quarta-feira, 20 de maio de 2009

:: Dawkins ::


RICHARD DAWKINS,
"Deus: Um Delírio"
[ainda em estado de rascunho, vai aí um capítulo da minha pesquisa de iniciação científica...]

“Não farei ofensas gratuitas”, diz Dawkins no fim de seu prefácio, tentando acalmar os leitores mais vulneráveis aos seus ataques. “Mas tampouco usarei luvas de pelica para tratar da religião com mais delicadeza do que trataria qualquer outra coisa” (54). O trecho é emblemático do tipo de atitude adotada por ele neste polêmico “panfleto” anti-religioso que é Deus: um Delírio: atitude sempre incisiva, ousada, provocativa, ponta-firme e peçonhenta. Richard Dawkins é devastador contra o tabu social que exige um respeito exacerbado pela religião. “Minha linguagem só soa contundente e destemperada por causa da estranha convenção, quase universalmente aceita, de que a fé religiosa é dona de um privilégio único: estar além e acima de qualquer crítica”, aponta (14). “Uma pressuposição disseminada, aceita por quase todos em nossa sociedade – incluindo os não religiosos – é que a fé é especialmente vulnerável às ofensas e que deve ser protegida por uma parede de respeito extremamente espessa...” (45)

O biólogo darwinista inglês, um dos cientistas mais célebres das últimas décadas (quase um pop-star midiático, como se tornaram também Carl Sagan e Stephen Hawking), é um dos representantes mais importantes da Nova “Frente Militante Atéia” no mundo intelectual contemporâneo. E militante é o nome mais adequado para apelidar essa turma - que inclui ainda Michel Onfray e Christopher Hitchens, entre outros de menor repercussão. Pois Dawkins é um daqueles autores que está engajado numa cruzada de des-mitologização e de ataque frontal às superstições e religiões. “Condeno o sobrenaturalismo em todas as suas formas”, diz ele. “Não estou atacando nenhuma versão específica de Deus ou deuses. Estou atacando Deus, todos os deuses, toda e qualquer coisa que seja sobrenatural, que já foi e que ainda será inventada.” (63)

Dawkins abertamente se propõe a persuadir seus leitores a perceberem a verdade de sua posição anti-religiosa. Como ele mesmo confessa, quer que Deus: Um Delírio tenha o efeito de uma “desconversão” e conclama todos os seus leitores ao abandono completo da religião. Sem meias palavras, confessa que espera de seu livro que “os leitores religiosos que o abrirem serão ateus quando o terminarem” (29). Escrito para o grande público, e não para o círculo fechado da Academia, o livro conquistou vasta repercussão, tornando-se best seller em vários países e arrancando elogios rasgados de intelectuais de peso (como Steven Pinker e Ian McEwan), ao mesmo que despertou violentas reações (inclusive em livro) e rendeu ao autor cáusticos apelidinhos (foi taxado, por exemplo, de “o rottweiller de Darwin”).

Na obra de Dawkins, a religião não está aí para ser estudada com frieza, esmiuçada em artigos acadêmicos, respeitada com tolerância e condescendência, mas é, sobretudo, um fenômeno a ser combatido e apaixonadamente atacado. Dawkins é um darwinista em colisão direta contra todo e qualquer criacionista; um cientista que não crê na possibilidade de qualquer tipo de conciliação entre o universo científico e o religioso; um ateu convicto de que a fé é causa de muito mais males do que bens e que estaríamos todos passando muito melhor sem ela... Razão que faz com que muitos crentes o considerem intolerante, arrogante, pouco compreensivo, incapaz de manifestar o devido respeito à história da teologia e da religião – tanto que Dawkins pôde ser chamado por alguns de “fundamentalista ateu”. O “resumo” que ele arrisca das idéias de Agostinho, por exemplo, digamos a verdade, é constrangedora de tão rasa, tão preconceituosa, demontrando que ele é capaz de fazer tábula rasa de um grande teológo, reduzido a escombros em segundos por sua pena cheia de veneno...


