sábado, 28 de julho de 2007

:: especial JORGE FURTADO ::


O que mais me impressiona no cinema do Jorge Furtado é o modo como ele consegue fazer filmes ultra pop, capazes de agradar às multidões (que, digamos a verdade, costumam ter um mau-gosto terrível...), mas que têm sempre muita consistência e interesse para quem procura algo mais que mera diversão. É incrível como os filmes funcionam muito bem num nível superficial, como mero entretenimento curtível e divertido (qualquer pré-adolescente, adulto analfabeto ou tias-avós assistidoras de novelinhas do SBT conseguem acompanhar o enredo, “entender” tudo o que vêem e se divertir à beça), mas o fato de serem super acessíveis e populares não impede que as obras tenham muita “substância” por trás, podendo ser aprovadas com louvor num julgamento crítico mais severo. Jorge Furtado é um dos raros casos de artista (os Beatles sendo o exemplo supremo) que consegue atingir a aclamação popular e a aprovação crítica ao mesmo tempo - sem precisar soar vulgar, boçal ou de mau-gosto para agradar às multidões, nem tentando soar “cabeça”, "vanguardista" ou pretensioso para agradar aos críticos e à intelectualidade... Baita realização!

O Homem Que Copiava, o primeiro longa-metragem clássico do gaúcho e um dos melhores e mais adoráveis filmes nacionais da década, prova isso muito bem. O filme de Furtado dialoga um pouco com o clássicão do Hitchcock, o Janela Indiscreta, mostrando (se bem que com mais humor do que suspense...) o voyeurismo obsessivo que é o efeito do amor platônico de André. Mas ele é também o mais próximo filmito brazuca a merecer o título de nosso Amélie Poulain - a odisséia de André na conquista de sua guria Sílvia não lembra todos os bonitinhos esforços que a francesinha encarnada por Andrey Tatou fez no empenho para conquistar o seu mocinho (o Mathieu Kassovitz) no filme do Jeunet?

A princípio parece que O Homem Que Copiava é apenas uma comédia romântica, levinha e deliciosa, injetada de citações pop e “links”.
Poucos filmes são mais bacanas na descrição duma platonice urbana. Sempre achei super bonitinho o jeito como ele vai lentamente descobrindo detalhes sobre o quarto dela, de acordo com o jeito que o espelho do armário parava aberto – vendo um ursinho de pelúcia em um dia, um abajur sobre o criado-mudo em outro, uma joaninha vermelha mais pra frente... É engraçado (e tão real!) o jeito como ele inventa qualquer pretexto para se aproximar dela (mesmo que seja mentir sobre o aniversário da mãe e prometer comprar um chambre com um dinheiro que não tem); o jeito como ele guarda como uma pérola as coisinhas mais minúsculas que acontecem entre eles (um “Magina, brigada você!” virando quase um fetiche...), a maneira como ele parece super inocente ao dar um presente pra lá de interesseiro para ela (uma cortina semi-transparente que vai permitir uma espionagem muito mais completa!) - mais ou menos como fazia o Homer dando para a Marge bolas de boliche como presente de aniversário... Os momentos mais doces do filme se dão nos diálogos dos dois semi-desconhecidos que, constrangidos e sem graça, acabam soando como duas criancinhas tímidas que ficam de paquera no pátio do colégio, no primário, sem saber ao certo como consumar o beijo que ambos tanto querem. As atuações de Lázaro Ramos e Leandra Leal trazem uma vivacidade sensacional para os personagens. Mas o filme é bem mais do quem uma comédia romântia - parece mais com uma vasta (e divertida...) crônica de comentário social.

André, o anti-herói tímido e simples que protagoniza O Homem Que Copiava, é um garoto como milhões de outros nesse Brasil: menino humilde condenado a trampar numa lida mecânica, que não exige dele muita inteligência e criatividade (“quantos neurônios o cara precisa ter para fazer uma merda dessas?”), que acaba todo mês com pouquíssima grana pra gastar (“pra comprar meu binóculo tive que economizar um ano”), sempre entrando em apuros ao chegar ao caixa do supermercado (“não, deixa a carne, é que eu preciso levar os fósforos...”). Claro que, vivendo assim na fossa, sempre alimentou certos sonhos de subir na vida – de preferência de foguete e não de escada...

Estão espalhados em vários personagens mil e um planos de veloz ascensão social. A Maria Inês de Luana Piovani, que é uma romântica bobalhona misturada com uma interesseira, espera casar-se com um ricão (“Pai pobre é destino... marido pobre é burrice!”); o Cardoso procura enriquecer mentindo sobre o valor de suas “antiguidades” (que muitas vezes não passam de sucata velha); o Feitosa faz pequenas fortunas vendendo maconha com orégano para os otários... Sempre o velho “jeitinho brasileiro” na tentativa de se virar no circo dos leões econômico...

André não é diferente. Como tantos milhões de garotos, ele sonhava em se tornar um craque do futebol enquanto empacotava no mercado, delirando com a imaginação das platéias em comemoração enquanto ele corria para comemorar os gols de placa (“mas sem o soquinho no ar do Pelé... só funcionava com ele, quando outro tenta fazer fica parecendo uma bichice!”). Tem também seus talentos artísticos (suas charges e histórias em quadrinho), mas batalha em vão para conseguir fazer disso algo realmente profissional. E aí, empacado num trampo meia-boca, não consegue evitar a tentação de imaginar pegar um atalho fácil para a riqueza através do crime. Afinal, do jeito que ia, depois de 10 anos só ia conseguir comprar uma caranga usada tosca – e aí o Diabinho interior vai e sussura: “melhor comprar uma arma!” e roubar um banco. Ou então, claro, pôr em prática uma idéia que muito menino de máquina de xerox já deve ter planejado: fazer cópias de dinheiro e subir na vida nas asas das cédulas falsas trocadas por grana verdadeira em alguma lotérica ingênua – considerando que “dinheiro é só um pedaço de papel que todo mundo acredita que vale alguma coisa (se ninguém acreditar, não vale nada!)”.

Não há nem sinal dum discursinho moralista que vá tentar nos convencer que o crime não compensa – não estamos em Hollywood e Furtado sabe muito bem que, no Brasil, muitas vezes, as maiores sacanagens acabam impunes e os corruptos, ao invés de pararem na cadeira, vão morar em mansões e palácios comprados com o dinheiro lavado em alguma conta da Suíça. Não deve ser por acaso que Jorge Furtado põe um outdoor com o Crime e Castigo de Dostoievski como pano de fundo para uma cena em que André espera um ônibus – O Homem Que Copiava não deixa de ser a saga de uma Ralkolnikóv tupiniquim.

Como fez Woody Allen em Crimes e Pecados, Jorge Furtado parece dizer que nem todo crime acaba tendo sua punição - caso dos crimes dos personagens de O Homem Que Copiava, que acabam, a certo momento do filme, devido a uma ironia do destino, detentores de uma imensa fortuna - da loteria e do assalto ao carro-forte. O problema é que a principal das objeções que se pode fazer ao happy end de Jorge Furtado é que ele quase nos leva a perguntar: ora bolas, quer dizer então que o dinheiro traz a felicidade e que o bem-estar material é algo pelo quê vale a pena roubar e matar? Ao vermos os personagens se deliciando com uma Mercedes ou uma noite na suíte de luxo do hotel cinco estrelas, pode ser essa a impressão que fica em muitos espectadores – e parece estranho ver espalhado pelo filme cenas que mostram uma orgia de alegria consumista... algo que não se esperava do cineasta que fez Ilha das Flores! A minha sensação, no entanto, é que André só complicou a sua própria vida ao faturar toda aquela dinheirama, e que talvez era feliz e não sabia nos tempos em que era um humilde operador de fotocopiadora, apaixonado pela guria do prédio da frente, paquerando pelas ruas de Porto Alegre, numa vidinha pacata e despretensiosa que, no fundo, não tinha nada de má.

Logo que fica milionário, torna-se alvo da inveja, da chantagem, dos aproveitadores profissionais que querem arrebatar dele um tequinho, ao menos, de sua fortuna. Ele se torna milionário mas aí seu ex-amigo vai lá e enfia um trabuco em sua cabeça pedindo uma parte da grana. Ele se torna milionário e aí o pai de Sílvia apela para a chantagem e exige alguns milhões para manter-se em silêncio. Ele se torna milionário e se vê na necessidade de matar a testemunha ocular do assalto, fugir de Porto Alegre, com a perspectiva de ter que viver meio que às escondidas por um bom tempo, sempre paranóico e preocupado... Sem falar que, com muita sutileza, o filme acaba mostrando o quanto o delírio consumista deles acaba não trazendo nenhuma satisfação verdadeira, mas só alguns prazeres efêmeros e frustrantes. Quando a Maria Inês de Luana Piovani vê pela primeira vez a Mercedes 0km, não é um “Uau, que demais, esse carro é o máximo!” o que ela solta – é um rabugento “Mas por que essa porra é prata e não preta?!” Típico ataque neurótico de grã-fino que cai em crises de depressão se não puder ter o carro do ano. E dizem que o dinheiro traz a felicidade! Certo estava o Bukowski, que dizia que “dinheiro, como sexo, parece mais importante quando a gente não tem”.

Mas também não há nada parecido com um discurso trieriano que quisesse demonstrar o quanto as pessoas acabam moralmente corrompidas pela ambição e pela ganância. Não é tão simples assim. Jorge Furtado consegue fazer com que nós sintamos total simpatia e alegre afeição por um grupo de personagens envolvidos com falsificação de cédulas, assalto à banco, baleamento de policiais, construção de bombas e homicidío por explosão... Afinal de contas, nenhum dos personagens, muito menos André, é “condenado” - nem pela justiça, nem pelo cineasta, nem pelos espectadores. Não conheço ninguém que, depois de ter visto o filme, dissesse que André e Sílvia mereciam se ferrar, ir pra cadeia e lá apodrecer... Eles são parecidos demais com a gente para que não role empatia e simpatia. E as ambições materiais deles, os sonhos de subir na vida, de se deleitar na lama do consumismo, são algo que compartilham com centenas de milhões de pessoas na Civilização Ocidental inteira. Condená-los seria condenar a nós mesmos.

Os sonhos de consumo e de glória que eles têm são sonhos comuns a milhões – e os personagens dos filmes, como 90% das pessoas desse mundo, acreditam de verdade que ser rico seria a solução para todos os problemas - ao contrário do dito, eles acreditam que o dinheiro compra sim a felicidade. Mesmo criminosos, eles não são descritos como “maus”, muito pelo contrário: André continua sendo um bom rapaz, simples, humilde, afável e simpático, mesmo depois do assalto e da explosão – e Jorge Furtado mostra que, no fundo, para André, o que mais importava, desde o começo, nem era tanto se tornar um ricão para poder ostentar por aí, para a inveja do mundo, seu novo “status” social. Desde o início, tudo o que ele queria era ter meios para impressionar a guria por quem estava apaixonado para que não ficasse parecendo um pé-rapado qualquer – o amor dela era o que ele mais queria conquistar; a ascensão social era um mero meio para um fim. Eis porque o verdadeiro happy end não está na fortuna que os personagens fazem, mas no amor correspondido que se consuma.

