la, ouvi-la, viver junto dela, a vida já não tinha para ele outro sentido." (91) Quanto ao marido, esse obstáculo penoso no caminho da consumação de um amor tão desejado, ele o enxerga "com a sensação de um homem que, morto de sede, encontra umas nascente de água pura conspurcada pela presença de um cão, de um carneiro ou de um porco. (...) A ninguém reconhecia o direito, salvo a ele próprio, de amar Ana." (91) Que ímpeto, que energia, que ousadia a paixão não é capaz de despertar num homem!

Mas Ana Karenina, apesar de não ter podido resistir à tentação de entregar-se à essa paixão, não é uma adúltera com boa consciência: ela sofre terrivelmente com seu ato, sentindo-se conspurcada, suja, imoral, como se tomasse para si a opinião da sociedade. "Ana sentia-se tão culpada, tão criminosa, que nada mais lhe restava senão humilhar-se e pedir-lhe perdão. Como já não tinha mais ninguém na vida a não ser Vronski, a ele implorava que lhe perdoasse. Ao fitá-lo, a humilhação a que descera parecia-lhe tão palpável que não sabia pronunciar outra palavra. Quanto a ele, sentia-se como um assassino diante do corpo inanimado da vítima: o corpo por ele imolado era o seu amor, a primeira fase do seu amor. (...) A nudez moral em que caíra esmagava Ana e comunicava-se a Vronski. Seja qual for, porém, o horror do assassino diante da vítima, jamais aquele deixa de sentir a necessidade de esconder o cadáver, de o cortar em pedaços, de colher os benefícios do crime cometido. Então, com uma raiva frenética, lança-se sobre o cadáver e arrasta-o para o despedaçar. Assim Vronski cobria de beijos o rosto e os ombros de Ana." (128)

[ KARÊNIN: UM AUTÔMATO MINISTERIAL]

O marido? "Todos os minutos da sua existência eram contados, e, para poder cumprir o que diariamente lhe competia, via-se obrigado a observar uma pontualidade estrita." (94) Karênin é um homem profundamente egocêntrico, workaholic, incapaz de empatia e em larga medida insensível. É somente o choque da suspeita que surge da infidelidade de Ana que o obriga a pensar no coração da esposa: "Pela 1a vez na vida a imaginação lhe apresentou a vida da mulher, as necessidades do seu espírito e do seu coração: a idéia de que ela teria uma vida pessoal impressionou-o tão vivamente que tratou logo de a sacudir do espírito. Eis o abismo que ele não ousava medir com o olhar. Penetrar pelo pensamento e o sentimento na alma de outrem parecia-lhe uma fantasia perigosa..." (123)

Quanto ao trabalho, ele representa para ele um modo de auto-cegueira voluntária: "ele próprio inventava esse trabalho, que era uma das maneiras de que dispunha para não abrir o cofre onde jazia o afeto para com a família e os pensamentos a respeito dela, pensamentos esses tanto mais terríveis quanto por mais tempo lá permaneciam encerrados." (169) "Meu marido alimenta-se de mentiras!", pensa Ana (174). "Não é um ser humano, é um boneco, um autômato ministerial!", xinga Ana.

Quando Ana revela a verdade – ama outro homem... - o verdadeiro (e horrendo) caráter de Karênin vêm à tona. "A brutal confissão de Ana, confirmando as piores suspeitas de Karênin, ferira-o em pleno coração. (...) No entanto, com uma satisfação em que havia o seu quê de surpresa, sentiu a mesma sensação de alívio do homem a quem acabam de extrair o dente que o fazia sofrer há muito: o choque é terrível, o doente tem a impressão de que lhe extirparam da maxila uma coisa imensa, maior ainda que a sua própria cabeça, mas ao mesmo tempo, sem acreditar muito na felicidade, verifica o desaparecimento dessa coisa abominável que por tanto tempo lhe envenenara a existência." (232)