Por isso até concordo que Dawkins poderia ser mais sereno, menos intempestivo, e que teria seus argumentos ouvidos com mais tolerância pelos devotos se não se colocasse sempre numa posição tão hostil frente ao ser humano que crê. Quem assistiu ao documentário de 2 horas que Dawkins escreveu e apresentou na TV inglesa, com o bombástico título Root Of All Evil (Raiz de Todos Os Males), sabe o quanto ele é capaz de perder a compostura quando discute com fanáticos e dogmáticos religiosos. Ele escolhe para aparecerem em seu filme justamente os exemplos mais grotescos de perversidade religiosa: um sujeito que defende que as adúlteras merecem ser apedrejadas; um professor que quer inculcar o medo do inferno nas criancinhas a todo preço; um pastor que tem as idéias mais toscas e falsas sobre a evolução; um muçulmano fanático que acredita que o ateu está com a alma irremediavelmente condenada... Dawkins sempre insiste em sublinhar, por mil exemplos, quão estúpidas, intolerantes e mortíferas podem se tornar as pessoas quando se deixam cegar por uma fé ortodoxa e delirante, e é essa raivosa convicção incendiária, que por vezes peca até pelo excesso de intolerância, o que empresta, ao mesmo tempo, tanto poder ao seu discurso, e ergue tanta revolta em seus detratores.

Deus, Um Delírio é um livro-manifesto intencionalmente persuasivo, que procura converter os crentes à descrença e que conclama os ateus tímidos a saírem do armário. Dawkins ostenta nessas páginas um “orgulho ateu” que parece até ter a pretensão de deflagar um movimento social parecido com o do Orgulho Gay ou do Orgulho Negro. “Não há nada de que se desculpar por ser ateu”, garante ele. “Pelo contrário, é uma coisa da qual se deve ter orgulho, encarando o horizonte de cabeça erguida, já que o ateísmo quase sempre indica uma independência de pensamento saudável e, mesmo, uma mente saudável.” (27)


[INVENTÁRIO DOS MALEFÍCIOS DA RELIGIÃO]

Em Deus, Um Delírio, ele “carrega nas tintas” para descrever todos os imensos malefícios que enxerga na religiosidade:

“A religião pode colocar em risco a vida do indivíduo devoto, assim como a de outras pessoas. Milhares de pessoas já foram torturadas por sua lealdade a uma religião, perseguidas por fanáticos por causa de uma fé alternativa que em muitos casos é quase indistinguível. A religião devora recursos, às vezes em escala maciça. Uma catedral medieval era capaz de consumir cem centúrias de homens em sua construção, e jamais foi usada como habitação, ou para qualquer propósito declaradamente útil.Não era uma espécie de cauda de pavão arquitetônica? Se sim, quem era o alvo da propaganda? A música sacra e os quadros religiosos monopolizaram em grande parte o talento medieval e renascentista. Gente devota morreu por seus deuses e matou por eles; chicoteou as costas até sangrar, jurou o celibato de vida inteira ou o silêncio solitário, tudo a serviço da religião. Para que tudo isso? Qual é o benefício da religião?” (218) “Por que os seres humanos jejuam, ajoelham-se, fazem genuflexões, autoflagelam-se, inclinam-se maniacamente para um muro, participam de cruzadas ou tomam parte em práticas dispendiosas que podem consumir a vida e, em casos extremos, eliminá-la?” (220)

Mas por que tanto fervor e tanto ardor posto nesta “guerra ideológica” contra a religião? É o que podem argumentar alguns religiosos, que gostariam de ser deixados em paz com suas crenças sem terem-nas atacadas de modo tão vigoroso por Dawkins. Podemos imaginar a contra-revolta dos crentes contra Deus, Um Delírio em termos como: “por que não deixar cada um acreditar no que quiser, já que a crença religiosa, dizem eles, é um assunto da esfera privada? Quem são vocês, ateus desrespeitosos e infernais, para ousarem dizer que não temos o direito de crer, num mundo em que se deveria respeitar acima de tudo a liberdade de pensamento e de crença de todos os indivíduos?”

