sexta-feira, 18 de julho de 2008

:: we like movies that go "boom!" ::

da série: SUGESTÕES PARA UM MUNDO MELHOR

MULTIPLEX PARA OS BADERNEIROS,
VÂNDALOS E ATIRADORES DE PIPOCA

Tem gente que pensa que cinema é convento ou mosteiro. Outros pensam que tá mais pra puteiro. E os adeptos dessas duas escolas de pensamento não costumam se bicar, é claro. Se uma pequena minoria de cinéfilos e gentes-sérias reza por silêncio de cemitério no interior do "templo da sétima arte", outra parte da galera adora complementar a trilha sonora e os diálogos do filme com gargalhadas, comentários, mastigação pipoquística e chupação de finzinho de refrigerante.

O bem-estar social exige, portanto, a instauração de um apartheid entre aqueles que vão ao cinema querendo viver uma edificante experiência espiritual-introspectiva-meditativa e os outros, que são maioria, que vão para se divertir ruidosamente. Que não se enganem: essa minha sugestão-para-um-mundo-melhor e uma convivência-humana-menos-hostil não representaria um ato de segregação preconceituosa. Não estou dizendo quem tá certo ou quem está errado, até porque eu sou torcedor eventual dos dois times: num filme cult francês ou romeno prefiro o silêncio respeitoso do público, mas num blockbuster bestalhão sou totalmente a favor de um cinema em polvorosa e cheio de som e fúria. Mas como é dificílimo conciliar os desejos do público, o mais simples seria criar multiplex onde vigoram diferentes costumes comportamentais - cinemas mosteiro e cinemas puteiro! Eis aí o âmago desta minha profundíssima sugestão sociológica para a construção da Utopia. "Um outro mundo é possível...".

Essa idéia me surgiu outro dia quando eu e a Carol 'távamos tagarelando alegres e contentes no cinema, antes do "Estômago" começar (a passar, e não a roncar), e aí fomos atacados verbalmente por um tiozão desequilibrado exigindo bico fechado. Small talk pré-filme, aliás, é um costume saudável e digno de respeito, aceito na sociedade civilizada como algo sem dano algum aos Valores Ocidentais, o que não é compreendido por alguns aborígenes raivosos. Sim, sofremos ataques de um verdadeiro vândalo do moralismo cinematográfico, defensor da sala de cinema como um "refúgio budista" feito do silêncio mais incorruptível! Fiodaputa. Fiquei tão revoltado por ter sido - e na maior grosseria - convidado a fechar a matraca no cinema (e ainda eram os trailers!) que tive estes ímpetos sociológico-revolucionários de remodelar todo o "Sistema", remediando esta terrível luta de classes, e quase que me levanto, subo na poltrona, tiro meu megafone do bolso e explodo em flamejantes discursos...

Na minha fantasia eu era o Lênin ou o Che Guevara das salas de cinema! O inaugurador do bolchevismo dos multiplex! O estourador dos velhos cânones comportamentais carolas! Em altos brados, conclamava: "Baderneiros, verborrágicos e gargalhantes de todo mundo, uni-vos! Exigemos salas de cinema punk, onde quem quiser matraquear o filme todo possa fazê-lo sem medo de represálias! Que se criem "chiqueiros cinematográficos" para deleite dos zoneadores e atiradores de pipoca! Que as freirinhas e os meditativos dos multiplex assistam filmes em cabanas no meio da mata!"

Porque, do mesmo modo que, segundo João Gilberto, os desafinados também tem coração, e todo o direito do mundo de cantar, igualmente é um fato reconhecido por todos os humanistas: os bagunceiros também são gente...

* * * * *

E por falar em cinema [como espaço físico e não como forma-de-arte] uma coisa que nunca entendi direito são aqueles "filminhos pré-filme" em que a empresa dona da sala, generosa como uma mãe que procura dissipar os temores do filhinho aterrorizado, nos garante que estamos em total segurança e não há com quê se preocupar. É que me parece um discurso do tipo: "Não, filho, fantasmas não existem, Bicho Papão também não, e nenhuma quadrilha de bandidos vai entrar aqui em casa e matar todo mundo pra roubar as jóias...". Ou seja, algo dito na intenção de tranquilizar, mas que só revela e transmite a nóia doentia de quem fala.

Pois em certos cinemas ainda passam uns trecos tão paranóicos e alarmistas que chega a ser bizarro. Eles nos garantem: os extintores de incêndio são abundantes e os hidrantes estão localizados em lugar de fácil acesso. As saídas de emergência ficam sempre desobstruídas e têm portas corta-fogo. A Brigada de Incêndio está treinada e preparada para servir-nos com a máxima agilidade. Em caso de pane elétrica, luzes de emergência se acenderão. Favor não entrar em pânico! Só falta dizer que máscaras de oxigênio cairiam do teto em caso de turbulência ou despressurização da cabine ou que a Tropa de Choque está prontinha para intervir no caso de homem-bomba ou serial-killer. Que negada nóinha.

Antes eu imaginava que a intenção secreta desses filminhos repletos de alarmismo era deixar o cinema parecendo um lugar ultra perigoso, de onde não sabemos se sairemos vivos, dando a sensação de embarcar num avião de uma companhia áerea pouco confiável que pode nos fazer explodir no chão a qualquer momento. Você assiste o negócio e fica achando que o cinema pode pegar fogo a qualquer hora e uma evacuação serelepe, através das chamas e nuvens de fumaça negra, pode eclodir justo naquela cena massa do filme...

Mas é claro que hoje em dia não tem mais nenhum sentido ver perigo no cinema. Só em tempos muito remotos é que temores eram justificados pois o projetista, se dormisse no ponto, corria o risco de incendiar o rolo, ver as chamas tomando sua salinha e fritar os espectadores num incêndio monumental como aquele de Cinema Paradiso. Mas hoje em dia, com projeção digital e computadorizada, um cinema pegar fogo é algo tão improvável quanto dois raios caírem na cabeça do mesmo desafortunado.

Pelo menos isso cria um clima que resgata aquele prazer infantil perdido que sentíamos naquela época em que o escurinho da sala ainda tinha aquele gosto de coisa clandestina... Eu, quando era pirralho e ia com os amigos me deliciar com as carnificinas da série Pânico, com os primeiros do Tarantino ou com algum soft-porn que chegava aos cines de shopping, sentia um pouco do sabor de pecado neste ato tão inocente de ir ao cinema. Que prazer era ter 12 anos de idade e conseguir entrar nos filmes com censura 18!

Mas acho que a explicação mais simples para estas peças de propaganda paranóica exibidas pelos grandes cinemas não é, conforme o zeitgeist americano atual, gerar uma Cultura do Pânico. Acho que é bem mais simples. Eles ficam esfregando nossos narizinhos de consumidores nos extintores, hidrantes, saídas de emergência e brigadas de incêncio que há para nossa proteção e bem-estar só para fingir que estão justificados no preço pra lá de abusivo que cobram no ingresso. Eles metem a faca e tem a delicadeza de explicarem porquê é que têm razão com o roubo! Mó sacanáge!