quarta-feira, 6 de maio de 2009

:: revêries ::



::: REVÊRIES :::
(pedaços de mim, direto do diário)


REDEMPTION DAY

E um belo dia a gente chega a um certo porto onde enfim reina a calmaria. Com o olhar dulcificado, enxergamos com ternura o mar atravessado onde se agitam as ondas enfurecidas. Felizes com a jornada e seu bom termo. Por mais tormentas que tenhamos enfrentado, por mais ossos que tenhamos fraturado, por mais chagas que tenhamos sangrado, é com carinho que olhamos para a aventura enfrentada. Que nos conduziu a este porto sonhado. Onde enfim mordemos o fruto tão prometido e tão adiado. Pousados enfim num certo ponto presente que nos faz olhar para trás com o rosto ridente. E o coração, tornado contente. Ainda que nos lembremos de todas as tristezas padecidas. Ainda que carreguemos na pele as cicatrizes de nossos tombos. Ainda que restem no cuco os galos de nossos choques e trombos. Perdoamos então os caminhos trilhados por terem sido tão árduos e acidentados. Se nos trouxeram a este hoje, que todos os ontens sejam abençoados! E, se nos conduziram a este agora, que sejam celebrados todos os outroras!

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NÃO CESSAR DE NAVEGAR

Não que amar seja ancorar, descansar num porto, inventar um lago de límpidas águas que não correm. Sei bem que não. E sinto em mim uma vontade muito mais ardente de ser rio do que petrificar-me em estátua. Amar é um continuar a navegar, que a correnteza do tempo jamais cessa de correr, ainda que se possa sentir que agora, na jornada a dois, as tormentas são mais fáceis de enfrentar e as ondas não vão nos submergir. Há calmaria, não depois, mas em meio à tempestade! Quatro mãos firmes sobre o leme que atravessa os mares, ora revoltos e ora tranquilos, mas sempre moventes. Ainda que tenhamos nossas bússolas e mapas, tudo segue sendo aventura. Sabe-se lá que icebergs se interporão em nosso caminho? Que ventanias, que nevascas e maremotos, será que esperam por nós neste futuro invisível, insabível, do qual não vemos nada além de nossos medos, esperanças e desejos?

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"SPENT HALF A LIFE DECIDING WHAT WENT WRONG.
TRYING TO FIND OUT WHAT TOOK YOU SO LONG.
UNTIL YOU FEEL IT'S ALL PART OF SOME CRAZY SCHEME.
IT CONJOURS IN YOU MEMORIES
TILL YOU DISCOVER WHAT'S BEHIND THAT HILL..."
--- trail of dead, 'source Tags & Codes'

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NO POMAR

Não sou filho de Deus. Não passo de um fruto da terra.

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AMADA INCOMPLETUDE

Não somente não nascemos acabados, como também morreremos, todos, sempre, inacabados. "Que a morte nos encontre plantando nossas couves!", dizia Montaigne. Não choremos porque teremos que deixar a Terra com trabalhos pela metade e missões em andamento. Condenados estamos à incompletude, essa dádiva que nos salva de uma terrível satisfação que nos deixaria estagnados. Ser incompleto é uma glória! Pobres daqueles que, satisfeitos consigo mesmos, desistem de tentar ser mais. Pobres daqueles que, já achando que são muito, dispensam o contato - às vezes tão frutífero! - com o outro. E todos somos pouco. Ser homem é ser pouca coisa. E ter um perpétuo potencial de ir além. Além, não deste mundo, que é nossa gaiola, apesar dos foguetes e dos sonhos. Mas além da jaula do eu, onde tantos viveram trancafiados, como uma fera em seu cofre. O mundo, se tivesse rosto, deveria abrir um sorriso sempre que algo maravilhoso assim acontece: alguém que perde o medo de amar e vai. E ama.

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SER FELIZ NUM MUNDO ONDE INOCENTES SÃO FULMINADOS

Suspeito que nunca na vida estive tão feliz. E não daquelas felicidades tolas, de ficar dando risinhos à toa ou batendo palminhas para o Sol. Nada a ver com aquelas irritantes jovialidades de Poliana ou Mary Poppins... É muito mais como um largo sorriso secreto, aberto no fundo da minha alma, e cuja causa principal sei muito bem qual é: esse lindo presente em forma de mulher que a vida me trouxe e que eu não cesso de desembrulhar e de curtir, feito uma criança na manhã do 26 de Dezembro. Há essa sensação de repouso e serenidade após uma jornada tormentosa: pois procurar um amor é uma epopéia que deixa Homero no chinelo...

Minha alma me surpreende me fazendo sentir enternecimentos tão extremos, tão totais, que eu até me assusto de sentir algo tão bom e de que eu nem me sentia mais capaz. Agradeço a ela por levantar em mim, mesmo sem tentar, marés montantes tão gostosas de doçura e bem-querer. Na presença ou na ausência, junto ao mim ou à distância, ela tem sido um pequeno sol que me acalenta e me ilumina.