Depois de ler o livro de Dawkins, torna-se óbvio e absolutamente inegável que a religião não é, nem nunca foi, um assunto restrito à esfera privada e que age diretamente sobre a vida social planetária. Para ilustrar isso, talvez a melhor pedida seja o seguinte parágrafo, onde Dawkins aponta e enumera a presença religiosa em eventos políticos, sociais, culturais e históricos de relevância que derrubam suficientemente a tese do “respeito à esfera privada” como fundamento do direito à crença:

“Imagine, junto com John Lennon, um mundo sem religião. Imagine o mundo sem ataques suicidas, sem o 11/9, sem o 7/7 londrino, sem as Cruzadas, sem caça às bruxas, sem a Conspiração da Pólvora, sem a partição da Índia, sem as guerras entre israelenses e palestinos, sem massacres sérvios/croatas/muçulmanos, sem a perseguição dos judeus como 'assassinos de Cristo', sem os 'problemas' na Irlanda do Norte, sem 'assassinatos em nome da honra', sem evangélicos televisivos de terno brilhante e cabelo bufante tirando dinheiro de ingênuos ('Deus quer que você doe até doer'). Imagine o mundo sem o Talibã para explodir estátuas antigas, sem decapitações públicas de blasfemos, sem o açoite da pele feminina pelo crime de ter se mostrado um centímetro...” (24)

Os exemplos poderiam ser multiplicados até o excesso:

- escritores brilhantes tendo sua liberdade de expressão atacada de modo grotesco por teocracias fundamentalistas extremamente intolerantes (só lembrar que Salman Rushdie foi condenado à morte pelo aiatolá xiita do Irã depois de publicar um livro – Os Versículos Satânicos - que qualquer crítico literário sensato considera um brilhante romance contemporâneo!);

- psicopatas americanos botando fogo em clínicas de aborto, se dizendo militantes de um movimento "Pro-Life" que, ironicamente, já se mostrou bem Pro-Death quando um dos mais exaltados – Paul Hill - foi e assassinou um médico, sendo depois condenado à morte pela Justiça Americana;

- muçulmanos fanáticos entram em frênesi destrutivo por causa de charges engraçadinhas do profeta Maomé, publicadas pela imprensa da Dinamarca;

- sem falar que o Vaticano continua sustentando que usar a camisinha é pecado, ajudando a disseminar cada vez mais o vírus HIV, que já corrói o continente africano como uma imensa epidemia.

Isso mostra que Dawkins é um intelectual profundamente enraizado em seu próprio tempo, sendo que seu livro está repleto de casos que estiveram presentes na imprensa escrita e televisiva, com seus comentários sempre perspicazes e penetrantes.

* * * * *

[ ATEÍSMO, DEÍSMO, TEÍSMO E PANTEÍSMO]

Dawkins, antes de se posicionar enfaticamente entre os ateus, faz uma descrição sintética muito oportuna de seus opositores – os teístas, deístas e panteístas:

“Um teísta acredita numa inteligência sobrenatural que, além de sua obra principal, a de criar o universo, ainda está presente para supervisionar e influenciar o destino subsequente de sua criação inicial. Em muitos sistemas teístas de fé, a divindade está intimamente envolvida nas questões humanas. Atende a preces; perdoa ou pune pecados; intervém no mundo realizando milagres; preocupa-se com boas e más ações e sabe quando as fazemos (ou até quando pensamos em fazê-las). Um deísta também acredita numa inteligência sobrenatural, mas uma inteligência cujas ações limitaram-se a estabelecer as leis que governam o universo. O Deus deísta nunca intervém depois, e certamente não tem interesse específico nas questões humanas. Os panteístas não acreditam num Deus sobrenatural, mas usam a palavra Deus como sinônimo não sobrenatural para a natureza, ou para o universo, ou para a ordem que governa seu funcionamento. Os deístas diferem dos teístas pelo fato de o Deus deles não atender a preces, não estar interessado em pecados ou confissões, não ler nossos pensamentos e não intervir com milagres caprichosos. Os deístas diferem dos panteístas pelo fato de que o Deus deísta é uma espécie de inteligência cósmica, mais que o sinônimo metafórico ou poético dos panteístas para as leis do universo. O panteísmo é um ateísmo enfeitado. O deísmo é um teísmo amenizado.” (43)