Eis porque me parece que, se há algum culpado por aí, só pode ser mesmo a velha Vovó Doutrina (sobrenome: Capitalismo), que à custa de tanto tagarelar nas orelhas dos Zés Caolhos (que somos todos nós...), acabou por nos convencer que a perseguição aos bens materiais é a nossa finalidade na Terra. É essa Vó Doutrina que transforma André, garoto simples e singelo, num criminoso – e é essa Vó Doutrina, posta em prática, que acaba parindo inferninhos terrenos como a Ilha das Flores (onde os seres humanos comem aquilo rejeitado pelos porcos...) e transformar “garotos do Bem” como ele em criminosos. Guilhotina, pois, para essa Vó Doutrina! Ou então, para quem não curte tais extremismos, óculos melhores para os Zés Caolhos que somos!

quinta-feira, 26 de julho de 2007

:: especial JORGE FURTADO ::


É bem provável que qualquer crítico de cinema sério iria rir alto na minha cara ao me ouvir dizer tamanha heresia (mas e eu com isso?!), mas ouso assim mesmo a confissão: não é nem o Glauber Rocha, nem o Walter Salles, nem o Fernando Meirelles, nem o Rogério Sganzerla, nem o Júlio Bressane, nem nenhum dos outros bã-bã-bãs por aí - o meu cineasta nacional predileto é mesmo o gaúcho Jorge Furtado. Pode ser que seja mais o coração do que o cérebro quem solta esse veredito, mas e daí? No fundo aprendi, vida afora, a confiar mais nas veias e nas artérias do que nos neurônios como juízes do que é bom. Mesmo antes de encontrar razões racionais para explicar o meu gosto, o coração vai e diz: esses filminhos do Jorge Furtado, eu, esse músculo bobo que sou, que pra nada sirvo além de bombear sangue e cair em perdição, curto pacas! =)

Na ativa desde o fim dos anos 80, quando dirigiu alguns curtas-metragem mui célebres e cultuados, Jorge estreou no longa-metragem em 2001, com o adorável e despretensioso Houve Uma Vez Dois Verões. Cometeu depois o hit O Homem Que Copiava (2002), que comento logo mais. Na sequência veio o simplão mas bacaníssimo Meu Tio Matou Um Cara (2004). Agora, em 2007, com o lançamento desse classudo Saneamento Básico – O Filme (com a Globo Filmes e a Columbia por trás, injetando seiva...), Jorge Furtado se consolida como um dos maiores talentos a desabrochar no cinema brasileiro nesta década.

Já adorei Ilha das Flores boquiaberta de veneração. Foi o curta que eu assisti mais vezes na vida, bem mais do que O Cão Andaluz do Buñuel ou qualquer das velharias do Chaplin ou do Buster Keaton (que, vocês sabem, são delícias que nos fazem pedir bis...). Até porque esse filminho do Furtado tem fama de ser o predileto de vários professores universitários (levanta a mão quem não viu Ilha das Flores dentro de uma sala de aula!), que encontram nele uma ótima pedida para instruir a alunada sobre injustiça social e descalabros capitalistas. Mesmo depois de ter assistido ao Ilha umas 5 ou 6 vezes, ainda acho que ele merece todo o oba-oba – é um dos filminhos mais influentes e inesquecíveis já cometidos por um jovem talento do cinema nacional. Era esse o filme que a gente, na faculdade, quando se aventurava a fazer nossos curtas, queria imitar.

Aquilo ali já me conquistou nos primeiros planos, com aquele punk e cru DEUS NÃO EXISTE escrito sobre a tela preta, antes do início da jornada que nos vai mostrar como os seres humanos, apesar de dotados de tele-encéfalo altamente desenvolvido e polegar opositor, conseguem ser tratados mais porcamente do que os porcos num lugarzinho infernal ironicamente chamado de Ilha das Flores. Quem ainda não assistiu, não perca tempo: pus aí embaixo os links para o You Tube. Obrigatório!

Pois eu esperava que o Jorge Furtado, ao pular do curta para o longa-metragem, iria se tornar aquele tipo de cineasta crítico-social e provocador profissional ao estilo dum Cláudio Assis ou Sérgio Bianchi – o tipo de artista que usa sua câmera como um Dedo Indicador apontando mazelas sociais e esfregando em nossas caras o tamanho do nosso fracasso como nação. Me surpreendi ao ver nascer, depois do poderoso soco na cara que era o Ilha das Flores, um cineasta tão pop e tão afim de fazer uma arte de massa, super acessível e simpática, feita para grandes públicos. Não imaginava que o Jorge Furtado fosse se tornar esse imenso crowd pleaser que hoje é.

Saneamento Básico tem tudo para bombar: com um elenco com a presença de algumas estrelas globais (Wagner Moura, Camila Pitanga...) e conduzido com a maestria de praxe pela imensamente talentosa Fernanda Torres (talvez a melhor atriz de cinema do Brasil em muitos e muitos anos), a comédia tem tudo para ser a definitiva consagração desse grande cineasta. Jorge Furtado conseguiu realmente criar um filminho delicioso, suculento, simpaticíssimo, irrepreensível - numa palavra: irresistível. Tão difícil não gostar dum filme desses quanto não gostar de Beatles.

Saneamento Básico – O Filme é provavelmente o melhor Furtado até hoje – e isso não é dizer pouco. Essa obra-prima instantânea da comédia nacional, que tem um certo gostinho de Woody Allen, de Ariano Suassuna, de Cinema Paradiso, de filmes B de terror, de curtas universitários trash e de sitcom tupiniquim, me pareceu também o equivalente brasileiro para o clássico A Noite Americana, do François Truffaut (vencedor do Oscar de Melhor filme estrangeiro em 1973).

Só que Saneamento Básico é ainda mais engraçado do que o já engraçadérrimo filme do Truffa e oferece insights tão espertos sobre a arte de fazer cinema quanto o clássico francês. Mas a metalinguagem dos dois filmes é diferente: se o Truffaut tratava do cinema como um produto de um grande estúdio, Furtado decide narrar a trajetória de alguns caipiras, absolutamente analfabetos em matéria de cinema, que tentam realizar um curta-metragem na tentativa de arrecadar uma grana para uma obra de higiene pública. No processo, Jorge nos mostra que fazer um filme pode ser muito mais divertido do que assistir um – e que assistir a um filme sobre como se faz um filme pode ser das coisas mais hilárias do universo...

Ao deixar clara a artificialidade e a falta de espontaneidade que o povinho simples sente ao ficar frente às câmeras, o Furtado só destaca e enfatiza o tamanho do seu talento ao retirar dos atores, todos eles, performances tão verossímeis e vívidas. Há um pouco de elogio-próprio nesse procedimento, como se o diretor, ao mostrar todas as trapalhadas e burrices de seus personagens, chamasse um pouco a atenção para si mesmo e dissesse: eu, Jorge Furtado, é que sei o que é fazer cinema, o que é retirar dos atores atuações fantásticas, o que é fazer criar uma narrativa fluida e gostosa... Mas não se trata de vanglória. É só um mestre do cinema se divertindo, do alto de seu pedestal, as peripécias dos leigos numa arte que não dominam. Quanto às atuações, todas elas impressionantemente convincente, nos fazem imaginar que o Furtado andou tomando lições com Mike Leigh ou John Cassavetes - cada vez mais verossímeis e reais os personagens dele...

Achei que essa é uma das comédias mais perfeitas de todos os tempos principalmente porque o humor está ultra bem-balanceado. O que quero dizer é: esse não é o tipo de filme em que uma piada ótima se destaca no meio de um monte de piadas médias ou fracas, ou que as tiradas certeiras se concentram em certa parte ou momento do filme. Não. É incrível como o filme, em suas quase duas horas de duração, consegue manter-se o tempo todo divertido, charmoso e irresistível. It's a nice ride all the way, folks! Inacreditável notar que o maxilar não dói depois de tanta risada. Não é o caso daquelas comédias que não vale a pena assistir de novo porque da segunda vez você já conheceria todas as piadas - é o caso de um filme que você provavelmente se divertirá vendo quando assistir pela 5a vez. Isso é raro de acontecer: quando os créditos subiram, fiquei com vontade de não sair do cinema, quem sabe me esconder debaixo do assento pra emendar e ficar pra próxima sessão... Pena que não nasci anão!

Minhas opiniões sobre o Jorge Furtado, depois desse filme, são ainda mais positivas. Esse cara imprime uma marca muito pessoal em todos os seus filmes. Ele é a prova viva de que é possível fazer cinema de massa, capaz de agradar às multidões e faturar milhões nas bilheterias, sem nunca apelar para o mau-gosto, para a vulgaridade ou para o sentimentalismo barato. O humor de Saneamento Básico faz gargalhar, mas sem nunca soar boçal. Jorge Furtado é a prova de que simplicidade não precisa ser rasidão e superficialidade, de que humor não precisa ser futilidade, que leveza não precisa resultar em algo fácil de esquecer, de que cinema não precisa ostentar “vanguardismos” ou altas peripécias para ser uma obra de arte, de que não é preciso ser panfletário e doutrinário para fazer um cinema que acaba sim sendo político...

Como o filme do Truffaut, Saneamento Básico, além do vasto leque de piadinhas memoráveis, personagens bacanas e atuações irretocáveis, é também uma declaração de amor aos filmes e ao fazer-cinema. Além de uma obra que funciona como belo entretenimento, tem toda uma substância por trás, dando consistência, e está longe de ser uma daquelas comédias que só falem pelo prazer imediato das risadas - como os grandes mestres do humor, Jorge Furtado nos comunica um bom-humor duradouro, quase que uma lição de vida e de sabedoria, de leveza e de simplicidade, de espontaneidade e de doçura, de singeleza e ternura... Cineasta da alegria - e da alegria fina.

Jorge Furtado é orgulho nacional!

quarta-feira, 25 de julho de 2007

:: especial JORGE FURTADO ::

Ilha das Flores, parte 1. Crássico bragarai.

Ilha das Flores - Parte 2



"...Liberdade, essa palavra
que o sonho humano alimenta
que não há ninguém que explique
e ninguém que não entenda..."

(Cecília Meireles)

segunda-feira, 23 de julho de 2007

:: big bill ::

Coloco por aqui dois dos meus sonetos prediletos do William Shakespeare como um convite para que vocês corram até a Biblioteca e devorem todos os 152 outros - são de altíssimo nível do começo ao fim. Shakespeare é tão imenso, tão genial, tão insuperalvemente superior aos reles mortais, que lê-lo chega a ser desanimador para quem alimenta ambições de se tornar escritor... Ele é concorrência imbatível. É de uma grandeza insuperável. Como escrever depois desse homem? Como não se sentir como uma titica aos pés desse gigante?

É por isso que o Victor Hugo diz: "O forte, o grande, o luminoso são, sob certo ponto de vista, coisas que ferem. Ser ultrapassado nunca é agradável; sentir-se inferior é ser ofendido. (...) Dada a mediocridade humana, ele [o belo criado pelo gênio] humilha ao mesmo tempo que encanta. (...) A tempestade crê regar, mas afoga; o astro crê iluminar, mas ofusca, às vezes cega. (...) O infinito é pouco habitável. (...) É trabalhoso conviver com essas maravilhas selvagens. (...) A própria aurora nos parece às vezes imoderada; quem a olha de frente, sofre; o olho, em certos momentos, pensa muito mal do Sol. (...)

