domingo, 22 de julho de 2007

:: descobrindo victor hugo... ::


Confesso, envergonhado e ruborizado, as seguintes heresias: desisti de ler Os Trabalhadores do Mar (traduzido pelo Machado de Assis, ainda por cima!) depois dumas 80 folhas; só li um mísero resumex com linguagem simplificada d'Os Miseráveis na época dos meus estudos de francês no DAFAE de Bauru (a saga de Jean Valjean condensada em 80 folhas... pode?); e, pior, só fui apresentado ao Corcunda de Notre Dame em sua versão Walt Disney... Um tempinho atrás, pois, tentando sanar o mais grave dos meus crimes de ignorância literária - nunca ter lido Victor Hugo de verdade, que delito! - decidi começar por algo que me pareceu extremamente atraente: "Williiam Shakespeare", o livro onde um dos maiores escritores franceses da história fala sobre o maior gênio da literatura inglesa. Esse duelo de gigantes, esse diálogo de mestres, essa imensa homenagem de um colosso para outro, tinha tudo para ser, pelo menos, algo interesssante e instrutivo...

Foi muito mais. Porque esse livraço do Victor Hugo é bem mais do que um estudo, comentário ou crítica literária envolvendo a obra do Shakespeare, apesar de ser isso também: é praticamente O grande Manifesto Literário do Século 19, onde o Hugo dá um vasto panorama a respeito de todos os grandes gênios da história das letras, dá uma opinião detalhada sobre o que pensa que sejam os objetivos e missões da literatura e da poesia e, como se não bastasse, faz todo um tratado de Estética dos mais geniais que já conheci. Agora tô com uma louca vontade de ir devorar Os Miseráveis sentado debaixo de alguma árvore de algum bosque (springtime, what's taking you so long?), tendo alguma paisagem bonita para contemplar nos momentos que cansar os olhos. Sou um cara de prazeres antiquados e ultrapassados! Acho televisão um troço tão superestimado... Ler é um prazer tão maior, tão melhor, tão imensamente mais delicioso... Não entra na minha cabeça como alguma criatura possa preferir a Rede Globo à leitura dos sonetos de Shakespeare (eu, aliás, estou relendo-os todos no original! Um primor!).

Do livro do Hugo, selecionei alguns trechos para colocar aqui, mera amostra do que é esse grandioso e recomendadíssimo William Shakespeare by Victor Hugo. Eu realmente não sabia que a ironia e o sarcasmo, que impregnam certas páginas huguianas, podiam soar tão poéticas e elevadas. Nem tinha idéia de que Victor Hugo tivesse tamanha faciilidade para soltar frases sublimes como se não tivesse fazendo a mínima força - como quem levanta uma pena ou assopra poeira. Agora entendo porque o Sponville dizia que Victor Hugo "tem o gênio fácil"... Voilà:


- Ele é reservado e discreto. Com ele estais sossegado; ele não abusa de nada. Ele tem, acima de tudo, uma qualidade muito rara; é sóbrio.

Que é isso? Uma recomendação para um empregado doméstico? Não. É um elogio a um escritor. Uma certa escola, dita ‘séria’, ostentou atualmente este programa de poesia: sobriedade. Parece que toda a questão é preservar a literatura das indigestões. Outrora se dizia: fecundidade e poder; hoje se diz: tisana. Eis que estais no resplandecente jardim das Musas em que desabrocham, em tumulto e multidão nos galhos todos, essas divinas eclosões do espírito a que os gregos chamavam Tropos, por toda parte a imagem-idéia, por toda parte o pensamento-flor, por toda parte os frutos, as figuras, as maçãs de ouro, os perfumes, as cores, os raios, as estrofes, as maravilhas, não toqueis em nada, sede discretos. É por não colher nada disso que se reconhece o poeta. Sede da sociedade da temperança. Um bom livro de crítica é um tratado sobre os perigos da bebida. Se quiserdes fazer a Ilíada, fazei dieta. Ah! Foi em vão que esbugalhaste os olhos, velho Rabelais!