E, claro, escolhe o caminho mais comum para um marido traído: condenar a esposa adúltera ("é uma mulher perdida, sem coração, sem honra, sem religião!") ao invés de se auto-questionar sobre as razões que fizeram com que ela se sentisse tão mau-amada e solitária a ponto de ir procurar sua felicidade junto a outro coração. Ana transforma-se, aos olhos dele, numa mulher viciosa, depravada, corrupta e suja de lama; enquanto ele, é claro, conserva intacta sua auto-imagem de homem cristão e direito, apesar de ser extremamente óbvio, para o leitor, de que se trata de um marido sem carinho, pouquíssimo afetuoso, gélido e distante, que jamais seria capaz de fazer uma mulher feliz. Em resumo: um homem incapaz de amar. Como não perdoar Ana por tentar, estando dentro dessa jaula, escapar?! Ainda mais quando Vronski lhe promete que não deseja nada além disso: "consagrar minha vida à tua felicidade!" (260)

Tolstói aqui também é brilhante psicólogo: o orgulho ferido de Karênin transforma-se em sadismo, desejo de vingança, ânsia de punição. É a velha história de um marido que diz: "prefiro que ela seja infeliz comigo do que feliz com ele". "A confissão de Ana fizera-lhe nascer no fundo do coração um sentimento que ele não ousava confidenciar a si próprio, isto é, o desejo de a ver expiar no sofrimento o atentado contra o seu repouso e a sua honra" (234). E ainda consegue racionalizar um sentimento tão horrendo de CAUSAR DOR NO OUTRO, dizendo: "ajo de acordo com os preceitos da nossa religião: não repudio a mulher adúltera, dou-lhe a oportunidade de se emendar e até mesmo consagro parte do meu tempo, das minhas energias, à sua reabilitação". Ora, ora, quanta nobreza, santo Karênin! Mereces ser canonizado! (235)


["NUNCA SERIA LIVRE PARA AMAR...]

Ao receber esta terrível carta, Ana "sentiu-se esmagada por uma desgraça terrível, imprevista", que ia "muito além das suas mais negras previsões" (242). O trecho é magistral: "Oh, como é desprezível e vil um homem assim! E pensar que ninguém o compreende e só eu o compreendo. Elogiam-lhe a piedade, a probidade, a inteligência, mas não vêem o que eu vi; todos ignoram que durante oito anos asfixiou tudo que em mim palpita, sem nunca se ter apercebido de que eu sou uma criatura viva e que tinha necessidade de amor; ignoram que me feria a cada momento, que com isso mais satisfeito ficava consigo mesmo. Não procurei eu, com todas as minhas forças, dar uma finalidade à minha existência? Não fiz o possível para amá-lo? E, quando vi que não conseguia, não transferi todo esse amor para o meu filho? Mas chegou uma altura em que comrpeendi que não podia continuar a iludir-me, que era de carne e osso. Tenho culpa de que Deus assim me haja feito? Se preciso de amar e viver?... Esta vida foi sempre um tormento. (...) Ele sabe-o, sabe que eu não posso me arrepender de respirar, de amar; ele sabe que, de tudo o que exige, só mentira e falsidade pode resultar, mas quer a todo transe prolongar a minha tortura. Nada na mentira como um peixe na água..." (243). Cai como uma pedra tumular sobre o Ana, enterrada viva, essa dolorosa certeza: "Nunca seria livre para amar" (243).

A essência da tragédia toda talvez seja essa: o casamento entre Ana e Karênin, que era obviamente uma relação envenenada, insatisfatória e aprisionante, não é desfeito mesmo quando os cônjugues chegam aos mais extremos cumes de ódio e mágoa. Aliás, no romance inteiro não há um só divórcio consumado - também Dolly, quando é traída por Oblonski, acaba por perdoá-lo. Talvez por isso Ana Karenina seja uma personagem tão marcante na história da literatura dos últimos séculos: é o protótipo máximo da mulher infeliz no casamento que, por mais que procure buscar sua felicidade fora dele, não consegue escapar dessa prisão sem se machucar, ser ferida pela sociedade ou se auto-destruir. Nada mais complicado do que escapulir de um matrimônio mortificante, ainda mais numa conjuntura histórica do século 19, onde ainda levava-se muitíssimo a sério o "até que a morte os separe!" com que os padres sagravam aquela relação.