A primeira coisa que esses seres, os gênios, fazem é maltratar o eu de cada um. Exorbitantes em tudo, em pensamentos, em imagens, convicções, emoções, paixão, fé, qualquer que seja o lado do vosso eu para o qual se dirijam, eles o incomodam. A nossa inteligência, eles a ultrapassam; a nossa imaginação, ela lhes faz mal aos olhos; a nossa consciência, eles a questionam e remexem; as nossas entranhas, eles as torcem; o nosso coração, eles o partem; a nossa alma, eles a arrebatam.

(...) Colai vosso ouvido a esses colossos [os gênios], ouvi-los-eis palpitar. Temos necessidade de acreditar, de amar, de chorar, de bater no peito, de cair de joelhos, de erguer as mãos ao céu com confiança e serenidade, escutai esses poetas, eles nos ajudarão a subir para a dor sã e fecunda, eles nos farão sentir a utilidade celeste do enternecimento..."

Shakespeare humilha e nos deixa humildes; mas ao mesmo tempo exalta e nos convida a subir, subir, subir... Um pássaro nas alturas que nos faz desprezar nosso rastejante destino de répteis e nos faz querer alçar vôo como ele.

Voilà um gênio:


"When in disgrace with Fortune and men's eyes,
I all alone beweep my outcast state,
And trouble deaf heaven with my bootless cries,
And look upon myself and curse my fate,
Wishing me like no one more rich in hope,
Featur'd like him, like him with friends possess'd,
Desiring this man's art, and that man's scope,
With what I most enjoy contented least,
Yet in these thoughts myself almost despising,
Haply I think on thee, and then my state
(Like to the lark at break of day arising),
From sullen earth sings hymns at heaven's gate,
For thy sweet love remember'd such wealth brings,
That then I scorn to change my state with Kings."

(Desvalido em fortuna e aos olhos dos mortais,
Quando choro sozinho ao ver-me rejeitado
E os surdos céus perturbo em vão com altos ais
E amaldiçôo a sorte olhando meu estado,
E almejo ser alguém, bem mais esperançado,
De que tivesse o aspecto e as ricas amizades,
E com o que fruo mais o menos contentado,
Quero a arte deste, e doutro as oportunidades:
Quase que me desprezo, em coisas tais cuidando;
Mas penso em ti, e logo a minha condição,
Qual cotovia na alva a terra abandonando,
Ergue às portas do céu hinos de gratidão;
Pois traz-me tal riqueza o teu amor lembrado,
Que desdenho trocar com os reis o meu estado.)


* * * * *

"When I Consider everything that grows
Holds in perfection but a little moment.
That this huge stage presenteth naught but shows
Whereon the Stars in secret influence comment.
When I perceive that men as plants increase,
Cheered and check'd even by the selfsame sky:
Vaunt in their youthful sap, at height decrease,
And wear their brave state out of memory.
Then the conceit of this inconstant stay,
Sets you most rich in youth before my sight,
Where wasteful time debateth with decay
To change your day of youth to sullied night,
And all in war with Time for love of you
As he takes from you, I engraft you new."

(Quando observo que tudo quanto cresce
Desfruta a perfeição de um só momento,
Que neste palco imenso se obedece
A secreta influição do firmamento;
Quando percebo que ao homem, como à planta,
Esmaga o mesmo céu que lhe deu glória,
Que se ergue em seiva e, no ápice, aquebranta
E um dia enfim se apaga da memória:
Esse conceito da inconstante sina
Mais jovem faz-te ao meu olhar agora,
Quando o Tempo se alia com a Ruína
Para tornar em noite a tua aurora.
E crua guerra contra o Tempo enfrento,
Pois tudo que te toma eu te acrescento.)

domingo, 22 de julho de 2007

:: descobrindo victor hugo... ::


Confesso, envergonhado e ruborizado, as seguintes heresias: desisti de ler Os Trabalhadores do Mar (traduzido pelo Machado de Assis, ainda por cima!) depois dumas 80 folhas; só li um mísero resumex com linguagem simplificada d'Os Miseráveis na época dos meus estudos de francês no DAFAE de Bauru (a saga de Jean Valjean condensada em 80 folhas... pode?); e, pior, só fui apresentado ao Corcunda de Notre Dame em sua versão Walt Disney... Um tempinho atrás, pois, tentando sanar o mais grave dos meus crimes de ignorância literária - nunca ter lido Victor Hugo de verdade, que delito! - decidi começar por algo que me pareceu extremamente atraente: "Williiam Shakespeare", o livro onde um dos maiores escritores franceses da história fala sobre o maior gênio da literatura inglesa. Esse duelo de gigantes, esse diálogo de mestres, essa imensa homenagem de um colosso para outro, tinha tudo para ser, pelo menos, algo interesssante e instrutivo...

Foi muito mais. Porque esse livraço do Victor Hugo é bem mais do que um estudo, comentário ou crítica literária envolvendo a obra do Shakespeare, apesar de ser isso também: é praticamente O grande Manifesto Literário do Século 19, onde o Hugo dá um vasto panorama a respeito de todos os grandes gênios da história das letras, dá uma opinião detalhada sobre o que pensa que sejam os objetivos e missões da literatura e da poesia e, como se não bastasse, faz todo um tratado de Estética dos mais geniais que já conheci. Agora tô com uma louca vontade de ir devorar Os Miseráveis sentado debaixo de alguma árvore de algum bosque (springtime, what's taking you so long?), tendo alguma paisagem bonita para contemplar nos momentos que cansar os olhos. Sou um cara de prazeres antiquados e ultrapassados! Acho televisão um troço tão superestimado... Ler é um prazer tão maior, tão melhor, tão imensamente mais delicioso... Não entra na minha cabeça como alguma criatura possa preferir a Rede Globo à leitura dos sonetos de Shakespeare (eu, aliás, estou relendo-os todos no original! Um primor!).

Do livro do Hugo, selecionei alguns trechos para colocar aqui, mera amostra do que é esse grandioso e recomendadíssimo William Shakespeare by Victor Hugo. Eu realmente não sabia que a ironia e o sarcasmo, que impregnam certas páginas huguianas, podiam soar tão poéticas e elevadas. Nem tinha idéia de que Victor Hugo tivesse tamanha faciilidade para soltar frases sublimes como se não tivesse fazendo a mínima força - como quem levanta uma pena ou assopra poeira. Agora entendo porque o Sponville dizia que Victor Hugo "tem o gênio fácil"... Voilà:


- Ele é reservado e discreto. Com ele estais sossegado; ele não abusa de nada. Ele tem, acima de tudo, uma qualidade muito rara; é sóbrio.

Que é isso? Uma recomendação para um empregado doméstico? Não. É um elogio a um escritor. Uma certa escola, dita ‘séria’, ostentou atualmente este programa de poesia: sobriedade. Parece que toda a questão é preservar a literatura das indigestões. Outrora se dizia: fecundidade e poder; hoje se diz: tisana. Eis que estais no resplandecente jardim das Musas em que desabrocham, em tumulto e multidão nos galhos todos, essas divinas eclosões do espírito a que os gregos chamavam Tropos, por toda parte a imagem-idéia, por toda parte o pensamento-flor, por toda parte os frutos, as figuras, as maçãs de ouro, os perfumes, as cores, os raios, as estrofes, as maravilhas, não toqueis em nada, sede discretos. É por não colher nada disso que se reconhece o poeta. Sede da sociedade da temperança. Um bom livro de crítica é um tratado sobre os perigos da bebida. Se quiserdes fazer a Ilíada, fazei dieta. Ah! Foi em vão que esbugalhaste os olhos, velho Rabelais!

O lirismo é capitoso, o belo grisalho, o grande subir à cabeça, o ideal provoca deslumbramentos, quem dele sai não sabe mais o que faz; quando se andou sobre os astros, pode-se recusar uma subprefeitura; não estais mais de posse do vosso bom senso, ser-vos-ia oferecido um posto no senado de Domiciano que recusaríeis, não dais mais a César o que é de César, chegastes a esse ponto de desvario de nem mesmo saudar o senhor Incitatus, cônsul e cavalo. A isso chegais por terdes bebido nesse lugar ruim, o Empíreo. Ficastes altivo, ambicioso, desinteressado. Dito isto, ficai sóbrios. É proibido freqüentar o cabaré do sublime.

Liberdade é libertinagem. Limitar-se é bom, castrar-se é melhor.

Passai vossa vida a vos conter.

Sobriedade, decência, respeito pela autoridade, toalete irrepreensível. Não há poesia senão vestida com apuro. Uma savana que não se penteia, um leão que não faz as unhas, uma torrente não peneirada, o umbigo do mar que se deixa ver, a nuvem que se arregaça até mostrar o Aldebarã, é chocante. Em inglês: shocking. A vaga espuma no recife, a catarata vomita no golfo, Juvenal escarra no tirano. Ui, que nojo!

Preferimos o de menos ao demais. Sem exageros. Doravante a roseira terá de contar as suas rosas. O prado será convidado a ter menos margaridas. A ordem da primavera é moderar-se. Os ninhos caem no excesso. Digamos, portanto, arvoredos, não tantas toutinegras, por favor. A Via Láctea aceitará numerar suas estrelas; há muitas.

Tomai por modelo o grande Círio Serpentário do Jardim das Plantas que só floresce a cada cinqüenta anos. Eis uma flor recomendável.

Um verdadeiro crítico da escola sóbria é esse zelador de um jardim que a esta pergunta: ‘Há rouxinóis em vossas árvores?’, responderia: ‘Ah! Não me faleis disso, durante todo o mês de maio esses animais ruins só gritam.’ "




”Se houve um homem que não mereceu a boa observação: ele é sóbrio, esse homem foi, com certeza, William Shakespeare. Shakespeare é um dos maiores maus sujeitos que a estética ‘séria’ jamais teve de dominar.

Shakespeare é a fertilidade, a força, a exuberância, a mama cheia, a taça espumante, a cuva transbordando, a seiva em excesso, a lava em torrente, os germes em turbilhões, a vasta chuva de vida, tudo aos milhares, tudo aos milhões, nenhuma reticência, nenhuma ligadura, nenhuma economia, a prodigalidade insensata e tranqüila do criador. (...) Shakespeare é o semeador de deslumbramentos.

Shakespeare não tem reservas, retenções, fronteiras, lacunas. O que lhe falta é a falta. Nenhuma economia. Nada de abstinência. Transborda, como a vegetação, como a germinação, como a luz, como a chama. (...) Ele se dá, se espalha, se prodigaliza; não se esvazia. Por quê? Não pode. O esgotamento lhe é impossível. Tem dentro de si o infindável. Enche-se e gasta-se, depois recomeça. É o saco sem fundo do gênio.

Como todos os altos espíritos em plena orgia de onipotência, Shakespeare derrama sobre si toda a natureza, bebe-a e vos dá de beber. (...) Não pára, não se cansa, é impiedoso com os pobres estômagos fracos que são candidatos à Academia. Essa gastrite, que chamamos de “bom gosto”, ele não a tem.

Shakespeare, como todos os grandes poetas e como todas as grandes coisas, está repleto de um sonho. Sua própria vegetação o assusta; sua própria tempestade o apavora. Dir-se-ia por momentos que Shakespeare mete medo em Shakespeare. Tem horror à sua profundeza. Isso é o sinal das supremas inteligências. É a sua própria extensão que o sacode e que lhe comunica sabe-se lá que oscilações enormes. Não há gênio que não tenha ondas. Selvagem ébrio, seja. Ele é selvagem como a floresta virgem; é ébrio como o alto-mar.

