sexta-feira, 28 de abril de 2006


cuma? a mãe dele deu o nome DEVENDRA?


From being my daddy's sperm
to being packed in an urn
From sucking my mama's breast
to when they lay my soul to rest
From my womb to my tomb
From the cave to my grave
I guess I'll always be a child...

People try and treat me like a man!
Yeah, people try and treat me like a man!
They think I know shit! Oh!
But that's just it: i'm a child!


DEVENDRA BANHART, o Messias do Novo Folk-Hippie,
em "I Feel Just Like a Child", do disco Cripple Crow, uma das músicas
mais divertidas já escritas na história da humanidade.



Ei, pessoal, 'cês tão sempre tão quietinhos... Passam por aqui e nem cumprimentam, nem falam oi, nem deixam pegadas... Me deixam aqui falando sozinho! Ficam aí me ignorando... Como já dizia alguém-que-não-lembro-mais-quem, "falar sozinho é legal, mas conversar é bem mais legal". E 'cês num falam nada... Que foi, hein?! Num gostam de mim, é isso?! (Ui.) Tudo bem, vocês tem todo o direito de não gostar de mim. Eu mesmo não gosto muito. Sempre entro de costas no banheiro pra não ter que olhar pra minha cara feia e ter meu dia estragado. Não me associo a nenhum clube porque qualquer clube que me aceite como sócio não merece o meu respeito nem o de ninguém. E "num há um só mendigo que eu não inveje só por não ser eu".

Seus tontos. Cês tão me deixando desanimado com esse blog, de tão pouca repercussão que dá qualquer coisa que eu escrevo aqui... Buáááá! Se o Dirty Little Mummie morrer, ninguém vai chorar no funeral!!! Eu sei: tenho q largar de ser trouxa e escrever uns textos um pouquinho menores, um pouco menos chatos, um pouco menos sérios e um pouco menos pretensiosos. Prometo que de agora em diante só escrevo provérbios e leis de Murphy.

Desculpaê por esse desabafo idiota.

Tem gente que pensa que eu sou adulto, maduro e racional... Rá!

Cês nem imaginam o quanto eu sou tonto.

* * * * *

Mais alguns disquinhos pra baixar:




MATTHEW SWEET - "Girlfriend" (1991) - power-pop fofinho.
ZOMBIES - "Odyssey & Oracle" (1968) - psicodelia anos 60.
FACES - "A Nod is as Good as a Wink... to a Blind" (1971) - rock'n'roll.
ECHO & THE BUNNYMEN - "Siberia" (2005) - ...show chegando! aê!!...

E recomendo tb uma visita aos blogs BRAZILIAN NUGGETS (http://brnuggets.blogspot.com/), lotado de discos ultra-raros de bandas nacionais psicodélicas e hippongas dos anos 60 e 70, e o LÁGRIMA PSICODÉLICA (http://www.lagrimapsicodelica.blogspot.com/), outra boa opção pra baixar álbuns completos não muito fáceis de achar por aí, inclusive muitos do bom e velho METAU.

* * * * *

PAGANDO-PAU FOR A LIVING.



Tô cada dia mais fissurado em KINKS. É simpatia total. É a única banda que ameaça suplantar os Beatles como melhor banda dos anos 60 na minha hierarquia emocional. O Kink Kontroversy é punky, tosco e totalmente adorável (foi homenageado pelo Sleater-Kinney na capa do Dig Me Out, um dos discos mais adoráveis do riot-girrrrl nos anos 90). O Face To Face (66) é uma das coisas mais perfeitas já gravadas na história do pop - é o Sgt. Peppers dos Kinks; e ando achando melhor que o Pet Sounds. O Village Green Preservation Society (68) é mais foda ainda, de longe um dos melhores discos lançados nos anos 60. E agora eu tô descobrindo que os discos dos anos 70 são tão bons quanto - por exemplo o Sleepwalker, de 1977, parece um proto-Wilco, com o Ray Davies soando como o pai de Jeff Tweedy. Ê bandinha deliciosa...