Ana, apesar de "acreditar firmemente na verdade da religião", o que nos leva a supor que também acreditava-se culpada perante o Criador por ter querido romper esse matrimônio sacramentado pelos Poderes Superiores, não consegue evitar o dilaceramento de questionar: "esta religião não lhe impunha, antes de mais nada, a renúncia ao que representava para ela a única razão de vida?" (239) A religião, obrigando-a a permanecer grudada a um homem que não ama, não a condenava ao pior destino humano possível: estar longe do homem que verdadeira ama, só por não ser este seu marido?

O grande vilão talvez seja esse Monstro de Mil Cabeças chamado A Opinião Pública. Muitas ladies "já tinham guardada a lama que lhe atirariam quando chegasse o momento" de "despejar sobre Ana todo o seu desprezo" (147). O maridão corneado, ao receber a confissão de infidelidade da esposa, ao invés de agir dominado pela fúria assassina (um sangrento crime passional poderia muito bem ser o desenlace!), age como um um circunspecto e controlado homem da elite, que tem muito mais pavor de ver manchada sua reputação do que feridas por ver seu coração partido. Olhem só o que Karênin diz a Ana: "Estou ciente, mas exijo que guardes as aparências, até que tome medidas para salvaguardar a minha honra...". Karênin, sendo um cristãozinho ortodoxo, escreve a Ana, depois da confissão desta: "não me reconheço com o direito de romper vínculos que um poder mais alto consagrou. A família não pode estar à mercê de um capricho, de um ato arbitrário, ou seja, do crime praticado por um dos cônjugues..." (235).

O sofrimento é tão intenso e recorrente em Ana que a morte a ronda por muito tempo: no parto do filho de Vronski, por exemplo, ela estava certa de que não iria sobreviver. E é nessa ocasião de agonia que, pela primeira vez, Karenin aparece ao leitor com uma feição mais humana, nobre e compassiva. "Junto ao leito da mulher agonizante, pela primeira vez na vida se abandonara a esse sentimento de comiseração pelas dores alheias contra que sempre lutara como se luta contra uma fraqueza perigosa". É o que Tolstói batiza, lindamente, como "esse enternecimento que a vizinhança da morte facilita" (344). Mas isso não dura. Sobrevivendo, Ana retorna a uma vida que lhe é terrível: algemada e acorrentada a um casamento que lhe tira a vida, gota a gota. "Sou como uma corda tensa que tem de acabar por partir" (350), profetiza.

Ela decerto ensaia muitos levantes e planos de fuga. Por momentos até suspeitamos que ela vá vencer situação tão opressora e conquistar, com o amante, a felicidade que jamais possuiu com o marido. Quando Ana e Vronski viajam, há uma efêmera lua-de-mel idílica, em que Ana "sentia-se muito feliz e era grande a sua alegria de viver. (...) Sentia o que costuma sentir uma pessoa que, prestes a afogar-se, consegue libertar-se de outra que se lhe agarrou ao pescoço, deixando-a morrer. De fato, aquilo não estava certo, mas era a única maneira de se salvar" (379). Mas...

* * * * *

["AQUELE AMOR SOMBRIO E PENOSO..."]