Há gênios com as rédeas soltas de propósito por Deus para que sigam selvagens e em pleno vôo rumo ao infinito.”

sábado, 21 de julho de 2007

:: devaneios platônicos ::


"In autumn it's hard to keep the mood light
The puddles get deep and my umbrella was swiped
You'll find him in the strangest of places
Jangling a coffee cup outside store twenty-four
But he's not a beggar 'till the cold settles in
And he swears there's an Indian summer in him.

Drink from this flask to put warmth in your chest
and sing around my piano.
I'm settling in for the long winter months
with all of the friends I can handle.

And we'll toast this death of summer months
And summer warmth
And summer love..."

Duas horas e meia escrevendo (mais uma) cartona para miss Casey Dienel, informando sobre a matéria que acabou de entrar na Rabisco, agradecendo profusamente pela gentileza de ter me dado o presente dessa entrevista ("Forever indebted to your kindness, mademoiselle!"), dizendo mais mil agradinhos e fofurezas (afe, que coisa nojenta é um homem apaixonado!) - e também traduzindo a minha resenhola do disco pra que ela saiba como ficou. No processo, melhorei bastante a crítica em comparação com a versão que saiu publicada no zine. Em inglês sempre fica mais charmoso. Sem falar que adicionei a posteriori algumas frases bonitinhas que me surgiram na cabeça (como dizer que a Amélie Poulain certamente iria escolher Wind-Up Canary como disco predileto se fosse gente de verdade e não estivesse presa dentro do filme do Jeunet). Claro que a minha "crítica" não tem nada de objetividade jornalistíca e da neutralidade sentimental que se espera de um crítico musical sério - ficou uma pagação de pau só, quase um texto publicitário, mas isso, vocês sabem, já estava previsto - e foi sincero. Não esfrio meu amor por ela para aderir aos mandamentos jornalísticos, não vem não! :) Foi também minha maneira de passar mais uma cantada, claro, mesmo que eu saiba que as minhas cantadas nunca funcionam com ninguém (sou um desastre!). Foi também uma tentativa de mandar um presente de Dias dos Namorados atrasado - porque air girlfriends também merecem! A próxima Missão Impossível que eu me coloquei como objetivo é trazê-la pra tocar no Brasil - alguém bota fé? Eu já achava que ela nem ia responder meu primeiro e-mail bobalhão -e rolou. Entrevista exclusiva achava que não rolaria nunca - e já rolou. Já imaginaram agora um Casey Dienel Live in Brazil SPONSORED BY DYRTY LITTLE MUMMIE INC. ?! Tô pensando em ir lá jogar a idéia pro povo do Studio SP, que já trouxe pra Sampa um monte de artistas internacionais ultra-obscuros e pequenuchos - tipo o Gruff Rhys (vocalista do Super Furry Animals), o projeto eletrônico Four Tet, o power-pop sueco do Jens Lekman (grande show!), a bandinha de punk de garagem da Escandinávia Hell On Wheels... Não é nada impossível que a Casey cole aqui. O cachê é uma mixaria. E esse é o país do mundo, fora os EUA, que está sendo mais acolhedor com ela, como ela mesmo admite. Então vai ser assim: nada de Hotel 5 estrelas não, senhorita Casey, você vai ficar é na minha casa, no meu quarto, como convidada de honra - já estou vendo de alugar um belo dum piano branco, igual àquele que o John usa para cantar "Imagine", comprar uma boa garrafa de Gin, decorar o ambiente com buquês de flores, incensos, pôsters do Buster Keaton. Vou comprar pra ela um vestido igualzinho ao da Audrey Hepburn no My Fair Lady, quando ela é transformada de florista pé-rapada em Miss Doolittle grã-fina. E aí vai ser assim: a Casey Dienel saindo do chuveiro, com os cabelos louros respingando água quente, vai vestir uma camisolinha semi-transparente e sentar-se para cantar, olhando pra mim, "Better in Manhattan" - "I love you, there i said it! And i meant every word..." E aí ela vai me levar pra visitar o Paraíso - já que nele não dá pra morar. (Cara, eu sou um cara muito do Bem mesmo... tenho umas fantasias sexuais tão angelicais...)

Acho que não existem paraísos a não ser os paraísos perdidos e os paraísos imaginários.

E acho também que sonhar é a melhor parte do viver.

Todo o resto meio que não presta.


* * * * *

CTRL+C CTRL+V DE UM PEDAÇO DO E-MAIL (o resto é segredo!):

Casey, what follows is a translation of the review I told you about. We don’t usually make ratings of the stuff we review, but I’d give this, adopting Pitchfork’s style, an 9.3 out of 10.0 and the Golden Medal on the Album of The Year in 2006! So here it comes:

SONGS TO AMÉLIE

Casey Dienel’s music is tranquil, serene and tastes like sweet – tough with no exaggeration in the sugar quantities. With her smooth and soothing girlish croon, frequently accompanied by a discrete piano and jazzy drums, Casey sings us her excellent poetry – which is one of the great outstanding aspects of her music. The words that come out of this girl’s mouth are enchanting: sophisticated, playful and pleasant, filled with interesting characters and memorable verses, Casey Dienel’s lyrics make us wonder if we aren’t face to face with one of the greatest lyricists to emerge from American music in years.

As to her sound, it recalls some sentimental and tender singers that marked the American landscape in the 70s, like Joni Mitchell and Carole King – and I guess Casey wouldn’t mind been put in that lineage. Her music also holds some resemblance with some of the modern girls who are making today’s pop history - like Fiona Apple, Tori Amos, Regina Spektor, Aimee Mann, Nellie McKay, Cat Power, Jollie Holland, among others.

In a year that was filled with great albums born out of complex female souls (Joanna Newson and her literary epic masterpiece Ys., Lisa Germano with the sober and somber In The Maybe World, Regina Spektor making the greatest album of her carreer with the lovely Begin To Hope…), Casey’s “Wind-Up Canary” is not only one of the greatest. It is an album really easy to love at first listen, but that unveils more and more charms with successive listens. This is the rare kind of work that works perfectly well if heard in a very superficial level, as “background music” to the affairs of daily life, but has also the great quality: if listened to with attention and dedication, reveals so large an amount of musical and literary talents that it seems inexhaustible even after several listens.

The record is mostly filled with tender and lightly melancholic ballads, reminiscent of Fiona Apple and Joni Mitchell, driven only by voice and piano (“Cabin Fever, “Frankie and Anette”, “Old Man”, “Tundra”…), but the are also some acoustic-guitar catchy-indie-folk (the irresistible “Stationary”) and some songs with biggest punch and more dynamic rhythms (“All Or Nothing”, “Embroidery” and “Everything”). Throughout the whole album, Casey Dienels displays versatility, good-humor, wide-spread intelligence and sensibility. She sounds gorgeous even when she goes slightly out of tune, as happens in “Tundra”, whilst subtle trumpets go along. She has also one of the greatest lah-lah-lahs in the history of female singers, providing as a delightful gran finale with the sad but gorgeous “La La Song”.

So the question: why it Wind-Up Canary a lovely secret only few people share? Why has it received such discreet recognition and repercussion? After we get to know Casey Dienel better, it seems that, in spite of the great talent she sure possesses, she isn’t particurlaly interested in stardom and fame. More or less like miss Amélie Poulain (who would certainly have chosen Wind-Up Canary as her pet-album!), Casey esteems a lot the little pleasures of daily life and seems much more interested in keeping a humble, serene and balanced life instead of giving away to ambition to become a phenomenon inside the music industry. She seems way too wise to have illusions about glory and way too happy with her life to feed dreams of changing it radically.

Wind-Up Canary is an unique album and an instant classic, which ends up being a sublime mix of indie pop, folk and vocal jazz, replete with excellent poetry – music that surely reminds us of the work of other singers (mostly Fiona Apple, Joni Mitchell and Nellie McKay…), but that nevertheless sounds deeply individual and original. Print Casey Dienel’s lyrics and you’ll have in hands one of the greatest books of poetry released in these last few years. Hear this record and it’s very likely you’ll leave this experience, which kindly caresses our ears and leaves us with a lasting inner peace hollering inside, wanting to thank Fate for having known the sweetest girl in the world.

sexta-feira, 20 de julho de 2007

:: :-D :::

Que alegria! O xuxuzinho da Casey Dienel está lá na CAPA (uia só!) da Rabisco. Além da entrevista exclusiva que ela concedeu ao seu fã brasileiro número 1, já publicada por aqui um tempo atrás, há por lá uma resenha inédita que escrevi sobre o "Wind-Up Canary", primeiro e único disco da moça. Confiram!

terça-feira, 17 de julho de 2007

LOVE BOAT CAPTAIN,
STEER US TOWARDS THE CLEAR...



“To the universe i don't mean a thing
And there's just one word i still believe
And it's love...

It's already been sung
But it can't be said enough
All you need is love..."


PEARL JAM, “Love Boat Captain”



Sabe qual é o meu grande problema? Acho que descobri: eu infelizmente tenho essa mania chata e terrível de ficar pensando o tempo todo no tamanho do Universo e me imaginando dentro dele como um pontinho quase invisível de tão minúsculo. Também não passa um único dia da minha vida que eu não me lembre que vou morrer. É coisa de deixar deprê. Ainda que bem que a maioria das pessoas esquece fácil: a gente quase sempre esquece que está num planetinha pequeninho na Via Láctea (Júpiter e Saturno são tão maiores!), acha que a rua de casa é um negócio grande, que nosso estado é imenso, que nosso país é uma enormidade, que o nosso planeta é Tudo que existe... A gente só se lembra de vez em quando do quanto somos nanicos – até porque lembrar não é gostoso.

Às vezes fico brincando de entrar dentro dos animais e das coisas com a imaginação e fico pensando coisas como: as formigas também devem considerar o formigueiro um palácio. Para os vírus, a célula deve parecer do tamanho de uma piscina olímpica. Para os elétrons, o núcleo do átomo é uma baita duma bolona, quase uma Lua, quase um Sol - e se o elétron tivesse mente provavelmente acharia que não existe nada maior no universo do que essa bola em redor da qual ele orbita... Talvez nós não sejamos assim tão diferentes, nós que viajamos nesse elétron que se chama Terra, girando loucamente ao redor do núcleo Solar, e achando que não existe nada maior no Universo do que isso, esse Solzinho mixuruco – que (pelo menos foi o que fiquei sabendo...), é só um dos muitos sóis que queimam e brilham por aí, em mil e uma galáxias... A sorte das criaturas pequenas é que elas acabam considerando grandes as coisas que são pequenas como elas...