O lirismo é capitoso, o belo grisalho, o grande subir à cabeça, o ideal provoca deslumbramentos, quem dele sai não sabe mais o que faz; quando se andou sobre os astros, pode-se recusar uma subprefeitura; não estais mais de posse do vosso bom senso, ser-vos-ia oferecido um posto no senado de Domiciano que recusaríeis, não dais mais a César o que é de César, chegastes a esse ponto de desvario de nem mesmo saudar o senhor Incitatus, cônsul e cavalo. A isso chegais por terdes bebido nesse lugar ruim, o Empíreo. Ficastes altivo, ambicioso, desinteressado. Dito isto, ficai sóbrios. É proibido freqüentar o cabaré do sublime.

Liberdade é libertinagem. Limitar-se é bom, castrar-se é melhor.

Passai vossa vida a vos conter.

Sobriedade, decência, respeito pela autoridade, toalete irrepreensível. Não há poesia senão vestida com apuro. Uma savana que não se penteia, um leão que não faz as unhas, uma torrente não peneirada, o umbigo do mar que se deixa ver, a nuvem que se arregaça até mostrar o Aldebarã, é chocante. Em inglês: shocking. A vaga espuma no recife, a catarata vomita no golfo, Juvenal escarra no tirano. Ui, que nojo!

Preferimos o de menos ao demais. Sem exageros. Doravante a roseira terá de contar as suas rosas. O prado será convidado a ter menos margaridas. A ordem da primavera é moderar-se. Os ninhos caem no excesso. Digamos, portanto, arvoredos, não tantas toutinegras, por favor. A Via Láctea aceitará numerar suas estrelas; há muitas.

Tomai por modelo o grande Círio Serpentário do Jardim das Plantas que só floresce a cada cinqüenta anos. Eis uma flor recomendável.

Um verdadeiro crítico da escola sóbria é esse zelador de um jardim que a esta pergunta: ‘Há rouxinóis em vossas árvores?’, responderia: ‘Ah! Não me faleis disso, durante todo o mês de maio esses animais ruins só gritam.’ "




”Se houve um homem que não mereceu a boa observação: ele é sóbrio, esse homem foi, com certeza, William Shakespeare. Shakespeare é um dos maiores maus sujeitos que a estética ‘séria’ jamais teve de dominar.

Shakespeare é a fertilidade, a força, a exuberância, a mama cheia, a taça espumante, a cuva transbordando, a seiva em excesso, a lava em torrente, os germes em turbilhões, a vasta chuva de vida, tudo aos milhares, tudo aos milhões, nenhuma reticência, nenhuma ligadura, nenhuma economia, a prodigalidade insensata e tranqüila do criador. (...) Shakespeare é o semeador de deslumbramentos.

Shakespeare não tem reservas, retenções, fronteiras, lacunas. O que lhe falta é a falta. Nenhuma economia. Nada de abstinência. Transborda, como a vegetação, como a germinação, como a luz, como a chama. (...) Ele se dá, se espalha, se prodigaliza; não se esvazia. Por quê? Não pode. O esgotamento lhe é impossível. Tem dentro de si o infindável. Enche-se e gasta-se, depois recomeça. É o saco sem fundo do gênio.

Como todos os altos espíritos em plena orgia de onipotência, Shakespeare derrama sobre si toda a natureza, bebe-a e vos dá de beber. (...) Não pára, não se cansa, é impiedoso com os pobres estômagos fracos que são candidatos à Academia. Essa gastrite, que chamamos de “bom gosto”, ele não a tem.

Shakespeare, como todos os grandes poetas e como todas as grandes coisas, está repleto de um sonho. Sua própria vegetação o assusta; sua própria tempestade o apavora. Dir-se-ia por momentos que Shakespeare mete medo em Shakespeare. Tem horror à sua profundeza. Isso é o sinal das supremas inteligências. É a sua própria extensão que o sacode e que lhe comunica sabe-se lá que oscilações enormes. Não há gênio que não tenha ondas. Selvagem ébrio, seja. Ele é selvagem como a floresta virgem; é ébrio como o alto-mar.

Há gênios com as rédeas soltas de propósito por Deus para que sigam selvagens e em pleno vôo rumo ao infinito.”