Tolstói também conhece muito bem o drama da Desilusão que assombra os desejos de amor. É com a maestria de um Grande Psicólogo sem diploma, que compreende como poucos as engrenagens do coração humano, que ele espalha pela obra todas as nuances e possibilidades do amor. Quando é jovem e fresca a paixão entre Ana e Vronski, eles acreditam numa extasiante felicidade que os aguarda no radioso futuro que terão juntos. Mas, uma vez reunidos, têm que lidar com as difíceis e amargas realidades. Por exemplo o ciúme: "Aqueles acessos de ciúmes, que ultimamente acometiam Ana com mais frequência, horrorizavam-no. Claro que ainda eram provas de amor, mas nem por isso o assustavam menos, e, conquanto ele não lho mostrasse, arrefeciam o amor que sentia por ela. Muitas vezes dissera para si mesmo que o amor de Ana constituía para ele a felicidade, e agora, que ela o amava como pode amar uma mulher que tudo sacrificou à sua paixão, sentia-se mais longe da felicidade que na época em que abandonara Moscou para a seguir. É que então uma promessa de felicidade brilhava no meio do seu infortúnio, enquanto presentemente os dias de felicidade pertenciam ao passado..." (297)

A famosa "thin line between love and hate" está presente em vários momentos do romance, por exemplo, quando Dolly descobre as infidelidades de Oblonski e desabafa: "É horrível que tudo se haja modificado na minha alma; em ver de amor e de ternura, já não tenho dentro de mim senão ódio, sim, é ódio que eu sinto. Era capaz de matá-lo..." (63).

Ana permanece, o tempo todo, ainda vinculada legalmente ao marido que odeia e considerada "culpada" de adultério e corrupção aos olhos da sociedade. Sem falar que é uma mãe mortificada de saudades por seu filho, a quem chegaram até mesmo a dizer que estava morta. Como não chegaria às raias do completo desespero, amando dois homens - Vronski e seu primogênito - que não pode de modo algum possuir juntos? "Quero que compreendas que amo estes dois seres, creio qqe ama tanto a um como a outro, a Sieroja e Vronski, mas a ambos mais do que a mim mesma. (...) Só quero a estes dois seres e um deles exclui o outro. Não posso reuni-los e são a única coisa de que preciso." (515)

As tragédias se acumulam sobre os pobres ombros da pequena Ana, incapaz de suportá-los por muito tempo. "Vronski olhava-a agora como se olha para uma flor murcha, em que não encontrava já a beleza que o levara a colhê-la." (297) É uma das ocorrências mais tristes de todo o romance - que não possui poucas: o naufrágio das esperanças de Ana (e também das esperanças do leitor!) de que a Bem-Aventurança perfeita fosse se fazer ao lado de Vronski. "Eterno equívoco de quantos julgam a felicidade a satisfação de todos os desejos, também ele [Vronski] apenas obtivera algumas poucas parcelas da ventura com que sonhara. (...) O encantamento foi de curta duração: o tédio o veio substituir." (380) Quando, como remate para uma procissão de sofrimentos, Ana percebe o arrefecimento da paixão de Vronski, esse é como um golpe final que faz desabar todo o seu aparelho psíquico.

"Embora convencida desse arrefecimento no amor de Vronski, Ana não se julgava capaz de remediar esse mal senão oferecendo-lhe um amor cada vez mais ardente e encantos sempre renovados. Aliás, só as ocupações múltiplas durante o dia e as doses frequentes de morfina durante a noite eram capazes de amortecer o medonho pensamento que a torturava: um dia, talvez, Vronski deixaria de a amar, e então que seria dela?" (535)

Essa mulher, profundamente deprimida e atormentada, separada do filho, unida legalmente a um homem que abomina, com a reputação queimada frente à sociedade, nada mais que uma dama perdida e corrupta que se sujou na lama do adultério, tem ainda que suportar isso: ver Vronski, o homem por quem é apaixonada, cada vez mais incomodado por sentir-se "preso" à relação e tolhido em sua liberdade - chegando a fulminá-la com um olhar "glacial e mau, como o de um homem exasperado por uma perseguição" (537)!