Às vezes fico imaginando, depois de esmagar uma formiga ou uma barata debaixo do sapato, sobre a imensa indiferença que temos por certas formas de vida que nós chamamos, sem medo, de “insignificantes” - sem nem nos perguntarmos: mas nós por acaso somos diferentes? O narcisismo humano é uma coisa espantosa. Nós nos achamos os fodões. Mal suspeitamos que não podemos ser grande coisa.. Cometemos dúzias de assassinatos diariamente e nem ligamos, nem percebemos... Sem falar que todo dia, quando sentamos pra almoçar ou jantar, nosso prato costuma estar cheio de pedaços de cadáveres de vaquinhas, galinhas e peixinhos mortos, que a gente tem que assar e comer logo senão apodrece! Às vezes acho que a vida é um espetáculo sujo, sórdido, imundo, nauseante. Parece piada que alguém acredite que um Deus bondoso criou a coisa desse jeito. Pra mim a existência de uma coisa tão repugnante quanto a Cadeia Alimentar já é prova empírica da inexistência de Deus – ou, se Deus existe, o Cara é um filho-da-mãe muito sarcástico, sádico e perverso. Pra que criar um monte de bichinhos que ficam se comendo uns aos outros nesse imenso matadouro encharcado de sangue que é o planeta Terra? E às vezes fico pensando que para a Natureza nós somos como essas formiguinhas esmagadas debaixo do nosso sapato, ou até menos, já que Ela, essa Mãe tão “caridosa”, também manda seus terremotos, seus tornados, seus tsunamis e suas tempestades e mata os homens como se fossem pulgas, indiscriminadamente... Somos nós os “insignificantes”, na “perspectiva Dela”!

É natural que me sinta desimporante dentro dele como se sentiria uma pulga se pudesse ter consciência de seu tamanhico dentro do esquema das coisas... Mas os homens são frequentemente como pulgas: ignoram o tamanho imenso de sua pequenez. O Fernando Pessoa diz, em algum momento de raiva, algumas palavras cruéis contra as pessoinhas que, ocupadas com seus empregos, suas diversões, seus casamentos, suas novelinhas na TV e seus papos-furados, vivem numa sublime “ignorância da desimportância que são”... Eu, muito infelizmente, não consigo: vivo sendo queimado e machucado por saber o quanto eu sou minúsculo.

Acho que é bem provável que eu não passe de mais um bichinho entre tantos e tantos bichinhos que infestam esse planeta, um pequeno boneco ambulante de carne e osso, que flutua pelo espaço colado a uma bolota onde, sabe-se lá porquê, calhou de surgir a vida em mil e uma formas... Sei que posso morrer a qualquer momento: ter um ataque cardíaco, ter a cabeça estourada por uma bala perdida, pegar alguma doença contagiosa, ser atropelado na calçada porque um mosquito acabou distraindo o motorista do ônibus... Sei que o Universo inteiro não dá a mínima pra mim. Sei que a Natureza inteira não se interessa se eu estou vivo ou morto. Eu não conto nada. Eu não sirvo pra nada. Que eu exista ou não exista, para o Todo, tanto faz... Eu poderia nunca ter nascido e minha falta não seria sentida.

Às vezes fico imaginando também a minha morte, tentando desvendar como é que vai ser, com que idade, em que lugar, de que jeito. Será que chego aos 25 ou morrerei uma morte rock and roll antes disso? Será que vou chegar a ser um velhinho de cabelos brancos que ouve Nevermind com nostalgia? Será que vou morrer de câncer, de infarte, de AIDS, de resfriado? Será que vou tomar um tiro, despencar de um prédio, tomar uma dose de cianureto? E será que vai dar tempo de fazer algo que preste com a minha vida?

E fico pensando na tristeza que é isso: das 6 bilhões de pessoas que existem no mundo, só uma meia-dúzia iria realmente sofrer com a minha morte, iria sinceramente sentir a minha falta - porque para 99,9% da humanidade eu também não sou nada. Gente morre todo dia, e de monte, e eu morrendo deixo quase todo mundo dando de ombros e dizendo: “ora, e daí?” Um a mais, um a menos... dá no mesmo...

Fico pensando na tristeza que vai ser o meu funeral. Ainda bem que eu não vou estar presente! Imagino que, como é lei, aquelas pessoas que durante a minha vida inteira nunca me disseram uma única palavra de amor irão fazer discursos mostrando o quanto me amavam. (Ora, se me amavam, por que eu não fiquei sabendo disso, cáspita?!) Depois todo mundo vai continuar com suas vidas. Depois de ter a minha carne devidamente jantada pelos microorganismos decompositores, depois de alguns anos eu vou ser progressivamente esquecido pelos homens, meu aniversário não será mais comemorado, as visitas ao meu túmulo vão começar a rarear, as pessoas que me conheçeram também vão começar a morrer, e logo serei um nome qualquer escrito numa lápide num lugar lotado de lápides e nomes, e com o tempo, sim, até o nome na lápide se apagará, até os meus ossos virarão pó, até o planeta onde estão os meus ossos desaparecerá... Às vezes fico pensando se é verdade a frase mais triste que eu já li num livro: será mesmo que “o esquecimento é a última palavra do nosso destino comum?”

Daí entendo porque foi preciso inventar a mentira de um Deus e de um Paraíso e acreditar nessa ladainha toda... Sem essas ilusões, talvez seja verdade que a vida seja triste demais. Mas o que faz o infeliz incapaz de se deixar enganar?

E aí eu penso que talvez a vida humana não tenho mesmo nenhum sentido e nenhum valor para o Universo, que a raça humana seja um monte de animaiszinhos que logo não estarão mais aqui (se os dinossauros foram extintos, por que nós não seríamos?), que a Natureza é completamente indiferente à vida. Se alguma desgraça acontecesse, tipo um mega-cometa vindo se chocar contra o planeta Terra, acabando com toda a vida que existe, tenho a suspeita de que o Universo continuaria aí, existindo, com seus sóis e planetas e galáxias, sem derramar uma única lágrima pelo fim da vida. Iria continuar existindo, sem vida. Pra quê não sei.

E aí eu penso que a única coisa que temos é isso: uns aos outros. Que a única fonte de sentido e de valor é o amor. Que o máximo que podemos pretender é ter uma importância ultra-relativa: sermos especiais para aqueles que amamos, quem sabe sermos úteis para a humanidade como um todo, se der. Afinal de contas, para o Universo nós não somos nada, e tudo que vale a pena é o amor daqueles que nos viram passar por esse mundo. Sem isso, sem esse pouco, sem esse tudo, nada tem sentido.

* * * * *

Não só nós somos criaturinhas perecíveis condenadas a desaparecer, como também a Terra, um dia, não passará de poeira cósmica, o Sol um dia vai se cansar de arder e irá se apagar e, talvez, como dizem alguns cientistas, o Universo talvez irá novamente se amontoar todinho num pequenucho ponto de matéria, como era antes do Big Bang. Nem precisamos olhar tão longe assim, para a estratosfera, pra perceber a efemeridade de tudo. É só pensar no que serão de todas – absolutamente todas – as pessoas que estão neste mundo nesse exato momento em 100 anos. Em 100 anos estaremos todos mortos. Aquela moça com o bebê de colo que espera o ônibus, a criança que chuta a bola de futebol no parque, o casalzinho de namorados na fila do cinema, o tiozinho da pipoca (que parece ser eterno!), inclusive os filhos que você ainda não teve – todos mortos. Até o Keith Richards, em 100 anos, periga acabar morrendo, eu acho. Mas fica a questão: o fato de a vida acabar é razão para não viver ou dizer que a vida não vale nada? O fato da vida ter um fim retira completamente seu valor? A efemeridade necessariamente implica em falta de valor e falta de sentido?

E, quanto mais penso sobre isso, mais acho que é bobagem vincular a falta de valor ao fato da efemeridade. Uma pessoa que pensa assim se parece com o tolo que, quando convidado a ir pr'uma festa, dá a desculpa: “Ir pra quê, se a festa vai ter que acabar?” Tudo bem que a vida não é exatamente uma festa, mas gosto da metáfora. Ninguém se recusa a ir uma festa por saber que ela vai acabar. Aliás, uma festa interminável não seria terrível? Depois de um certo tempo, as pessoas estariam totalmente enjoadas e entediadas, querendo ir pra casa e descansar... Nós vamos para festas sabendo que elas vão acabar – e talvez nos divertimos muito mais assim, sabendo que o tempo é pra ser aproveitado...

Por que com a vida seria diferente? Sabemos que ela vai acabar, mas isso, ao contrário de ser um motivo para nos desanimar, é um impulso para melhor aproveitá-la. Sabemos que o planeta Terra também é perecível – mas por que então não tratá-lo como um Parque de Diversões que sabemos que vai ser desativado logo logo e então aproveitar a valer?! Vamos correndo viver o mais intensamente que podemos, amigos, que o amanhã não nos pertence e nossa ampulheta está constantemente se esvaziando...!

O fato de algo ser efêmero não tira o valor da coisa. Só quem está muito contaminado com o modo cristão/platônico de enxergar o mundo se engana nesse ponto, ao crer que só vale aquilo que dura para sempre. Se fosse assim, isso daria razão aos niilistas e nada valeria – já que nada dura para sempre. Na minha filosofia de vida, é claro que os niilistas e cristãos é que estão enganados (e uns não são tão diferentes assim dos outros, como o Nieztsche bem mostrou...): o valor está do lado do que passa e não do que fica! Essa vida que passa, essas festas que acabam, essas paixões que arrefecem, essas pessoas que vem e vão e que acabam por morrer, todo esses fluxos valem – senão objetivamente, pelo menos para nós. Nenhuma coisa precisa ser eterna pra valer.

E por que com o amor seria diferente? Tem gente que diz que relacionamentos humanos estão sempre condenados ao fracasso, com o tempo, porque as pessoas fatalmente enjoam umas das outras e todos os bons sentimentos que possam ter nutrido acabam se diluindo e se perdendo... Que casamento de décadas não acaba desaguando na completa monotonia e tédio? Acho sim que há um pouco de verdade nessa maneira de ver as coisas. Ficar muito tempo na companhia da mesma pessoa sempre cansa. Lembram dos personagens da peça do Sartre, Entre Quatro Paredes? Óbvio que aquelas pessoinhas, trancadas dentro do mesmo quarto por um longo tempo, iriam acabar por se irritar umas com as outras e se odiar mortalmente, a ponto de uma delas soltar a frase clássica: “O inferno são os outros!” Acho que todo mundo já sentiu muitas vezes que uma certa pessoa “enjoou”, que a relação não é mais como um dia foi, que o encanto se foi... São coisas da vida. E eu também sinto muitas vezes uma grande necessidade de não importunar os outros com a minha presença, a minha fala e as minhas idéias por muito tempo. Tenho muito medo de que enjoem de mim. Muitas vezes “corto” um papo que vai indo muito bem com o medo dele começar a se desgastar e ficar tedioso, achando que é preverível levar embora comigo a memória de um papo gostoso do que arrastá-lo por horas e acabar enjoado dele. Viver é também a arte de saber quando parar, quando se recolher na solidão, quando livrar os outros da nossa presença. Frequentemente eu faço às pessoas o imenso favor de livrá-las da minha companhia.

Sem falar que a separação às vezes ajuda, pela saudade que faz nascer, que ressurja o desejo do encontro. A distância, às vezes voluntariamente escolhida, pode aproximar os corações e fazer com que eles desejem se aproximar. É preciso saber dar ao outro um bocadinho de solidão quando ele precisa, livrar o outro da nossa companhia por um tempo quando sabemos que estamos cansando, saber se calar quando percebemos que o outro está cansado de ouvir...

