segunda-feira, 28 de julho de 2008

:: caótica ana ::

Dei meu segundo berro, desta vez sobre Caótica Ana, novo filme do Julio Medem, para a nova edição da Revista O Grito!. Seis anos depois do belo Lúcia e o Sexo, o cineasta espanhol, sempre ultra-ambicioso e sofisticado, retornou com um obra meio bagunçada, esotérica, pretensiosa, que parece indecisa entre o insulto poético e a superstição. O pessoal lá editou e cortou um pouco o meu texto, provavelmente para curá-lo da prolixidade (ê vício!), o que acabou por tirar um pouquinho do sabor e das ironias no texto - mas no geral tá bão. Aí vão uns trechinhos do treco em versão uncensored (hehe!):

"Numa das frases mais clássicas do cinema na década de 90, o garotinho de O Sexto Sentido revelava ao mundo seu espantoso dom: “I see dead people!” É um cena que se entranha na memória e não sai mais. Não foi a primeira vez que um filme hollywoodiano de grande porte encantou as multidões com um enredo que flertava com o sobrenatural e os fenômenos paranormais, claro. Mas M. Night Shyamalan, em seu filme de estréia, conseguiu a proeza de lançar um filme marcante e de profundo impacto popular abordando uma temática repleta de superstição espiritualista.

É um modo comprovadamente eficaz de fisgar o grande público, aliás. Bastante gente admite (mesmo que for com rubor no rosto) que gosta imensamente de Ghost – Do Outro Lado da Vida,
aquele adocicado romance entre um Patrick Swayze fantasma e uma Demi Moore em carne-e-osso (graças a deus) que a Rede Globo reprisou até a saturação. Poucos resistem a uma boa história de fantasmas e mortos perambulando por aí!

Ghost e O Sexto Sentido são apenas dois exemplos de filmes de extremo sucesso que tratam de fenômenos religiosos extraordinários, que beiram a ficção científica, e que assim conseguem fascinar o público com facilidade. E isso porque mexem com profundos temores e esperanças do espectador, que acaba por se propor enigmas como: “há vida após a morte? Os espíritos vagam pela Terra depois que o corpo pifa, até encontrarem um outro hospedeiro? Se meu espírito existe, que idade ele tem? E dentro de quantos seres já viveu?”

Caótica Ana é mais um filme que irá abordar uma temática semelhante, desta vez através da história de uma jovem que, através de transes hipnóticos, consegue “acesso” a suas vidas passadas, re-experimentando na pele as mortes trágicas e violentas que sofreu nos últimos dois mil anos. Por ser uma obra com um saborzinho mais de item cult que de blockbuster, acaba tendo semelhanças com filmes como Solaris (de Andrei Tarkovski, refilmado depois por Steven Soderbegh) ou The Dead Zone (de David Cronenberg), que tratam de modo refinado temas altamente misteriosos e paranormais.

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"Se Medem fosse um músico, certamente estaria numa banda de rock progressivo e não numa de punk-rock de três power-chords. Pois seus filmes sempre soam sofisticados, refinados, complexos, conduzidos por mão de mestre por alguém que é virtuose em sua arte e faz questão de ostentar seus talentos em longos “solos”. Caótica Ana não é diferente: o requinte visual e o preciosismo técnico são exemplares. Nossas retinas saem do cinema satisfeitas com um filme que vem recheado de cenas e tomadas que são puro eye-candy. Mas, se a obra é formalmente impecável e visualmente exuberante, o mesmo não se pode dizer com tanta certeza sobre o conteúdo e o enredo.

Que o roteiro de Medem está fervilhando de idéias e referências, não há dúvida. O diretor botou no liquidificador espiritualismo, fenômenos paranormais, técnicas de hipnose e regressão, arquétipos junguianos, o complexo de Édipo, a Guerra do Iraque, História Africana moderna e muito mais… Rolam até referências à cultura rave de Ibiza (o filme já começa com uma bela simulação de uma viagem de ecstasy) e aos artistas neo-hippies madrilenhos! Ambição pouca é bobagem! O primeiro dos problemas, como já se vê por essa descrição de temas que soam um tanto desconexos, é que a obra acaba ficando até mais caótica do que sua protagonista.