Quão mais desesperadora se torna a situação de Ana, mais aumenta o grau de dependência emocional em relação à Vronski - o que chega às raias da loucura, como provam os delírios de ciúme que ela passa a ter quando se aproxima o fim. "Para Ana, Vronski, todo ele, com os seus costumes, os seus pensamentos, os seus desejos, a sua constituição física e a sua maneira de ser, era amor pelas mulheres. E esse amor, uma vez que esmorecera por ela, tinha de estar concentrado algures. No seu ciúme cego via em todas as mulheres a rival. (...) Os ciúmes enchiam Ana de indignação, e ela, aliás, não fazia outra coisa senão procurar motivos para se indignar..." (594)

Tolstói atinge assim um clímax tão intenso de sofrimento como poucas vezes se conseguiu na história da literatura. Os momentos finais da vida de Ana são algumas das cenas mais desesperadas, angustiantes e asfixiantes de se ler dentre tudo que já foi criado pelo espírito humano. Dominada por uma "estranha força maligna" (567), Anna Karenina é totalmente engolfada e subjugada por uma maré de negro e incurável niilismo suicida. Transformada numa sádica por tanto ter sofrido, quer punir Vronski com sua morte, decerto: "quando eu estiver morta, ele há de arrepender-se da sua conduta, há de chorar por mim, amar-me-á...".

"Ana compreendeu que o destino estava jogado. A morte representou-se-lhe então como a única maneira de castigar Vronski, de lhe reconquistar o amor, de triunfar na luta que o espírito maligno que se lhe havia alojado no coração travava com aquele homem. (...) O essencial era o castigo. (...) Abandonou-se a esse lúgubre cismar. Que pensaria ele quando ela tivesse desaparecido? Que remorsos sentiria? 'Como pude falar-lhe tão duramente, como pude deixá-la sem uma palavra afetuosa? E agora desapareceu para sempre, abandonou-nos para nunca mais!..." (603)

Com uma trágica fisionomia, com o coração desgrenhado, a auto-estima atingindo o poço mais profundo possível, Ana dá o passo fatal quando, ao invés de ir procurar a amiga Dolly para desabafar, para ter ao menos um ombro onde chorar, faz a decisão mortífera: "Mais vale calar-me" (608). O mundo inteiro é recoberto pelo fel que Ana espalha por todo canto: todos os seres humanos odeiam-se, o amor não tem nada de alegre, tudo é horroroso! O universo, opressor como um pesadelo, aparece-lhe inteirinho pintado "sob cores hediondas". "Não nos encontramos todos à superfície da terra para nos odiarmos e nos atormentarmos uns aos outros?..." (612). Em meio à "ruidosa multidão de gente absurda" que formigava pela estação, esmagada por uma solidão indizível e absoluta, com o coração completamente esvaziado de amor, Ana sucumbe ao niilismo completo: "Tudo é mentira, tudo é falso, só há engano e maldade..." (614).

"E a vela, à luz da qual Ana lera o Livro da Vida com todos os seus tormentos, todas as suas traições e todas as suas dores, resplandeceu, de súbito, com uma claridade maior do que nunca, alumiando as páginas que até então haviam estado na sombra. Depois crepitou, estremeceu e apagou-se para sempre." (616)

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[SOB O IMPACTO DA MORTE: ´”TUDO NOS PARECE NINHARIAS...”]

“Em grandes momentos, bastante raros – em geral momentos de morte -, abre-se ao homem uma realidade na qual ele vislumbra e apreende, com uma fulgência repentina, a essência que impera sobre ele e ao mesmo tempo em seu interior, o sentido de sua vida. Toda a vida pregressa submerge no nada diante dessa vivência, todos os seus conflitos, sofrimentos, tormentos e erros por eles causados manifestam-se inessenciais e rasteiros. O sentido é manifestado, e os caminhos rumo à vida viva são franqueados à alma. E aqui outra vez, com a implacabilidade paradoxal do verdadeiro gênio, Tolstói põe a descoberto a profunda problemática de sua forma e dos fundamentos dela: são os grandes momentos da morte que prodigalizam essa felicidade decisiva...” - GEORG LÚKACS, "A Teoria Do Romance", in: “Tolstói e a extrapolação das formas sociais de vida”, pg. 156, da edição da 34.

