segunda-feira, 1 de junho de 2009

:: colecionador de palavras preciosas (II) ::


ou PEQUENO INVENTÁRIO DE GRIFOS

"Epitáfio é uma frase que se grava numa lápide, contando algo sobre o enterrado. Já escolhi a minha. Não é original. É a mesma de Robert Frost: 'Ele teve um caso de amor com a vida...'. Quintana, sabendo que a morte o esperava em alguma esquina, escolheu a sua: 'Eu não estou aqui...'. Já imaginaram? Caminhando pelo cemitério, as lápides se sucedendo graves e fúnebres. 'Aqui jaz', 'Aqui jaz...'. De repente olhos batem na frase 'Eu não estou aqui'. É possível evitar o riso? É possível evitar amar quem assim brincou com a própria morte?" (RUBEM ALVES, em especial sobre Quintana na Revista Língua, número 8)

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"A duração, seja os séculos para as civilizações, seja os anos e dezenas de anos para o indivíduo, tem uma função darwiniana de eliminação do inapto. O que é apto a tudo é eterno. Só nisso reside o valor do que chamamos de experiência. Mas a mentira é uma armadura pela qual o homem frequentemente permite ao inapto nele mesmo sobreviver aos acontecimentos que, sem essa armadura, o matariam (assim como o orgulho sobreviver às humilhações), e essa armadura é como que secretada pelo inapto para evitar o perigo (o orgulho, na humilhação, avoluma a mentira interior). Existe na alma como que uma fagocitose: tudo o que é ameaçado pelo tempo secreta mentira para não morrer, e à proporção do perigo de morte. Por isso não há amor à verdade sem um consentimento sem reservas à morte." (SIMONE WEIL, A Gravidade e a Graça).

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"Ninguém chora os miseráveis. 'Marginal que é marginal' morre sozinho, ali onde a traição alcança e a desova é fácil. A misericórdia, entre nós, também é 'concentrada' e não sobra para mortos sem grife. A contrição dos 'sem nada' é, portanto, insolente e desbocada. É protesto e sarcasmo, raiva e acusação. Como exigir piedade de quem viveu fora dela?" (...) "Estamos cegos a ponto de não ver que o desdém com que tratamos os mais fracos tem retorno? Que mortes por descaso voltam sob a forma de sequestros, assaltos, tráfico, assassinatos ou de farsa religiosa...?" (...) "...[nesta nossa sociedade] o interesse pela vida privada sobrepõe-se, de longe, a qualquer preocupação com a vida pública. Meu salário; meu emprego; minha família, meu sexo; meu sentimento, mon petit bonheur, enfim, é o que importa. Mas, até aí, tudo é mais ou menos familiar. Sabemos que política e bem comum são coisas do passado; coisas de intelectuais 'fissurados' em miséria. Dinheiro, saúde e sucesso são o fetiche da fórmula brasileira da felicidade. Aqui, como em outras ocasiões, os que estão mais perto do inferno são os que se acham com um pé no céu." (...) "Pois quanto mais individualistas somos, mais ficamos vulneráveis às inevitáveis dores do mundo. Desfizemos a teia de solidariedade que, pelo menos idealmente, poderia nos ajudar em momentos difíceis, e o único remédio contra o sofrimento, quando estamos sozinhos, é 'endurecer perdendo a ternura'..." (JURANDIR FREIRE COSTA, Razões Públicas e Emoções Privadas)

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"Quando eu era criança
Sem saber meu caminho
Voltei meus olhos errantes
Para o sol, como se lá em cima houvesse
Um ouvido para escutar meu lamento,
Um coração como o meu
Para cuidar dos atormentados.

Quem me ajudou
Contra a cruel insolência dos Titãs?
Quem me resgatou da morte, da escravidão?
Não fizeste tudo isto sozinho,
Sagrado coração em brasa?
E jovem e bom, brilhavas
Enganado, agradecido pelo resgate
Daquele que dormia lá em cima?

Eu, honrar-te? Por quê?
Algum dia aliviaste o sofrimento
dos oprimidos?
Algum dia secaste as lágrimas dos amedrontados?
Não fui levado à idade adulta
Pelo todo-poderoso Tempo
E pelo destino eterno,
Meus mestres, e os teus?

Imaginavas por acaso
Que eu fosse odiar a vida
E fugir para o deserto
Porque nem todos
Os meus sonhos em botão floresceram?

Aqui continuo sentado, forjando homens
A minha própria imagem
Uma raça para ser como eu
Para sofrer, chorar,
Deleitar-se e alegrar-se
E para desafiar-te,
Como eu.

GOETHE


(como citado por Susan Neiman em Evil In Modern Tought)