DOWNLOADEIA AÍ, DISCOS COMPLETOS (cortesia Lágrima Psicodélica):
- Kink Kontroversy (1966)
- Village Green Preservation Society pt1 e pt2
- Schoolboys in Disgrace (1975)

E continuo absolutamente fanático por SLEATER-KINNEY. Gosto de tudo que essas três minas fizeram e já ouvi cada disco umas 30 vezes, pelo menos. E num cansa. Sempre quero mais. O One Beat, então, é talvez o disco que eu mais ouvi na vida, sem nunca enjoar. Num entendo como se fala tão pouco desse que tem tudo pra ser o "Álbum da Década" - a Pitchfork deu um respeitável 9.3, e é raríssimo algum disco passar dos 9.0 por lá. Mas é pouco. Tanto hype por aí pra cima de banda medíocre e pouca gente conhece essa puta bandaça... O One Beat inteiro é foda demais, mas "Step Aside" e "Sympathy" são músicas tão excitantes que me conseguem fazer chorar sem ser de tristeza - chorar de excitação... É a banda mais subestimada da história.

* * * * * *



Minha ignorância sobre histórias em quadrinho é tão enorme que chega a ser vergonhosa, mas mesmo assim eu vou me meter a escrever "uma resenha" sobre esse filminho aí em cima. O lance é que só tô começando a me interessar por HQ de verdade agora, na "idade adulta" em que "estou entrando" (até parece...). Elas, as HQs, nem marcaram muito a minha infância. Quando era moleque eu até cheguei a ganhar de presente uma assinatura de gibis da Disney (blargh!), e fui devidamente contaminado pelas mensagens subliminares desses "agentes imperialistas" (como sempre diz o Henfil) que são o Mickey Mouse e o Tio Patinhas. É um crime pedagógico dar isso pra criança ler. É perigoso mesmo. Penetra até o inconsciente. A gente fica tendo sonhos de nadar numa piscina de moedinhas de ouro achando que essa seria a solução de todos os nossos problemas. Eu até tinha vontade de ir pra Disneilândia, porque todos meus amigos ricos iam e voltavam contando histórias só pra causar inveja - graças a Deus nunca fui, porque se tivesse ido hoje ia morrer de vergonha.

Li também bastante Turma da Mônica, mas isso num conta - criança que num leu Turma da Mônica tem que ser internada por não ter tido uma infância sadia. E histórias de super-heróis nunca foi minha praia. Até hoje conheço muito pouco, gosto de muito pouco: li um pouco de Spawn na adolescência, mas num me conquistou; mais recentemente, curti bragarai tudo que li das aventuras do Spider Jerusalém no Transmetropolitan, mas parei nos primeiros números; adorei o estilão grunge do Ódio do Peter Bagge, mas também só li um; e, claro, sou fãzaço do FRADIM e do Henfil em geral - foi o único quadrinho que eu posso realmente dizer que marcou minha vida (aliás, se alguém souber de algum sebo onde eu posso achar as primeiras 10 ou 12 edições do FRADIM, eu agradeço... aliás, quem foi o f.d.p. que me roubou algumas das minhas edições? Eu tinha pelo menos umas 20, e agora só tô com umas 14... Tudo bem que as minhas também são roubadas, mas porra, isso não se faz!)

Bom, esse "Crumb", documentário de Terry Zwigoff sobre a vida e a obra do Robert Crumb, lançado em 1994, foi um filme que eu assisti "grudado na tela" e que me deixou com uma puta vontade de conhecer melhor todo o gigantesco mundo ainda inexplorado da Nona Arte. O Anti-Herói Americano (American Splendor), que também é um filme bem legal e desencanado, já tinha me deixado afim de conhecer mais sobre HQ underground e cult... o filme do Fritz The Cat (também dirigido pelo Terry Zwigoff, que também fez aquele Ghost World, o primeiro da Scarlett Johansson), também achei bem bacana: foi o melhor desenho animado pornô que eu já vi! (mas num se assustem: eu não vi muitos). Mas é perverso. E deve ser mais fácil de achar numa locadora de Vìdeos Adultos (hrrrrr) do que numa de Filmes Cult. É meio zoofilia, deve ser esse o nome. Aqueles caras que tem a divertida profissão de criar nomes nacionais para os filmes pornôs estrangeiros iriam chamar o Fritz The Cat de algo como "Orgia No Zoológico" ou "Os Bichinhos Vão à Foda"...