Sua posição, pelo contrário, é definida assim: “Um ateu é alguém que acredita que não há nada além do mundo natural e físico, nenhuma inteligência sobrenatural vagando por trás do universo observável, que não existe uma alma que sobrevive ao corpo e que não existem milagres – exceto no sentido de fenômenos naturais que não compreendemos ainda.” (37) Quanto ao “Deus dos físicos”, presente por exemplo na visão de Einstein, ele o descreve com mais carinho e menos violência: “O Deus metafórico ou panteísta dos físicos está a anos-luz de distância do Deus intervencionista, milagreiro, telepata, castigador de pecados, atendedor de preces da Bíblia, dos padres, mulás e rabinos, e do linguajar do dia-a-dia.” (44)

Já em relação ao agnosticismo, que em linguagem chula é o nome que se dá aos que “ficam em cima do muro”, não afirmando nem negando a existência de Deus, evidentemente não é a posição de Dawkins e ele também a combate com força. A posição agnóstica radical se caracteriza pela defesa de uma completa “suspensão do juízo”, que sustenta que o homem possui um aparelho mental completamente incapacitado para responder de modo satisfatório à questão. O que “implica que a ciência não pode nem fazer juízos de probabilidade sobre a questão” (89), o que, Dawkins enfatiza, é uma “falácia extremamente disseminada” - mas que não passa de falácia.

O agnosticismo é uma doutrina que não se sustenta de modo algum quando se baseia na afirmação de que a possibilidade de que Deus exista ou de que Ele não exista é exatamente a mesma – 50% para cada lado. A Ciência está sim capacitada para investigar as evidências de sua presença ou ausência no Universo e formular um juízo de probabilidade – que, como todos sabem, aproxima a existência do Deus pessoal e transcendental dos monoteísmos da implausibilidade absoluta. A Ciência tem sim o legítimo direito de trabalhar com as duas hipóteses contrárias – Deus existe, Deus não existe – e ver qual delas tem um grau maior de possibilidade de ser verdadeira. “Um universo em que estamos sozinhos, com exceção de outras inteligências de evolução lenta, é um universo muito diferente daquele com um agente orientador original cujo design inteligente seja responsável por sua existência.” (93)

De fato, não se pode tirar fotos de Deus, gravar a voz de Deus, sentir na pele o toque da mão de Deus, encontrar Deus num microscópio de laboratório – está fora do domínio da física comprová-lo. Desde tempos imemoriais a humanidade já reconhece que esta é uma questão metafísica – ou seja, que está além dos poderes da física. Mas o fato da existência de Deus não poder ser empiricamente comprovada, destaca Dawkins, não significa que não se possa dizer nada sobre o grau de plausibilidade de que Ele exista.

É difícil comprovar a inexistência de qualquer coisa que seja – como na anedota de Bertrand Russell, tente comprovar que não existe um bule orbitando ao redor da Terra, pequeno demais para ser percebido pelos nossos satélites e radares! Tente comprovar que pequenos anõezinhos alienígenas não estão nesse exato momento fazendo sua versão da dança da chuva em algum planeta da Galáxia ainda desconhecida de Tchump-Tchomp! Nenhum pai consegue comprovar de fato que não existem as criaturas que a imaginação fértil de seu filho consegue fabricar, mas não deixa de ser altamente implausível – ou até mesmo impossível – que esses seres fantásticos existam. Com a religião é o mesmo. Como comprovar a inexistência de algo tão intrinseca e obviamente fantástico quanto um Papai do Céu, que mora “fora do Universo”, que pode tudo, sabe tudo, está em todo lugar e em todos os tempos, e ainda assim é sempre invisível, intocável, inouvível e inachável?