Mas é besteira pensar que essa felicidade barre porta afora, como cães pulguentos, todas as dores e todos os medos. Estou feliz e sofro. Estou feliz e tenho medo. Estou feliz e sei que um dia todos nós vamos morrer. Estou feliz e isso não me impede de me sentir só, muitas vezes - com a família, com os amigos, com ela. Não há escapatória: viver é ser "um pedaço de carne oferecido à agressão do real". E a morte sempre há de vencer a última batalha.

Há certos inocentes que não escapam dos raios. E até os bêbes vão para os cemitérios. Nada fizeram, decerto, para merecê-lo. Não são culpados, igualmente, se nasceram. É tudo coisa que acontece, e é tudo o que podemos dizer.

O que não nos impede de viver, nem de sermos felizes, nem de amar, ainda que no meio desse turbilhão cheio de som e fúria que costumamos chamar de Vida, fingindo entendê-la só porque sabemos nomeá-la.

Sim, estou feliz e isso não resolve muita coisa, já que continua-se a morrer às centenas nas guerras e nas epidemias. E mesmo os justos e as crianças padecem nas UTIs. Estou feliz e quase me envergonho de estar, tamanho o horror que há neste mundo. E também isto: estou feliz, mas quem o sabe? Pois para muitos, mesmos os mais próximos, este sorriso interior, feito com tantos detalhes e minúcias, quadro tão imenso e feito de tantas cenas, não consigo comunicar. E isso é tristeza sujando meu céu. Eu nem imaginava que a felicidade pudesse ser tão incomunicável quanto eram os meus mais extremos padecimentos.

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UM MONSTRO DO AMOR

“Quem chegasse, por uma imaginação transbordante de piedade, a registrar todos os sofrimentos, a ser contemporâneo de todas as penas e de todas as angústias de um instante qualquer, esse – supondo que tal ser pudesse existir – seria um monstro de amor e a maior vítima da história do sentimento. Mas é inútil imaginarmos tal impossibilidade. Basta-nos proceder ao exame de nós mesmos, praticar a arqueologia de nossos temores. Se avançamos no suplício dos dias, é porque nada detém esta marcha, exceto nossas dores; as dos outros nos parecem explicáveis e suscetíveis de ser superadas: acreditamos que sofrem porque não têm suficiente vontade, coragem ou lucidez. Cada sofrimento, salvo o nosso, nos parece legítimo ou ridiculamente inteligível; sem o que, o luto seria a única constante na versatilidade de nossos sentimentos. Mas só estamos de luto por nós mesmos. Se pudéssemos compreender e amar a infinidade de agonias que se arrastam em torno de nós, todas as vidas que são mortes ocultas, precisaríamos de tantos corações quanto os seres que sofrem. E se tivéssemos uma memória milagrosamente atual que conservasse presente a totalidade de nossas penas passadas, sucumbiríamos sob tal fardo. A vida só é possível pelas deficiências de nossa imaginação e de nossa memória.” --- CIORAN, 'Breviário de Decomposição'

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BUSCADOR

I'VE BEEN WRONG BEFORE
AND I'LL BE THERE AGAIN.
I JUST DON'T HAVE ANY ANSWERS, MY FRIEND.
JUST THIS PILE OF OLD QUESTIONS
MY MEMORY LEFT ME HERE.
IN THE FIELD OF OPPORTUNITY
IS PLOWIN' TIME AGAIN...

--- neil young


Me confesso um buscador. Digo, sem-vergonha, para que todos ouçam, que respostas não tenho. Só algumas. Mas não as que mais queria. Não para as perguntas fundamentais. Prossigo na busca. Na batalha de buscar. No esforço, com suas marés de entusiasmo e de desânimo, no rumo de desvendar mil mistérios. Procuro inclusive a mim mesmo, e por aí me encontro esparramado, um pouco em cada um de vocês, em quem me acho e me desencontro, me alegro e me espelho, ou trombo e tropeço... Me acho e me perco um pouco em cada vida que me rodeia e para quem eu existo. E existo para poucos. Pouquíssimos. Num mundo de 6 bilhões de pessoas, muito menos de 0,1% delas sabe sequer que eu existo. Existir para as multidões é privilégio das celebridades, dos políticos, dos papas... Eu, só sabem que eu existo umas 100, 200 pessoas. É ninharia. Me perguntar “quantas me amam?” dá até dó. Se as pessoas ficassem por aí fazendo-se essas perguntas de gente deprimida tariam é perdidas! E que delirante, pensar que quando estamos apaixonados, o amor de uma pessoa passa a contar mais, para nós, do que 6 bilhões de seres! "Que importa que o mundo me acha um nada, se ela me acha um tudo? Que diferença faz, ser algo insignificante e minúsculo na sinfonia do Cosmos, como uma nota mísera e inaudível que nem é notada no solo de violino, se sou a sinfonia mais amada que ouve o coração dela?"