O filme começa muito bem, prometendo uma história aventuresca sobre a linda e talentosa Ana (Manuela Vallès), uma linda loirinha bicho-grilo que vende seus quadros em feirinhas hippie e adora boiar nua nas águas de Ibiza. Esta jovem pintora que dá nome ao filme, após ser descoberta por uma mecenas caça-talentos (a insossa Charlotte Rampling), muda-sa para Madrid para morar numa louca república de artistas. “Aqui me sinto como uma índia que acabou de sair de sua aldeia”, escreve ela para o pai, enquanto Medem brinca de filmar cenas à la O Albergue Espanhol.

(...)

O grande problema é que o enredo a certo ponto degringola para um esoterismo exagerado – sem falar no grau de inverossimilhança excessiva da história toda. Esta mesma premissa - “garota hipnotizada re-experencia mortes violentas que sofreu em vidas passadas” - poderia facilmente virar motivo de piada e alvo de tomatadas num filme de terror B, que os críticos de cinema iriam massacrar sem dó. O mesmo enredo, embrulhado no papel brilhante de tamanho virtuosismo visual e técnico, acaba adquirindo um ar de coisa respeitável.

Mas não nos deixemos enganar, porém, por essa afetação de artisticidade e refinamento - e não confundamos isso com profundidade. Pois em Caótica Ana Medem cometeu uma atrocidade parecida com a de Darren Aronofsky em a A Fonte da Vida: nos dois casos, um diretor promissor e original acaba despencando no excesso tanto de pirotecnia visual gratuita quanto de misticismo cheio de fogos-de-artifício.

Caótica Ana é um filme capaz de agradar principalmente senhoras supersticiosas e meio hippongas, que adoram queimar incensos, ter estatuazinhas de gnomos-da-sorte e ouvir CDs de “relaxamento e meditação”. Dá a impressão de ser o resultado do tipo de confusão em que cairia um bom cineasta se lesse demais Allan Kardec ou levasse a sério demais doutrinas implausíveis sobre espiritismo, reencarnação e médiuns. Em vários momentos, o filme acaba soando como o equivalente cinematográfico de uma música new age - e, que me perdoem aqueles que curtem Enya e Kitaro, mas essa comparação, neste caso, não tem intenção de ser nada lisonjeira.

Pior ainda é o fato do filme afirmar categoricamente que aquelas experiências da protagonista são reais, quase milagrosas, impondo uma visão religiosa ultra-suspeita ao espectador. Eu não teria objeções a fazer ao filme se ele, ao tratar dessa questão da reencarnação e da possibilidade de “acessar” memórias de vidas anteriores, deixasse aberta a porta da dúvida. Quando Ana é hipnotizada e narra suas supostas existências antigas, o espectador poderia se perguntar: mas será que ela não está imaginando tudo? Será que ela não está criando um enredo totalmente falso só para seguir as ordens do hipnotista? O que existe de seguro para nos garantir que ela não está alucinando ou se auto-ludibriando?

Mas Medem jamais deixa aberta sequer a possibilidade de que Ana pudesse estar sonhando, imaginando, delirando. Ana está de fato revivendo memórias de suas vidas passadas e nunca isso é posto em questão, como prova o fato dela desembestar a falar árabe ou idiomas indígenas mortos quando está em transe, o que é o mesmo que afirmar que ela, no fundo do inconsciente, pode “acessar” memórias de sua alma ancestral.