Mas, por outro lado, acho que as coisas não são assim tão sombrias, que não dá pra generalizar radicalmente e dizer que todos os relacionamentos acabam em enjôo e náusea... Não conhecemos, todos nós, casos de grandes amizades que duram por décadas e décadas? Talvez alguns de nós até mesmo conheçam, por milagre, algum casal que permanece se amando mesmo depois de 30, 40 anos casados? Será tão impossível assim? Eu não acho. Primeiro porque toda pessoa é uma criatura em permanente mutação. Água tem sempre gosto de água, leite condensado tem sempre gosto de leite condensado, mas as pessoas não: pessoas mudam de sabor, mudam de cor, mudam de figura – como os camaleões. Se os cristãos me permitem uma heresia, gostaria até dizer que as pessoas vão mudando de alma no decorrer da vida – nossa alma também é camaleã e cigana! Por isso relacionamentos podem continuar interessantes; eu estou mudando e o outro está mudando e há sempre trabalho a fazer (mas que pode ser um alegre trabalho!) para manter o encontro.

O Sponville (grande Mestre!), escreveu algumas páginas magistrais e lindíssimas sobre esse assunto no capítulo sobre a Fidelidade do Pequeno Tratado Das Grandes Virtudes:

“Que o amor se aplaque ou decline, é sempre o mais provável, e é bobagem afligir-se com isso. Mas quer se separe, quer continue a viver junto, o casal só continuará sendo casal por essa fidelidade ao amor recebido e dado, ao amor partilhado e à lembrança voluntária e reconhecida desse amor. (...) A fidelidade é o amor conservado ao que aconteceu, o amor ao amor, no caso, amor presente (e voluntário, e voluntariamente conservado) ao amor passado...

Como eu poderia jurar que sempre te amarei ou que não amarei outra pessoa? Quem pode jurar seus sentimentos? E para que, quando não há mais amor, manter a ficção, os encargos ou as exigências do amor? Mas isso não é motivo para renegar ou não reconhecer o que houve. Por que precisaríamos, para amar o presente, trair o passado? Eu juro não que sempre te amarei, mas que sempre permanecerei fiel a esse amor que vivemos.

O amor infiel não é o amor livre: é o amor esquecidiço, o amor renegado, o amor que esquece ou detesta o que amou e que, portanto, se esquece ou se detesta. Mas será isso ainda amor?

Ama-me enquanto desejares, meu amor; mas não nos esqueça.”

Acho que é isso mesmo: as pessoas precisam ser maduras e lúcidas o suficiente para saberem que é humanamente impossível estar apaixonado o tempo todo, amar o tempo todo, manter os sentimentos sempre na mesma intensidade... O coração humano não é um forno ou uma sauna cuja temperatura possa ser ajustada e que vai, então, queimar com o ardor que desejamos. É claro que todo relacionamento tem seus altos e baixos, seus cumes e seus abismos, seus momentos de delícia e de tragédia – só estou dizendo o óbvio. O coração tem suas máres altas e baixas. Às vezes o amor irrompe e explode, outras se retrai, quase some... E por que não aceitar que seja assim? Não tem problema que seja assim. As pessoas estando conscientes de que as coisas se passam desse jeito, se mostrando compreensivas umas com as outras, não há problema... Salvem-se de entrar num relacionamento tendo a perigosa ilusão de que serão amados em tempo integral, amigos!

Porque, afinal de contas, Papai Noel, Coelhinho da Páscoa, Saci Perêrê, felicidade perpétua e amor em tempo integral são criaturas folclóricas, mitológicas, de mentirinha, folks! Convêm não levam a sério! Mas não digamos, também, que o amor e a alegria não valem nada só porque acabam – as festas também acabam e valem! As pessoas também acabam e valem! A vida também acaba... e pelo menos às vezes, pelo menos quando há amor, conseguimos nos dizer: ela também vale... Pois tudo só vale pelo amor, por causa do amor, como efeito do amor.

It's already been sung,
but it can't be said enough...
All you need is love...

:: ótimo texto de um grande mestre! ::



SOBRE A TRANSITORIEDADE

“Não faz muito tempo empreendi, num dia de verão, uma caminhada através de campos sorridentes na companhia de um amigo taciturno e de um poeta jovem mas famoso. O poeta admirava a beleza do cenário à nossa volta, mas não extraía disso qualquer alegria. Perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava fadada à extinção, de que desapareceria quando sobreviesse o inverno, como toda a beleza humana e toda a beleza e esplendor que os homens criaram ou poderão criar. Tudo aquilo que, em outra circunstância, ele teria amado e admirado, pareceu-lhe despojado de seu valor por estar fadado à transitoriedade.

A propensão de tudo que é belo e perfeito à decadência, pode, como sabemos, dar margem a dois impulsos diferentes na mente. Um leva ao penoso desalento sentido pelo jovem poeta, ao passo que o outro conduz à rebelião contra o fato consumado. Não! É impossível que toda essa beleza da Natureza e da Arte, do mundo de nossas sensações e do mundo externo, realmente venha a se desfazer em nada. Seria por demais insensato, por demais pretensioso acreditar nisso. De uma maneira ou de outra essa beleza deve ser capaz de persistir e de escapar a todos os poderes de destruição.

Mas essa exigência de imortalidade, por ser tão obviamente um produto dos nossos desejos, não pode reivindicar seu direito à realidade; o que é penoso pode, não obstante, ser verdadeiro. Não vi como discutir a transitoriedade de todas as coisas, nem pude insistir numa exceção em favor do que é belo e perfeito. Não deixei, porém, de discutir o ponto de vista pessimista do poeta de que a transitoriedade do que é belo implica uma perda de seu valor.

Pelo contrário, implica um aumento! O valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição. Era incompreensível, declarei, que o pensamento sobre a transitoriedade da beleza interferisse na alegria que dela derivamos. Quanto à beleza da Natureza, cada vez que é destruída pelo inverno, retorna no ano seguinte, de modo que, em relação à duração de nossas vida, ela pode de fato ser considerada eterna. A beleza da forma e da face humana desaparece para sempre no decorrer de nossas próprias vidas; sua evanescência, porém, apenas lhes empresta renovado encanto. Uma flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela. Tampouco posso compreender melhor por que a beleza e a perfeição de uma obra de arte ou de uma realização intelectual deveriam perder seu valor devido à sua limitação temporal. Realmente, talvez chegue o dia em que os quadros estátuas que hoje admiramos venham a ficar reduzidos a pó, ou que nos possa suceder uma raça de homens que venha a não mais compreender as obras de nossos poetas e pensadores, ou talvez até mesmo sobrevenha uma era geológica na qual cesse toda a vida animada sobre a Terra; visto, contudo, que o valor de toda essa beleza e perfeição é determinado somente por sua significação para nossa própria vida emocional, não precisa sobreviver a nós, independendo, portanto, da duração absoluta.

Essas considerações me pareceram incontestáveis, mas observei que não causara impressão quer no poeta quer em meu amigo. Meu fracasso levou-me a inferir que algum fator emocional poderoso se achava em ação, perturbando-lhes o discernimento, e acreditei, depois, ter descoberto o que era. O que lhe estragou a fruição da beleza deve ter sido uma revolta em suas mentes contra o luto. A idéia de que toda essa beleza era transitória comunicou a esses dois espíritos sensíveis uma antecipação de luto pela morte dessa mesma beleza; e, como a mente instintivamente recua de algo que é penoso, sentiram que em sua fruição de beleza interferiam pensamentos sobre sua transitoriedade.

O luto pela perda de algo que amamos ou admiramos se afigura tão natural ao leigo, que ele o considera evidente por si mesmo. Para os psicólogos, porém, o luto constitui um grande enigma, um daqueles fenômenos que por si sós não podem ser explicados, mas a partir dos quais podem ser rastreadas outras obscuridades. Possuímos, segundo parece, certa dose de capacidade para o amor – que denominamos de libido – que nas etapas iniciais do desenvolvimento é dirigido no sentido de nosso próprio ego. Depois, embora ainda numa época muito inicial, essa libido é desviada do ego para objetos, que são assim, num certo sentido, levados para nosso ego. Se os objetos forem destruídos ou se ficarem perdidos para nós, nossa capacidade para o amor (nossa libido) será mais uma vez liberada e poderá então ou substituí-los por outros objetos ou retornar temporariamente ao ego. Mas permanece um mistério para nós o motivo pelo qual esse desligamento da libido de seus objetos deve constituir um processo tão penoso, e até agora não fomos capazes de formular qualquer hipótese para explicá-lo. Vamos apenas que a libido se apega a seus objetos e não renuncia àqueles que se perderam, mesmo quando um substituto se acha bem à mão. Assim é o luto.

Minha palestra com o poeta ocorreu no verão antes da guerra. Um ano depois irrompeu o conflito que lhe subtraiu o mundo de suas belezas. Não só destruiu a beleza dos campos que atravessava e as obras de arte que encontrava em seu caminho, como também destroçou nosso orgulho pelas realizações de nossa civilização, nossa admiração por numerosos filósofos e artistas, e nossas esperanças quanto a um triunfo final sobre as divergências entre as nações e as raças. Maculou a elevada imparcialidade da nossa ciência, revelou nossos instintos em toda a sua nudez e soltou de dentro de nós os maus espíritos que julgávamos terem sido domados para sempre, por séculos de ininterrupta educação pelas mais nobres mentes. Amesquinhou mais uma vez nosso país e tornou o resto do mundo bastante remoto. Roubou-nos do muito que amáramos e mostrou-nos quão efêmeras eram inúmeras coisas que consideráramos imutáveis.

Não pode surpreender-nos o fato de que nossa libido, assim privada de tantos dos seus objetos, se tenha apegado com intensidade ainda maior ao que nos sobrou, que o amor pela nossa pátria, nossa afeição pelos que se acham mais próximos de nós e nosso orgulho pelo que nos é comum, subitamente se tenham tornado mais vigorosos. Contudo, será que aqueles outros bem, que agora perdemos, realmente deixaram de ter qualquer valor para nós por se revelarem tão perecíveis e tão sem resistência? Isso parece ser o caso para muitos de nós; só que, na minha opinião, mais uma vez, erradamente. Creio que aqueles que pensam assim e parecem prontos a aceitar uma renúncia permanente porque o que era precioso revelou não ser duradouro, encontram-se simplesmente num estado de luto pelo que se perdeu. O luto, como sabemos, por mais doloroso que possa ser, chega a um fim espontâneo. Quando renunciou a tudo que foi perdido, então consumiu-se a si próprio, e nossa libido fica mais uma vez livre (enquanto ainda formos jovens e ativos) para substituir os objetos perdidos por novos igualmente, ou ainda mais, preciosos. É de esperar que isso também seja verdade em relação às perdas causadas pela presente guerra. Quando o luto tiver terminado, verificar-se-á que o alto conceito em que tínhamos as riquezas da civilização nada perdeu com a descoberta de sua fragilidade. Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de forma mais duradoura do que antes.”