Tolstói viveu sob o signo da morte: aos 2 anos de idade, perdeu a mãe. Aos 9, o pai. Já na infância, pois, “compreende pela primeira vez a amarga verdade que preenche sua alma de desespero” (Infância, capítulo XXVII). O fantasma que ainda na velhice o assombrava, fazendo-o escrever A Morte de Ivan Ilitch, já o rondava desde os tempos da meninice. Em Ana Karenina, é seu Liêvin que encarna os grandes dramas do homem em confronto com sua própria fragilidade mortal.

Com a aproximação da morte de seu irmão Nicolau, Liêvin começa a ficar obcecado com a idéia da morte. "Tudo em que pensava se resumia num só pensamento: a morte. A morte inevitável, fim de todas as coisas, surgia-lhe pela primeira vez com uma força invencível. (...) Quanto a saber o que era esse morte inevitável, não só o ignorava e não sabia o que fosse, como nem sequer se atrevia a conjeturá-lo. (...) Esquecera-se de considerar um pequeno pormenor da vida: que a morte chegava e tudo acabaria, que não valia a pena empreender coisa alguma e que contra isso nada se podia fazer." (287)

Quando olha-se de frente para a morte, o grande perigo é ser sugado pelo niilismo. E Liêvin certamente é tentado por esse demônio: "Tudo é vaidade, mais vale morrer!", diz a certo ponto (310). Apesar de amante do trabalho e do esforço, e desejoso de levar uma vida produtiva, ele não está imune aos acessos de desânimo.

"Para te falar com franqueza, gosto muito do meu trabalho e das minhas idéias, mas, quando penso que este universo não é mais que uma camada de bolor na crosta do mais insignificante dos planetas, quando penso que as nossas idéias, as nossas obras, tudo que julgamos fazer de grande, equivale, pouco mais ou menos, a alguns grãos de poeira! (...) Sim, quando nós o compreendemos a fundo tudo se nos afigura sem importância. Quando chegamos à conclusão de que hoje ou amanhã teremos de morrer e que nada ficará, tudo nos parece ninharias..." (310)

Frente a Nicolau agonizante, Liêvin é inteirinho pasmo, confusão e inação - só sabe meditar sombriamente sobre "o mistério terrível da morte que os grandes espíritos haviam tentado sondar, tal como ele, com todas as forças da sua alma" (404). Enquanto ele, ensimesmado e padecente, se debate contra os insondáveis mistérios, é Kitty que, compadecida e ativa, trata dos detalhes materiais (higiene, medicação, socorro) de que necessita o adoentado.

Liêvin, de todos os personagens do romance, é o único que mergulha fundo nas dúvidas existenciais, põe em xeque os dogmas da religião e medita sobre as maiores charadas universais. É ele quem, no começo do romance, chega fazendo aos sábios e eruditos questões metafísicas "infantis", que revelam todo o seu pasmo existencial, deixando todos "chocados" por ser tão "rústico"! "Quando meus sentidos se aniquilam e o meu corpo morre, não há mais existência possível?" (27), pergunta aos “eruditos”, que o desprezam por suas tolas dúvidas. Ah! Mas que belas são as dúvidas dos rústicos e das crianças! Como dizia Milan Kundera, em A Insustentável Leveza do Ser, as perguntas realmente filosóficas são aquelas que uma criança é capaz de formular...