“Ninguém se sente obrigado a comprovar a inexistência dos milhões de coisas fantásticas que uma imaginação fértil e brincalhona é capaz de sonhar. Eu me divirto com a estratégia, quando me perguntam se sou ateu, de lembrar que o autor da pergunta também é ateu no que diz respeito a Zeus, Apolo, Amon Rá, Mithra, Baal, Thor, Wotan, o Bezerro de Ouro e o Monstro do Espaguete Voador. Eu só fui um deus além”. (84) “Sou agnóstico na mesma proporção em que sou agnóstico a respeito de fadas escondidas no jardim.” (80)

* * * * *

[O ARGUMENTO DO DESIGN INTELIGENTE]

Um dos mais clássicos e recorrentes dentre os argumentos teístas que procuram comprovar a existência de Deus sustenta a seguinte noção: que há certas coisas no Universo cuja extrema complexidade teria que ser o resultado de um esforço criador de uma entidade poderosa e inteligente. Um órgão tão inacreditavelmente complexo como o olho de uma águia poderia ter surgido como mero efeito da evolução das espécies ou temos que supor necessariamente um designer divino? E seres humanos absolutamente geniais – pensemos em Shakespeare ou Mozart – poderiam ser algo a não ser obras de mestre de um Deus genial, que com eles acertou na mosca em seu laboratório de criaturas? Há um personagem de Aldous Huxley que, engraçadinho, prova a existência de Deus tocando um quarteto de cordas de Beethoven...

Mas “as pessoas que partem da estupefação pessoal com um fenômeno natural direto para a invocação apressada do sobrenatural não são melhores que os tolos que vêem um ilusionista dobrando uma colher e assumem que se trata de um 'paranormal'.” (176)

Claro que, para rebater o argumento do design inteligente, é Charles Darwin que Dawkins era chamar em seu auxílio: “O argumento do design é o único que ainda é regularmente usado hoje em dia, e ainda soa para muita gente como o argumento determinante do nocaute. (...) Provavelmente jamais houve uma derrubada tão devastadora de uma crença popular através de um raciocínio inteligente quanto a destruição do argumento do design perpetrada por Charles Darwin. Foi totalmente inesperado. Graças a Darwin, já não é verdade dizer que as coisas só podem parecer projetadas se tiverem sido projetadas. A evolução pela seleção natural produz um excelente simulacro de design, acumulando níveis incríveis de complexidade e elegância.” (115)


[O BOEING 747 DEFINITIVO]

“Em sua forma tradicional, o argumento do design é certamente o mais popular da atualidade a favor da existência de Deus e é encarado, por um número incrivelmente grande de teístas, como completa e absolutamente convincente.Ele é realmente um argumento fortíssimo e desconfio que irrespondível – mas exatamente na direção contrária da intenção dos teístas. O argumento da improbabilidade, empregado de forma adequada, chega perto de provar que Deus não existe. O nome que dei à demonstração estatística de que Deus quase com certeza não existe é a tática do Boeing 747 definitivo.” (154)

A discussão é: um furacão, ao passar por um ferro-velho, poderia construir um Boeing 747? Em termos mais abstratos: poderia o acaso construir, tendo como matéria-prima um amontoado de materiais, algo tão complexo quanto um avião moderno? Obviamente a resposta é não. E os teístas adoram transpor esse exemplo para o domínio da vida, “para se referir à evolução dos seres mais complexos”: “a chance de se montar um cavalo, um besouro ou um avestruz plenamente funcionais misturando aleatoriamente suas partes pertence ao mesmo terreno do 747. Esse, em termos muito resumidos, é o argumento favorito dos criacionistas – um argumento que só poderia ter sido pensado por uma pessoa que não entende o essencial da seleção natural: alguém que acha que a seleção natural é uma teoria do acaso, quando se trata do contrário” (155)

O furacão que constrói de repente um Boeing é uma péssima metáfora para a descrição do procedimento da seleção natural, já que nesta nada acontece repentinamente – muito pelo contrário! “O entendimento profundo do darwinismo nos ensina a desconfiar da afirmação fácil de que o design é a única alternativa para o acaso, e nos ensina a buscar rampas gradativas de uma complexidade que aumente lentamente.” (156)

Portanto, quanto aos organismos mais magníficos e complicados que conhecemos, “é claro que não aconteceu por acaso” (164). “O design inteligente não é a alternativa adequada para o acaso. A seleção natural não é apenas uma solução parcimoniosa, plausível e elegante; é a única alternativa viável ao acaso a ter sido sugerida.” (164) Sem falar que supor um projetista inteligente não resolve o problema, mas nos coloca mais um: quem projetou o projetista? Hilda Hilst brincou com isso quando escreveu, sobre suas questões metafísicas de infância: “eu toda lilazinha me perguntando: mãe, Deus tem pai? Depois disso não parei mais...”.