(Sigmund Freud. Obras Completas Volume 14, ed. Imago.)

domingo, 15 de julho de 2007

:: small talk e popices! ::

* OMBUDSMAN da MUMINHA SUJA diz (mais nova aquisição desse honrado site, cada dia com um staff mais completo!): esse blog anda muito sério, cruz credo! Vou tentar alegrar um pouco o ambiente que a coisa tá feia... Ainda bem que existem almas caridosas que de vez em quando tiram um sarro da minha cara, porque senão tudo estaria bem pior! Tenho uns amigos-da-onça por aí que nem pra me zoar servem, viu... ;P Quando é que eu vou aprender a não levar a porra toda tão a sério? É doença, isso! Nunca entendi porque a Seriedade não consta nos Manuais de Psicopatologia ao lado das esquizofrenias, das psicoses, das depressões e de todas as outras neuroses... Porque é patológico, folks. Eu bem sei. Toda cidade devia ter manicômios onde internar seus Sérios! E tem dias que eu precisaria ser internado num lugar desses. Morro de vergonha por ser tão ridículo ao reler algumas das coisas que eu escrevo aqui... Afe, quanto drama! Quanto chororô! Quanto desfile de melancolia! E pra quê?!.. Quando é que eu vou aprender que ser triste é completamente inútil?... Não serve pra nada. E é bobo demais ser sério: fica até parecendo que a vida é uma coisa importante...

* Não sei vocês, mas eu tô louco pra ver o filme dos Simpsons, que estreia nos cines brazucas no dia 17 de Agosto, o que torna essa première uma ótima opção para que eu me dê um belo dum Presente de Aniversário. Esse ano não tem festa, não...vou comemorar dando (tomara!) trocentas gargalhadas no cinema com as desventuras de Homer, Bart e companhia enquanto tentam salvar o mundo de alguma catástrofe que eles mesmo causaram. Aliás, no site oficial do filme tem uma divertida futilidade para quem quer, como eu, desperdiçar um pouco de seu precioso tempo: um mui legal joguinho de criar personagens simpsonianos. Me senti meio marica ao me entreter com esssas bobices, como se estivesse brincando de pôr roupa na bonequinha, mas acabei me saindo com uma criatura charmosa (vejam ao lado: não é a minha cara?). O sujeito já foi devidamente batizado como Luscious Sponjózus, o galã rock and roll de Springfield, mais sexy que o Mr. Burns, mais sedutor que a barriga de cerveja do Homer, mais horrorshow que os momentos mais sanguinolentos do Itchy and Scratchy Show (eis algo que merece um longa-metragem, também)!


* Assisti ontem ao mais recente filme do GÊNIO IMENSO que é o Lars Von Trier. The Boss Of It All é uma daquelas obras "menores" e de pretensões baixas que o cara faz entre os filmes maiores, num esquema mais lúdico e descompromissado do que o normal, como foi com Os Idiotas ou As Cinco Obstruções. Dando uma pausa antes de completar aquela que tem tudo pra ser a Melhor Trilogia Da História Do Cinema (Dogville - Manderlay - ...) , o enfant terrible do cinema dinamarquês fez uma comédia de primeiríssima linha: o filme é divertidíssimo, de gargalhar, mas está repleto de provocação e de material pra refexão - tought provoking stuff, como diria um crítico gringo. Lars é obcecado com a questão da Autoridade, do Abuso de Poder e dos Dilemas Éticos enfrentados por gente com meios para causarem grandes desgraças. É disso que trata esse O Chefão De Tudo - desde já um dos melhores filmes do ano. O Lars Von Trier é o meu cineasta predileto, o que eu mais admiro e pago-pau, e com certeza um dos artistas mais relevantes do mundo, hoje em dia, mesmo que seja um diabinho que não pára de nos alfinetar com suas tiradas sarcásticas e arrastar nossa cara na lama mostrando o quanto o ser humano não presta. Nunca fui muito fã de misantropia, mas o Lars Von Trier é um sujeito que consegue ser misantrópico e genial ao mesmo tempo. Incrível. Há rumores de que em 2008 vem aí um petardo trieriano absolutamente sensacional: o novo filme do cara vai se chamar "ANTICHRIST" (!!!) e será uma espécie de fábula bíblica às avessas sugerindo que não foi Deus mas sim o bom e velho Capeta o responsável pela criação do mundo. Isso promete taaanto!

* Como é que ninguém nunca me falou que Joe Strummer solo prestava? Presta. E como presta! Antes eu pensava que o The Clash tinha gastado toda a genialidade que tinha nos anos 70, cometendo aqueles três álbuns perfeitos que, pra mim, já colocam a banda entre as cinco melhores daquela década, mas que depois se desencaminhou... A maldição de ter composto um clássico do tamanho do London Calling acabou sendo um fardo muito grande nos ombros de Joe, Mick e companhia - e eles nunca chegaram perto de compor um sucessor à altura. Tudo bem que os mega-hits cláshicos são dos anos 80 ("Should I Stay Or Should I Go" e "Rock The Casbah"), mas o Sandinista!, apesar de uma meia dúzia de músicas brilhantes, é chato, excessivo, pedante, pouco rock and roll - e com certeza não precisava ser um disco triplo interminável. Os outros álbuns oitentistas do Clash também considero muito fracos comparados com os dos anos 70. Pois então: pra mim, o fodaço Global A Go-Go, do Joe Strummer & The Mescaleros, é o disco que o Clash devia ter feito depois do London Calling. Puta disco foda. Chamar de punk é pouco: isso é world music, reggae, dub, folk, música latina e mais uma pá de coisas. Baixei a discografia completa e tô gostando de quase tudo. Aliás, boa dica: está pra ser lançado o promissor documentário Joe Strummer: The Future Is Unwritten, dirigido pelo Julien Temple, o cara por trás das câmeras no ótimo O Lixo e A Fúria, aquele sobre os Sex Pistols...

* O Mágico de Oz para o Homem de Lata: "As for you, my galvanized friend, you say you want a heart! You don't know how lucky you are not to have one! Hearts are no good unless they can be made unbreakable!" E a pergunta que não quer calar, presente em todo Questionário Para Admissão de Novos Emos na Associação dos Sentimentalóides Anônimos: se eu fosse o Latonildo, ia pedir pro Wizard of Oz me dar um coração?

Mas claro que sim! Eu sou masoquista pra caralho!

segunda-feira, 9 de julho de 2007

AFTER THE GOLDRUSH

"Only love can break your heart.”
NEIL YOUNG


Seguem abaixo dois textos antigos que não postei aqui por pura vergonha: são muito sentimentais, melancólicos e cheios de nhém-nhém-nhém pra que eu realmente goste deles. Merecem o rótulo sarcástico de “literatura emo”! =) Ambos textos já têm meses de idade e eram “material de Diário”, daquelas coisas meio constrangedoras que a gente escreve e depois tranca na gaveta, mas resolvi enfrentar o meu medo de me expor e pôr aqui esses dois textículos sobre amor e melancolia. Foram escritos naqueles momentos horrorosos em que eu viro uma criancinha carente e chorona e que fica chamando de “amar” o que não passa de uma súplica vã da solidão. Garanto a vocês que esse é um dos meus eus de que eu gosto menos. Mas ele existe. E me domina frequentemente. Se estou colocando isso aqui, é mais porque acho que são textos “reveladores” : vocês vão me conhecer melhor se tirarem um tempo pra ler. Isso se alguém se interessa por essa bobagenzinha aí, me conhecer... Vocês provavelmente tem coisas melhores a fazer!...

Seria meio bobo dizer que são “mera literatura”, mas também não seria verdade se eu dissesse que são “auto-biográficos”. É algo entre os dois. O primeiro é um conto sobre escrever cartas de amor em meio ao medo da rejeição. É também sobre estar na fossa por não saber o que fazer pra conquistar aquele amor tão sonhado que iria acabar de vez com aquela porra daquele buraco negro no peito. O menino da história NÃO sou eu (por favor não cometam o clássico erro de confundir autor com personagem!), mas, bem sei, ele é um menino bem parecido comigo, ou com uns meninos aí que eu já fui (já fui uns 4.569 meninos diferentes na vida - and counting...). O segundo texto é um poema em prosa que fala sobre a maldição que é possuir um coração vivo demais e o desejo de ter um mais mortinho. Isso me lembra de uma personagem do Lawrence Durrel que diz: “Sabes quem inventou o coração humano? Se sim, me diga onde o enforcaram!” A metáfora principal eu surrupiei da Ani Di Franco. Essa mina é foda.

Sei bem que eu tenho tendências malditas pra ser dramático, levar as coisas muito a sério e me entristecer por qualquer bobagem, principalmente nesses duros “affairs of the heart”, mas tô tentando melhorar. Tem uma voz amarantina me dizendo no ouvido da consciência muitas vezes o bom conselho: “Não faz disso esse drama, essa dor...”. Não vou. Tô de boa. Não estou nada mal. Coração meio remendado com band-aids e esparadrapos, verdade. Mas pelo menos não foi fratura exposta e ele não se estilhaçou como vidro e não estou tendo que catar os cacos por aí. My heart is broke but i have some glue! Nada que SuperBonder não resolva. Ele não está nem engessado nem congelado. I can love again. And I fucking will. Um pouco difícil seguir vivendo sem amor, mas acho que já estou bem acostumado. Nunca tive muito amor mesmo...

E acho que vou seguir firme e forte nessa tentativa estúpida de tentar ser feliz. Reinventar o amor, redesenhá-lo do meu jeito, procurar quem me queira... Pr'essas coisas não existe Manual de Instruções e se tivesse eu não leria. Quero aprender assim mesmo: quebrando a cara e tendo só as lágrimas e as feridas como professoras. E quero fazer do meu jeito, mesmo que seja desengonçado e tosco. E se o desenho da vida acabar me contando que não consegui a tal da felicidade, vou tentar me contentar com ter tentado, ter lutado e ter vivido. I'll keep on searching for a heart of gold...

Um pouco difícil seguir vivendo sem felicidade, mas também já estou bem acostumado. Nunca fui muito feliz mesmo...

HISTÓRIA DE UMA FOLHA EM BRANCO


”Tens um inimigo? Deseja-lhe uma paixão.”
(Hilda Hilst)


Por incontáveis minutos ele fica olhando, com desespero crescente, para a folha em branco à sua frente, incapaz de começar a espalhar nela o encanto de suas palavras. É como uma maré alta de cansaço que sobe e inunda sua praia, um cansaço mortal que não mora no corpo – pois que montanhas escalou? que maratonas correu? que olimpíadas disputou?! Um observador externo não saberia dizer – só ele, que acompanhou de perto as odisséias de sua própria alma, saberia explicar o porquê de se sentir como se tivesse andado mais quilômetros do que a distância entre a Terra e o Sol. E então, como um carro que se percebe resfolegando sem gasolina, ele se sente com vontade de parar no acostamento e ficar ali, quieto e imóvel, no meio do caminho, desistindo da dura viagem... Agora que caiu o derradeiro “pois é, não deu...”, o coração só quer descansar...

Como um super-herói que começa a desconfiar de seus super-poderes e que de repente perde a habilidade de decolar e voar, de quebrar paredes ou lançar teias de aranha, ele perde a confiança em seu valor e seu talento, e agora hesita, como se soubesse de antemão que tudo que pudesse escrever seria pouco, sairia feio, condenaria ao fracasso... Em outras ocasiões, usava a escrita como uma espécie de tubo que enfiava na alma para drenar para fora todo o lixo. Feito um aspirador de pó. E quanto pó nesta alma, deus meu! Quanto pó! Nunca entendeu como as pessoas achavam que só era preciso dar banhos no corpo, quando ele sentia que, muito mais importante, era fazer uma corriqueira faxina na alma! E pra isso nada melhor conhecia do que escrever loucamente, com pressa, sem travas, deixando a caneta deslizar sobre o papel livremente, as palavras nascendo num jorro veloz, a sujeira saindo em forma de palavra, negra, viscosa, por todos os poros, chovendo pra fora numa tempestade...