Por isso Caótica Ana é um filme todo impregnado de misticismo e de credulidade, um pretensioso enredo que parece ter sido borrifado com doses excessivas de Jung, Kardec e parapsicologia, mas que tem, para o meu paladar, um suspeito gosto de charlatanismo espiritual. É o tipo de obra que agradará principalmente aos crédulos. Aqueles que, como eu, tem uma queda para o ceticismo, só podem lamentar: que excelente filme ele poderia ter sido se somente algumas sementes de dúvida tivessem sido plantadas neste terreno!…

Pois Caótica Ana fica longe de se transformar numa obra que fomente um interessante debate entre fé e ciência, como poderia ter sido se aproveitasse melhor o contraste entre a moça, que crê em reencarnação e regressão hipnótica a vidas antigas, e seu namorado Said, que estuda biologia e parece ter um “temperamento científico”.
Richard Dawkins, se resenhasse o filme de Medem, provavelmente desceria a lenha. E, neste caso, me alinho à Frente Militante Anti-Superstição, que o biólogo britânico vem liderando nestes últimos anos, e digo: Medem, com este filme, acaba por impor ao espectador, através de um enredo inverossímil, uma doutrina espiritualista que tem o cheiro da superstição mais rala. Taquemos livros de Nieztsche nele!"


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"Mas nem tudo é esoterismo em Caótica Ana e elementos do bom-e-velho Medem comparecem aqui para redimi-lo um pouco. O diretor, que se notabilizou por conseguir inserir cenas de um erotismo sofisticado e altamente plástico em filmes que permaneciam sempre de muito bom-gosto (as cenas “pornô” em Lucia e o Sexo não parecem o supra-sumo do que deveria ser uma “estética erótica refinada”?), prossegue na mesma toada neste longa. A linda Manuela Vallès tem seu corpitcho mui apreciável retratado várias vezes em nus artísticos muito bonitos, que mais agradam aos olhos do que causam ereções. Ponto pra ele por não ficar o tempo todo envolvido com os fantasmas e os transes hipnóticos e fazer seus pousos na carnalidade do corpo humano real. Ainda mais considerando-se o talento que Medem tem para filmar lindamente o corpo feminino.

O diretor só ultrapassa, com ousadia inédita, a barreira do politicamente correto e da estética-de-bom-tom no fim do filme, quando estoura na tela uma surpreendente cena à la Pasolini que envolve defecação e “terrorismo sexual”. Pode até soar desconexo que a personagem, de repente, resolva praticar um ato de punição simbólica contra um big-shot do Governo americano responsável pelas guerras no Iraque e no Afeganistão. Quem imaginava que Julio Medem, cineasta chiquérrimo e sempre tão preocupado com o bom-gosto, criasse uma cena que não ficaria mal em Salò ou Os 120 Dias de Gomorra? Depois de tanto esoterismo e superstição, essa cena redime um pouco o cineasta, que tem seu momento de “enfant terrible” e, numa fina travessura, constrói uma cena de simbolismo claro: ele está cagando no olho de George W. Bush.

Sua intenção com Caótica Ana, afinal de contas, parece ter sido criar com esta personagem uma espécie de mulher arquetípica, símbolo da opressão feminina de dois milênios, e que afinal de contas consegue, à entrada do século 21, levantar-se em revolta e não pagar com a própria vida por sua insubmissão. As feministas, pois, tem tudo para vibrar, até porque o filme está repleto de um certo endeusamento da mulher e uma sugestão de que Ana será o começo de uma longa linhagem de bons filhos. Afinal de contas, como se o filme já não transbordasse de pretensão, Caótica Ana, como era até de se prever num filme tão mísitico, se abre para uma dimensão utópica. Ele aponta para a necessidade da recuperação de uma cultura matriarcal, de um equilíbrio mais harmonioso entre o yin e o yang e parece ainda sugerir que a personagem criada é de um caráter mítico, digna de ser estudada por discípulos de Joseph Campbell."


LEIA TUDO AQUI...
parte 1 -
parte 2

(confira aqui a programação do filme pra Sampa)