Robert Crumb é famoso principalmente ter criado o Fritz The Cat, por ter inaugurado os "quadrinhos psicodélicos" com a revista Zap, por ter criado sob o efeito de LSD, por ter sido um dos grandes nomes do Quadrinho Contracultural e por ter desenhado essa famosa capa pra Janis Joplin. O documentário, apesar de ser um puta dum tributo/homenagem ao Crumb, é ótimo por não ser somente pagação-de-pau; Terry coleta declarações de críticos que descem o cacete no cara, chamando-o de machista, racista, pessimista, misantrópico, perverso, pornográfico, sexista, entre outros xingamentos. Mas Crumb é uma figuraça: um bom-humor imperturbável, uma sinceridade totalmente desconcertante, um jeito-de-ser todo peculiar. Esse é um daqueles filmes que a gente fica desejando que tivesse umas 4 ou 5 horas só pra poder ficar na presença daquelas pessoas que tão ali na tela... E é o tipo de filme que prova que certos seres humanos são muito mais fascinantes do que qualquer personagem de ficção jamais vai conseguir ser. Robert Crumb, o homem, é uma figuraça mais figura que qualquer de seus personagens...

Pô, e a Família Crumb é uma das mais bizarras que eu já conheci - mais que os Osbournes, mais que os Simpsons, mais que a família do Sitcom do François Ozon - e o pior (ou o melhor) é que é tudo de verdade. Só dizer que um dos irmãos Crumb tentou se suicidar tomando uma frasco inteiro de LUSTRA-MÓVEIS, mas amarelou na última hora e gritou pra mamãe que precisava ir pro hospital ter o estômago esvaziado (cara, num tem jeitos mais legais de morrer do que beber lustra-movéis?!). Ou dizer ainda que o outro irmão Crumb é um lunático zen esquizofrênico que passa horas "meditando" sentado numa CAMA DE PREGOS e mastigando um barbante (!!). Foi isso o que eu achei o mais engraçado de tudo: o Robert Crumb, uma figura pra lá de bizonha, é o mais normalzinho da sua família.

Também fiquei com a impressão de que o Crumb é mais que um cara que desenhou uns quadrinhos: ele é um Artista com A maiúsculo, alguém que usou seus dons para o desenho para expressar, sem concessões e sem medo, tudo o que sentia, mesmo suas fantasias sexuais mais bizarras e seus medos inconscientes mais inconfessáveis. A certo ponto do filme, ele confessa: "Não tenho nada para dizer em minha defesa. Só espero que dizer a verdade sobre mim possa ajudar alguém de alguma maneira..." Foi isso o que Crumb fez em seus quadrinhos: registrou com perfeição seus estados mentais, suas obsessões, suas manias; lançou pro papel toda sua alma. E todo mundo sabe que toda alma tem suas partes imundas! ;-)

Enfim, deu pra perceber que o cara tá longe de ser um modelo de virtude, mas os grandes artistas normalmente não o são, ao contrário do que muitos pensam, e mesmo assim merecem ter suas obras experimentadas, ainda que como homens fossem pouco admiráveis. Como lembra bem um dos entrevistados do documentário, um cara como o Céline, mesmo que tenha sido um anti-semita fervoroso e um simpatizante do nazi-fascismo, não deixa de ser um dos grandes escritores do século 20; do mesmo modo, o Crumb, que consegue ser altamente misantrópico e beirar a pornografia mais vulgar, não deixa de ser por isso um dos grandes artistas da história das HQs (se bem que eu teria que conhecer mais sobre o assunto antes de ficar falando essas coisas... mas deixa pra lá).

Enfim: filme recomendadérrimo. Deve ser difícil de achar em locadora, mas é só me pedir que eu empresto o CD, faço cópia, envio pelo correio, marco uma sessão aqui em casa... isso se ajeita. No E-Mule é fácil de achar.

* * * * *

Pra acabar, a Lei de Murphy do Dia (tirada dum livro de filosofia, veja só... eu não digo sempre que Lei de Murphy é Sabedoria?):

"...como todos sabem, a boa saúde é um estado precário e que não é presságio de nada de bom; a partir do momento em que a saúde está boa, já passou da hora de se inquietar!"
(Vladimir Jankelevitch)

domingo, 23 de abril de 2006

da série: OS FILMES DA MINHA VIDA.

DANÇANDO NO ESCURO
de Lars Von Trier

(Dancer In The Dark, Dinamarca, 2000, 140 min.)


Só sei que eu nunca vou me recuperar.