Não precisava nem parar para julgar se estava bom, para censurar e rasurar, para se preocupar com o que pensariam os leitores: somente escrevia. Como quem vomita. Como quem enfia o dedo na garganta do próprio coração. Como quem se exorciza, lançando fora os demônios... Depois, se ficasse ruim, podia muito bem esconder do mundo a porcariada que tinha cometido, lançar a folha no lixo ou no fogo, escondê-la no fundo da gaveta ou da HD, depois que havia servido para o mais importante... Pois o que importava, de verdade, era unicamente ter se livrado do peso daquilo que ficava ali dentro, trancafiado; aquilo que ele precisava contar para alguém, com a necessidade que outros tem por oxigênio para respirar, mesmo que fosse só para uma folha de papel... Se não contasse? Explodiria.

Agora o brancor da folha se ergue à sua frente. É como se tivesse surgido de repente um bloqueio no meio da estrada e ele desse de nariz contra um muro de vidro – invisível, incontornável, inquebrável, impulável muro... Ele olha para a folha e é como se ela fosse uma cidade protegida por imensos portões de aço: nela ele não consegue entrar.

[2]

Por quê? Porque agora era diferente: não escrevia somente para se desafogar de seus excessos, para se desabafar do que pesava, para tornar mais leve o seu fardo... Agora ele escrevia com a mente loooonge, focalizando sem parar a imagem de uma pessoa distante, desesperadamente tentando encontrar o jeito de, finalmente, depois de tantas tentativas fracassadas, de tantas palavras doces, de tantos elogios deslumbrantes, todos tão vãos..., achar o jeito e o segredo para que ela, a única leitora que ele agora tinha como alvo, a única leitora que importava em todo o mundo, o único coração que lhe interessava tocar, enfim pudesse...

Mais uma tentativa? Mas dizer o quê, agora? Já havia dito, com toda a simplicidade, brincando sobre a sinceridade (e não sabias tu que verdade em excesso é um erro, amigo?), tudo o que queria dizer. Tinha tentado de tudo, todas as técnicas, todos os estilos, todas as chaves, todos os modos de sedução, todas as súplicas, todas as chantagens. Tudo. Tinha dito o que sentia, escancarando o coração, mesmo se sentindo uma criatura sem nenhuma originalidade, um clichê ambulante, encarnação do sentimenlóidismo: “te amo”, “preciso de você”, “me dá uma chance...” Nem se importou com o fato de que, fazendo isso, ficava parecendo o personagem de alguma péssima novela melada da TV, daquelas que tanto desprezava, ou com um horroroso compositor de pops românticos, daqueles que tanto odiava... Mas vai ver que ele era mesmo só isso, só mais um zézinho como qualquer outro, dono de um coração igual ao de qualquer um, nota zero no quesito originalidade... Um coração idiota e analfabeto, que só sabia fazer soar sempre a mesma nota, feito piano de uma única tecla: “te amo, preciso de você...” Sim, vai ver que sim...

E debruçado sobre a folha, ele se põe a procurar modos poéticos e grandiosos de dizer a mesma coisa que já disse a ela tantas vezes, e que disse tão em vão... e é aí que trava. Trava como um bebê que ainda não formou um vocabulário muito grande e que cismou em dizer só “tetê”, “mamã” e “pápá”. Tudo o que seu coraçãozinho consegue balbuciar ao seus ouvidos é o velho “eu te amo, preciso de você...” E isso não merece ir para o papel. Até porque já foi dito antes, e muitas vezes, e sempre em vão... Tudo que lhe ocorre é a idéia de suplicar – mas por que suplicar de novo, quando antes já tinha feito o mesmo, sem sucesso, sem resposta, sem ganho? Até mesmo os mendigos se cansam, às vezes, e preferem morrer de fome a continuarem a bater em portas que não se abrem, a falar com ouvidos que não escutam, a pedir sempre para mãos que nunca se estendem...

[3]

A brancura da folha teima em existir e ele fica ali, perdido frente a essa inimiga muda, se torturando, remexendo seus miolos, numa procura interna louca... Vai andando dentro de si mesmo, entrando em todos os becos e tocas de sua alma, em busca do tesouro escondido: aquelas frases mágicas, irresistíveis e magnéticas que ela seria incapaz de ler sem se sentir comovida, tocada, conquistada... Vasculha o Universo dentro do seu crânio em busca de algo que, dito direto pra ela, fosse servir como uma chave-mestra que abriria todas as portas e todos os cadeados, que venceria as barreiras e a distância, que traria abaixo todos os medos, que faria com que ela, ao ler aqueles garranchos no papel, pensasse – finalmente! - com o maior amor desse mundo na pessoa que as tinha escrito... Palavras que, entrando sorrateiras pelos olhos dela, fluiriam rio abaixo, como espiãs mandadas em missão secreta, direto para o coração, e nele acenderiam uma enorme fogueira... Mas, ó dilema!, o quê diabos escrever agora, depois de tanto ter tentado e tanto ter fracassado? Que palavras tirar do imenso oceano do dicionário, e de que jeito ajuntá-las, para que conseguisse pôr em chamas aquele coração tão desejado?...

Foi assim que ele descobriu o que significa ter uma “musa inspiradora”. Por momentos se sente unido por laços invisíveis com uma legião de poetas mortos. Ele os imagina presos em seus quartos, endoidecendo de solidão, com o coração a imaginar sem parar a figura da amada, e pensa que talvez eles todos, poetas de tanto renome, que gostavam de fingir ter intenções muito elevadas e nobres, talvez tivessem criado tanta beleza simplesmente porque gostavam de uma certa garota e queriam conquistá-la... Sim! Era só isso. Achou divertida sua ousadia ao derrubar tão grandes poetas de seus pedestais ao descobrir o segredo: eles só queriam ser amados... E pensou também: como diz uma imensa bobagem aquele que afirma que as mulheres deram pouca contribuição à história da poesia universal! Que poesia existiria sem as mulheres, sem o nosso desejo por elas, sem que, tentando agradá-las, nós homens, quase sempre tão brutos e grosseiros, nos esforçássemos por refinar nossa sensibilidade, demonstrar um pouco de ternura e de doçura, pingar mel em nossas almas cheias de fel?...

Pensou consigo mesmo, sarcástico: “Não é que os poetas do passado fossem supersticiosos a ponto de se crerem inspirados por criaturas de outro mundo e de outra natureza, semi-deusas baixadas à Terra, que chamavam de suas Musas... Não! A verdade era bem menos nobre: as musas não passavam de objetos do desejo. Muitos desses chamados “poetas românticos” escreviam tentando conquistar aquela garota que se imaginavam, que se idealizavam e que, talvez, no fundo, não existia em lugar algum a não ser em suas fantasias. E só isso explica a enormidade da melancolia presente em tantos deles... A musa é uma deusa mental diante da qual nos ajoelhamos para ofertar nossas produções e receber, se der, a aprovação... Talvez se iludam, pobres poetas, pensando que os ídolos existem lá fora, que a amada idolatrada está de fato no mundo, que existe de fato uma pessoa real que corresponda ao sonho (não existe, amigo! não existe...), sem perceber que somos nós que criamos nossos ídolos, e eles permanecem dentro de nós, presos dentro do nosso coração e nossa imaginação, imagens onde focalizamos o nosso desejo, ilhas em direção às quais navegamos, sem nunca alcançá-las...”


[4]

Mas essas digressões ficam todas encerradas dentro de sua cabeça. Nesse exato momento, ele não está nem um pouco interessado em registrar no papel pensamentos interessantes e filosofagens espertinhas: está ocupado demais pensando em sua musa, e acreditando que ela existe, e que é conquistável, talvez... Tudo que lhe importa é ela; achar as palavras para ganhá-la; achar o segredo para entrar naquele coração que havia lhe fechado as portas... A folha? Ainda em branco. E ele se debate em vão tentando encontrar as frases que – quem sabe... - iriam despertar o amor dela, aparentemente tão indespertável quanto um urso na mais profunda das hibernações...

Aflito e desesperançado, larga a caneta sobre a mesa e descansa o rosto sobre a folha vazia, tomado pela sensação horrível de ser o maior dos perdedores: como aquele que, numa corrida de atletismo, fica congelado pelo tiro de largada e, pior que chegar em último lugar, nem começa a correr. Se xinga por dentro e diz a si mesmo que nunca vai conseguir escrever nada tão bonito e comovedor quanto os grandes poetas do passado; que simplesmente não nasceu com o talento necessário; que não manja nada de sonetos, de redondilhas e de rimas; que suas metáforas saem sempre ridículas e forçadas; e que o coração que lhe foi dado, é o que ele sente, não é de tão boa qualidade: e o amor que ele tem a oferecer, ao que parece, é uma merreca que não interessa, algo de imprestável e inútil, uma secreção nojenta, como um catarro do coração ou um vômito da alma: ela não quer, nunca quis, nunca vai querer! Não... ela não quer...

Palavras, palavras... Também elas ele começa a odiar, como se tivessem prometido muito e nada tivesse sido entregue. Se acha ridículo por ter acreditado tanto no poder desses bobos ajuntamentos de letras – tão inúteis! Tão malditamente inúteis! Afinal, quem é que hoje é tolo de tentar seduzir com palavras, ao invés de usar os olhares, os sorrisos, as carícias?... Se tentasse escrever algo muito bonito, sabia que a coisa soaria horrivelmente pretensiosa e ela descobriria de cara, logo nas primeiras linhas, que ele não passava de uma farsa, um tolo fingindo ser grande, um zé-ninguém com a ridícula ambição de ser alguém... E ela saberia que não haveria ali nenhuma beleza verdadeira e que ele estava somente disfarçando, com a máscara de palavras estranhas e metáforas complicadas, a simplicidade do que ele queria dizer: “te amo, preciso de você, quero que você goste de mim...” Algo já dito, e já dito em vão... E agora o quê?!

“Não, não sou ninguém, não adianta...”, resmunga consigo mesmo, enquanto fecha o caderno com a raiva daqueles que sentem que não nasceram com o dom. “Não adianta, ela não gosta de mim e eu não há nada que eu possa fazer!” Com a tristeza daqueles que desejam, impotentes, aquilo que já não tem idéia de como conquistar, ele se entrega ao choro – ao choro ridículo que só faz com que ele se despreze ainda mais.

A folha fica em branco – nela nem sequer um registro do combate de horas que ele acabou de travar consigo mesmo. A folha em branco: testemunha sem palavras de uma derrota, um fracasso, uma desistência. O que era para ser uma especialíssima carta de amor, aquela que enfim ganharia o coração dela, o fósforo acendedor da fogueira, acaba não sendo nada além de um vazio. Um vazio que ecoa o vazio da madrugada lá fora, o vazio no seu peito, o vazio de tudo... Ele vai dormir e começa a se desesperar com a perspectiva de ter que continuar, por ainda mais um tempo, a conviver, não só com o silêncio que habita aquela folha, mas também com aquela angústia roedora por dentro, sua velha inquilina, que a carta não soube dissipar, pela amada que não soube conquistar... E dorme então, mais uma vez (e até quando, por Deus!?), o sono atormentado e cheio de pesadelos daqueles que não sabem o caminho para o amor.