"O meu pecado principal é a dúvida", diz esse homem que, incapaz de acreditar em Deus, ainda assim não escapa dos condicionamentos religiosos - como aquele que nos contou essa imensa lorota que duvidar é sinônimo de pecar... "Não posso viver sem saber o que sou e com que fim fui lançado a este mundo", dizia ele com seus botões. "E, visto que não poderei chegar a sabê-lo, torna-se-me impossível viver. No tempo infinito, na infinitude da matéria, no espaço infinito forma-se um organismo como uma borbulha, mantém-se por algum tempo, depois rebenta. Essa borbulha sou eu!" (633)

Em Ana Karenina, convêm notar, Deus jamais se manifesta: deixa Nicolau agonizar em meio aos mais terríveis padecimentos, “observa” o doloroso parto de Kitty sem fazer com que desçam dos céus anestesias e consolos, e nada faz para desviar o trem que vem para dilacerar Ana em mil pedaços. Bem simbólico deste estado de coisas é esta bela frase: "Ao seu olhar interrogativo, o céu respondia com um altivo silêncio." (231)

E é justamente frente à morte que a tentação de se agarrar à religião é mais forte e difícil de resistir. Tanto que Nicolau, um descrente, em seu leito de agonia, ao receber a extrema-unção, passa por uma sintomática reviravolta e retorna à fé, rezando com fervor. "...havia uma súplica tão veemente e tão esperançada em seus olhos que Liêvin, ao olhar para ele, sentiu-se aterrado. Liêvin sabia que aquela súplica e aquela esperança apenas contribuiriam para tornar mais dolorosa a separação dessa vida que o irmão amava tanto. Conhecia a maneira de pensar de Nicolau, constava-lhe que a sua falta de fé não se dera pelo fato de lhe ser mais fácil viver sem ela, mas apenas porque, a pouco e pouco, as explicações científicas dos fenômenos do universo o tinham afastado dela. Tampouco ignorava, portanto, que aquele regresso à fé não era o resultado de qualquer meditação; não era sincero, mas momentâneo, egoísta, produto de uma desatinada esperança em curar-se." (406)

Que seja absolutamente compreensível, psicologicamente falando, que um ser humano dilacerado de angústia frente à morte se agarre a uma crença consoladora, é fato. Tolstói, como grande psicólogo que foi, não ignora o salto da descrença para a fé que a psique humana tantas vezes realiza quando ameaçada de entrar em colapso por excesso de angústia. Mas isso obviamente não faz com que a realidade seja menos cruel. E Tolstói, como todo grande artista, não tem medo de desenhar com as cores mais pungentes a tragédia da absoluta inutilidade da fé para vencer concretamente a morte. Nicolau pode rezar ardentemente, como nunca havia rezado na vida, mas isso não o impedirá de morrer. Deus, se existiu, jamais abriu uma exceção e permitiu que uma de suas criaturas ficasse na Terra eternamente - o máximo que o cristianismo faz é prometer a eternidade para o além-túmulo, mas jamais para o aqui-agora. Tanto que chega um momento em que o doente "não podia aspirar a outra coisa que não fosse libertar-se do princípio mesmo dos seus males, seu corpo torturado" (409).

O episódio "renova na alma de Liêvin aquele sentimento de horror ante o enigma e a proximidade da morte inevitável. (...) Ainda se sentia menos capaz de compreender o significado da morte e com mais clareza ainda se capacitava de que ela era inevitável. No entando, graças à presença da mulher, esse sentimento não lhe causava desespero; em que pesasse a morte, sentia a necessidade de viver e de amar. Sentia que o amor o salvara do desespero e que perante aquela ameaça o amor se tornava mais forte e mais puro." (410)

O último suspiro do agonizante quase coincide com o primeiro desabrochar da gravidez de Kitty. Se a morte varre, impiedosa, os homens para dentro do nada, o amor, batalhando do seu lado, traz sempre soldados novos em folha para que continue o drama, a comédia, a dilacerante aventura do coração humano! O paralelo que Tolstói traça entre morte e nascimento, como se fossem duas faces da moeda da vida, fica claro quando Liêvin está à espera do filho que Kitty lhe vai dar:

"...estava na mesma situação que um ano antes junto ao leito de agonia do seu irmão Nicolau. Mas então tratava-se de uma desgraça e agora de uma alegria. Tanto aquela desgraça como esta alegria estavam, porém, fora das condições normais da vida, eram como que uma clareira em que vislumbravam perspectivas sobre o além. O que ia acontecer chegava difícil e dolorosamente, tal como quando a alma se elevava, perante esse fato sobrenatural, a alturas inacessíveis, em que nunca se encontrara antes e onde a razão não podia chegar." (573)

Frente à "intensa sensação de impotência" que sente no aguardo do filho, bem similar à que sentia quando aguardava a morte do irmão, Liêvin também se abandona à fé, suplicando para que tudo corresse bem. E ocorre: "como a chamazinha de uma vela", "vacilando", vem ao matadouro chamado mundo a vida de um novo ser... (576)

Liêvin, ao dar o salto para a fé, reconhece a estranheza do fato: "ele, incrédulo, rezara e rezara com uma fé sincera" (631). Mas ao "analisar friamente" esse fenômeno, "o ímpeto para Deus desfazia-se em pó" (632). Está aí a grande contradição da fé: intensamente desejada pelo coração, mas incapaz de ser aceita ou comprovada pela razão, ela causa esse dilaceramento interno em que batalham duas forças, em tumulto, sem possibilidade de paz.

"Desde que vira morrer o seu querido irmão, Liêvin dera-se a examinar pela primeira vez os problemas da vida e da morte através de idéias a que ele chamava novas. (...) Liêvin sentira horror, menos da morte que da vida, por não poder compreender de onde vinha, que era, para que existia ou que representava. O organismo, a sua destruição, a indestrutibilidade da matéria, a lei da conservação da energia e a evolução, eis os termos que tinham substituído a sua antiga fé. Esses termos e os conceitos que lhe andavam ligados serviam para dins de ordem intelectual, mas não explicavam a vida. Liêvin encontrou-se, de súbito, na situação de um homem que houvesse trocado uma peliça que muito bem o agasalhasse por um traje de musselina e que pela primeira vez se sentisse gelar, não graças a raciocínios, mas como todo o seu ser, convencendo-se de que estar assim vestido era o mesmo que estar nu, e que seria inevitável morrer no meio de grandes tormentos. (...) Tinha o sentimento confuso de que as suas pretensas convicções, em vez de dissiparem as trevas em que vivia, ainda as tornavam mais espessas. " (631)

Sob o impacto da certeza de uma morte inelutável, Liêvin "compreendera pela primeira vez que mais nada existia para todos, inclusive para ele próprio, além do sofrimento, da morte e do esquecimento eterno. E decidira ser impossível viver assim, ser preciso encontrar uma explicação qualquer para a vida, de sorte que esta se lhe não apresentasse como uma ironia maligna e diabólica e não o levasse a estourar os miolos." (638)

No fim do romance, Liêvin parece ter uma espécie de "epifania", em que percebe "o milagre permanente que nos rodeia por todos os lados", abraçando não exatamente o cristianismo, mas uma espécie de religião pessoal, simples e singela, baseada em princípios simples: privilegiar a "vida da alma" e “fazer o bem”. "A única manifestação evidente e indiscutível da Divindade está nas leis do bem", filosofa (653).

A mim fica a impressão de que não se deu de fato uma "conversão" do incrédulo Liêvin à fé, mas sim uma compreensão global de que a existência, rodeada por todos os lados pela ameaça da morte, que sempre há de vencer a batalha final e nos lançar no "esquecimento eterno", não possui sentido algum a não ser se for vivida sob a égide dessas forças que propulsionam adiante a aventura humana: o amor e o bem, que são a mesma coisa e as únicas “entidades” dignas de serem amadas como um deus. Por isso, após toda a tragédia terrível que culmina no suicídio de Ana, uma mulher que sucumbe ao niilismo, Liêvin (e Tolstói com ele!) ergue um grito final de sabedoria: "Cada minuto da minha existência terá um sentido inconstestável. Agora possuirá o sentido indubitável do bem que eu lhe sou capaz de infundir!" (654)