A cegueira do teísta está em não ser capaz de imaginar um longo processo gradual de evolução, em que o poder do acúmulo impera. A natureza não dá saltos espantosos – faz tudo degrau a degrau. Como diz Dawkins, não se trata de subir num pulo só do pé da montanha até o cume, mas sim de pegar a “subida amena” (e lenta) até o topo. Até estruturas incrivelmente complexas, como olho do ser humano, podem ser explicadas como resultado de um processo de evolução natural que durou milhões e milhões de anos, lentamente desenhando e rascunhando organismos cada vez mais espantosos. “O próprio Darwin”, comenta Dawkin, “disse isso: 'Se fosse demonstrado que qualquer órgão complexo existisse e que ele não pudesse ter sido formado por numerosas, sucessivas e pequenas modificações, minha teoria absolutamente ruiria. Mas não consigo encontrar nenhum caso assim.' Muitos candidatos a esse santo graal do criacionismo já foram sugeridos. Nenhum resistiu à análise.” (170)

Por outro lado, considerado a imensidão do Universo, não se torna tão improvável assim que em pelo menos um dentre milhões de planetas as condições climáticas e químicas fossem favoráveis para o surgimento de complexos seres de carbono e água. “Já se estimou que haja entre 1 bilhão e 30 bilhões de planetas em nossa galáxia, e cerca de 100 bilhões de galáxias no universo. Eliminando alguns zeros por mera prudência, 1 bilhão de bilhões é uma estimativa conservadora do número de planetas disponíveis no universo.” (187) E o mais incrível: “Se a probabilidade de a vida surgir espontaneamente num planeta fosse de uma em um bilhão, mesmo assim esse evento embasbacadoramente improvável teria acontecido em 1 bilhão de planetas.” (187)

Também é bom frisar: a origem da vida foi um evento que só precisou ocorrer uma vez; já a evolução da vida é um “acontecimento” constante, cumulativo, que não pára jamais. Independentemente de com quantos planetas estejamos lidando, o acaso jamais seria suficiente para explicar a luxuriante diversidade de organismos complexos na Terra do mesmo modo que o utilizamos para explicar a existência da vida aqui. A evolução da vida é um caso completamente diferente do da origem da vida, porque, repetindo, a origem da vida foi (ou pode ter sido) um evento singular, que teve que acontecer apenas uma vez. A adaptação das espécies a seus diversos ambientes, por outro lado, ocorreu milhões de vezes, e continua ocorrendo.” (189)

“A seleção natural é o maior guindaste de todos os tempos. Ela elevou a vida da simplicidade primeva a altitudes estonteantes de complexidade, beleza e aparente desígnio que hoje nos deslumbram.” (109)“A seleção natural funciona porque ela é uma avenida de de mão única, cumulativa, para o aperfeiçoamento. Ela precisa de alguma sorte para ser iniciada, e o princípio antrópico dos 'bilhões de planetas' nos assegura tal sorte.” (191)


Dawkins comenta, em The Root OF All Evil, que a religião, além de oferecer explicações ilusórias, fictícias e deturpadas para os fenômenos da natureza, que só a razão e a ciência são capazes de desvendar de modo lúcido e confiável, diagnostica ainda que a fé torna as pessoas dependentes, intolerantes, infantilizadas e propensas à sérias dificuldades a lidar com o diferente. "People lean on their faith like a crutch", comenta, e já chegou a hora de retirar dos mancos suas bengalas para que eles passem a utilizar suas pernas atrofiadas! Ecoando a mensagem de Freud em “O Futuro de Uma Ilusão”, que chamava a humanidade a crescer e superar o infantilismo psíquico que é a crença religiosa, Dawkins diagnostica também que a fé deixa a humanidade "stuck in a permanent state of infancy". Sem falar do terrorismo com fontes religiosas, um dos mais graves problemas do começo deste século e do fim do último, que aparentemente só começou a causar os infindáveis estragos que certamente continuará a desencadear na geopolítica global. "Far from being beaten, militant faith is on the march, all around the world, with terrible consequences..." Que soem os alarmes!