Buscador. Que, apesar de suas inúmeras covardias, aceitou tentar escalar – e com que tombos! que deslizes! e que garra! - o improvável monte do amor. Sei que do topo estou longe, tanto que nem o vejo; mas é pra lá que meu coração está voltado, como uma flecha mirando seu alvo. E é deleite subi-lo.

Se eu sei o caminho correto? Claro que não. Os caminhos, eu vivo para testá-los. Sem saber ao certo em que rumo hão de levar-me. Não temendo pular para outra estrada quando a que eu antes trilhava mostra-se infrutífera ou pouco promissora. Viajo sem mapas do futuro, desenhando meu mapa presente tendo em vista só as paragens de meu passado, passado este que se acumula e se desvanece, se transmuta e se nadifica, conforme eu vou me futurificando...

Viajas com mapas do futuro?

Eu, do futuro, só sei de minhas esperanças, desejos e medos.

O futuro é uma projeção minha.

It's nowhere outside my head.

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EVEN THE WORST, MOST INTRACTABLE MISTAKE, BEATS THE HELL OUT OF NEVER TRYING.
--- grey's anatomy


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O SOL E A ENFERMARIA

Amo como posso. E nessa área tenho mais querer do que saber. Meu desejo vai, tateante, aos cambaleios, como se brincasse de cabra-cega num campo minado. Sabe mais ou menos o que quer, apesar da vagueza dos quereres, e vive a testar os caminhos, tentar atalhos, rasgar mapas que foram dar em ruas sem saída e terrenos baldios. Farejando pelos morangos sob estrelas mudas que não são guias. Nada no céu nos aponta a direção melhor. Caminhamos na penumbra e é alegria nos depararmos com velas e clarões. Avançamos aos relâmpagos. Sorrisos dos seres amados como alvoradas iluminando estas trilhas tão sem vida. Vou aos tropeços, como quem há pouco deixou de engatinhar. Criança em levante contra a lei da gravidade. Ícaro preso no porão, sonhando em abrir clarabóias a cabeçadas. Tive sempre um coração com asas, que me erguiam perigosamente até perto do Sol, e ele, implacável, não cansou de derretê-las, me mandando em mil e uma quedas-livre... Ah, não imaginam vocês quantas vocês o Sol já não me mandou pra enfermaria! E eu teimo na briga. Me engesso, me bandeido, me medico, e quando reerguido... tô de volta ao vertical ringue.

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SAUDOSOS QUERERES

Se estou com saudade? Dela tenho saudade até quando ela vai ao banheiro. E, mesmo à distância, ela não cessa um instante de estar presente. Pulsante no centro do meu desejo. Que pulsa ritmado como o tambor que trago no peito e que vê-se obcecado com uma só nota. O duro é que a vida, apesar de aclarada e aquecida pelos raios deste sol distante, tem me parecido, longe dela, como um limbo. Sala de espera onde aguardo, ansioso, pelo reencontro.

Um anseio que dói mas que faz faz bem. Um alegre bem-querer. Uma falta que não mutila, mas que é potencial de felicidade. Não haveria prazer algum em comer se não houvesse fome. E ninguém se deleita com maior êxtase comum uma fonte de água do que o sedento caminhante dos desertos. Amo a minha fome e amo a minha sede: e mais ainda a ela, que é meu alimento.

Não são saudades excruciantes, que nos fazem padecer e chorar, como é a saudade de uma mãe que viu o filho morrer na guerra ou de um casal rasgado em dois por forças maiores - e que não concebe ocasião para se reunir. É uma saudade curtível, dorzinha agradável e doce, como quando temos fome mas sabemos que um belo banquete nos espera. É bom ter fome quando temos delícias para comer, e é bom sentir saudade quando o reencontro é iminente.

Não há país neste mundo que me chamem mais que o corpo dela: o mais magnético dos territórios. Me puxando como se fosse um ímã. Me chamando como se fosse um lar. Não o trocaria por Paris de graça ou Viena ao luar. É em ti que quero estar. Há no mundo melhor lugar?

E principalmente é bom ter alguém para amar. Ter alguém pra quem fazer bem. É esta a verdadeira Escola da Virtude, e não os tratados sobre ética e moral que escreveram os filósofos. Aprende-se a virtude amando, e não lendo livros sobre a virtude. Os livros que importam são os livros que nos ensinam a amar, e estes são raros e infinitamente preciosos. A maioria passa pela vida sem jamais ler um desses. E os homens que os escreveram também são pouquíssimos. Foram aprendizes, como nós somos. Continuaram sendo aprendizes, ainda que tenham se transformado em mestres.

Um verdadeiro mestre é sempre alguém que conserva-se eternamente um aprendiz.