terça-feira, 22 de julho de 2008

:: o primeiro grito a gte nunca esquece ::


Estreei na Revista O Grito! com uma resenha sobre o premiado "O Segredo do Grão", filme francês que papou uma pá de Césares no ano passado e estreou no Brasil há pouco (confiram a programação de Sampa). Agradeço ao Rafael Dias, editor de conteúdo do site, pelo convite e pelo incentivo à entrar pra turma. Vou estar escrevendo mais sobre cinema e literatura para essa primorosa revista eletrônica, feita por um monte de gente legal, com um visú pra lá de firmeza e que já entra no seu 2o ano de vida cada dia melhor. Eu expandindo meus negócios: agora eu grito, depredo, mumifico e até estou envolvido com Ligas de Senhoras Católicas... =D

alguns trechinhos do meu texto:

"O
que salta aos olhos, de cara, como uma peculiaridade especial do filme, é que a câmera de Kechiche parece sempre vorazmente ansiosa pelo contato carnal com os seres que retrata. É como se esta câmera fosse uma criatura faminta por toques e carícias, que quisesse acariciar a pele e os pêlos de todas as pessoas que encontra pelo caminho, sem muito pudor de incomodar ou constranger o retratado. Grande parte de O Segredo do Grão é composto por close-ups de câmeras seguradas na mão que vão bem pertinho do rosto dos personagens enquanto eles dialogam. Isso gera uma longa procissão de expressões das mais diversas numa linda exploração arqueológica da geografia dos rostos humanos.

Rugas, pintas, poros, verrugas, fios de barba, cicatrizes, olheiras e demais peculiaridades são captados com minúcias por uma câmera que parece crer ser possível encontrar beleza em qualquer cara e qualquer corpo. Generosa, humana e cálida na atenção que dispensa ao ser humano que capta e registra, a câmera de Kechiche é como uma prova viva do humanismo e da sensibilidade de quem está por detrás dela. É sempre de muito perto que enxergamos tanto os sorrisos quanto as lágrimas, tanto os lábios quanto os umbigos, num procedimento de câmera que, “colando” em seus personagens, impede que o espectador assuma uma posição de voyeurismo distanciado e de frieza analítica. Estamos sempre jogados no epicentro dos relacionamentos e dos diálogos, observando-os “de dentro” e de muito perto, como participantes ativos das acontecências. No meio do incêndio. Sem cordões de isolamento nos separando das vidas que testemunhamos.

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É compreensível que se coloque o filme na linhagem da escola neo-realista, como fizeram alguns críticos, que enxergaram em O Segredo Do Grão muitos dos elementos que Vittorio De Sica, Roberto Rosselini, Luchino Visconti e outros cineastas de peso utilizaram para a constituição desta que foi uma das mais representativas vanguardas cinematógraficas da década de 1940-50. Mas se os filmes neo-realistas, em sua origem, estavam mais centrados no retrato das agruras sociais da Itália do pós-2a Guerra, o filme de Kechiche centra fogo muito mais na relação difícil entre os imigrantes africanos e os franceses nativos numa cidade portuária do Mediterrâneo. O oba-oba pra cima da globalização e da União Européia está completamente ausente de O Segredo do Grão, que retrata como, mesmo unificada por uma moeda única e estável, e tornada mais transitável pelas fronteiras cada vez mais permeáveis, a Europa prossegue tendo relações problemáticas com as nações herdeiras do colonialismo. Como é bem sabido, os povos marginalizados ainda sofrem para viverem dignamente longe de seus países de origem e infelizmente a xenofobia ainda não ficou demodê na gloriosa nação de Napoleão…

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O Segredo do Grão pode ser visto como um drama de uma cultura marginalizada ancorada num porto do Primeiro Mundo, sem saber se receberá permissão de ficar ou se será expulsa e mandada de volta pra casa. Por trás da historinha aparentemente simples de uma família toda envolvida no projeto de transformar um restaurante-sobre-as-águas num sucesso comercial está toda esta problemática social: uma cultura excêntrica que procura firmar raízes no solo Europeu, exigindo reconhecimento e dignidade, e só conquistando-os a duras penas.

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O Segredo do Grão é, pois, uma obra de um desfecho extremamente original, indefinível nos termos de final “feliz” ou “infeliz”, e que coroa mais uma magistral obra-de-arte do cinema francês moderno. Aqui se encontra um daqueles desfechos mais adequadamente apelidados de “final em suspenso”, tão típico do cinema de arte e tão incomum no cinema comercial, em que a situação é deixada irresolvida – mais ou menos como num romance de Kafka. Tudo se passa como se o realmente importante não fosse dar ao espectador a satisfação barata de uma resolução consoladora, ou o soco no estômago de um desastre final. O realmente relevante é meramente descrever, em minuciosos 151 minutos de brilhantismo cinematográfico fino, a longa e dura luta pela vitória. Se, no final, esses personagens triunfaram ou fracassaram parece questão secundária e inadequada de se colocar – o crucial é que lutaram, perseguindo a construção de um sonho que sempre esteve ameaçado de ruir ou ser demolido, mas que continuou sendo perseguido com obstinação. É como se o filme nos dissesse que a verdadeira beleza e a verdadeira nobreza está nesta luta, e que o resultado – vitória ou derrota – é um mero detalhe e uma tola ninharia. Pois, neste caso, lutar já é vencer."

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