Dançando no Escuro foi o primeiro Lars Von Trier que eu vi; eu não sabia com quem estava lidando e fui despreparado para receber o golpe... Porque é de fato um golpe! Foi como um machucado na retina e no espírito que deixou uma cicatriz pra toda a vida. Nunca vai sarar. E nem quero que sare... Dogville, anos depois, também ia me deixar bestificado, quase que em estado de choque, sem saber o que dizer depois que aquelas metralhadoras pararam de cuspir balas e enquanto Bowie começava a cantar "Young American" - o que falar depois de um final daqueles?! Manderlay, que é menos chocante mas igualmente provocante, também iria dar nós na minha cabeça e me fazer pensar e pensar e pensar... Mas aí então eu já conhecia Lars, já tinha virado fã, já estava de sobreaviso... Mas Dançando No Escuro me pegou desprevenido: o nome Lars Von Trier ainda num significava nada pra mim. Era pra ser só mais um filme cult dinamarquês, provavelmente chatérrimo, algo que valia mais pela curiosidade de ver a Björk atuando do que por qualquer outra coisa... Eu não sabia que tava prestes a sentir um dos maiores impactos que já senti assistindo a um filme.

Dançando no Escuro, um dos grandes filmes desta década (Palma de Ouro em Cannes 2000), contando com a improvável atuação excelentíssima da Björk (melhor atriz em Cannes 2000), é mesmo uma obra-de-arte que está aí pra nos machucar, nos rasgar por dentro, nos fazer chorar de verdade, do desespero mais puro, da piedade mais bruta... Não sei se existe filme mais triste, mais emocionalmente devastador, mais impossível de assistir com indiferença, mais poderoso em fazer surgir uma resposta sentimental violenta no espectador... Até mais o empedernido dos insensíveis sente dificuldades pra não "passar mal" assistindo a esse trágico e doloroso melodrama de Von Trier. Sabe aquele seu amigo metido a machão que garante que nunca chorou em filme nenhum? Leve ele para ver Dançando no Escuro e faça a prova de fogo. Se isso não fizer ele chorar, não há mais esperança de cura: o coração é mesmo de pedra...

Você pode amar ou odiar Dançando no Escuro (e uma das características mais marcantes do cinema de Lars Von Trier é mesmo essa de dividir radicalmente as opiniões e levantar controvérsias intermináveis), mas ignorá-lo ou permanecer a ele indiferente ninguém vai conseguir. A principal função do cinema, segundo Lars, é mesmo provocar, causar um impacto, mexer diretamente com o espectador; ninguém sai ileso de um filme de Lars Von Trier. E eu assino embaixo. Acho que não tem nada a ver dizer que o filme é de "má qualidade" só porque nos faz sofrer e chorar, como se a função do cinema fosse só nos consolar e fazer carinho, como se a arte tivesse só uma função masturbatória... De má qualidade é um filme que não me faz sentir nada, que não questiona nada, que não serve pra nada além de passa-tempo! Quero filmes que me comovam, que me chacoalhem, que me questionem, que me coloquem contra a parede, que venham pra cima de mim querendo causar um estrago, que queiram me acordar e me arrancar da minha apatia... Quero sair de um filme uma pessoa diferente da que era ao entrar. E Lars sempre faz isso por mim. Nunca saí de um filme dele o mesmo que entrei.

Dançando no Escuro, apesar de não fazer parte da Trilogia Trieriana sobre a América iniciada com Dogville e seguida com Manderlay, poderia muito bem ser um capítulo do retrato pouco lisonjeiro dos EUA que o diretor fez através de sua obra, desta vez tratando de um dos símbolos da Justiça Americana: a pena de morte. Nunca tive nenhuma dúvida de que tudo no filme foi feito para que o espectador sentisse na pele a extrema injustiça que é a condenação de Selma à forca; não que ela não tenha cometido seu crime (sobre isso não há dúvidas), mas porque esse crime é perfeitamente desculpável e se justificava perante as circunstâncias.

Existe algum espectador que, ao final do filme, consegue achar que Selma merecia o cadafalso e que a Justiça realmente prevaleceu? É bastante improvável, porque Lars Von Trier, manipulador esperto como é, não pára um só momento de fazer com que simpatizemos com sua personagem, só pra depois nos machucar ao expô-la a um terrível martírio (que parece uma homenagem ao A Paixão de Joana D'Arc, clássico filme de Carl Th. Dreyer, cineasta de quem Von Trier é ídolo confesso).

Mas a coisa é mais complicada: Dançando No Escuro vai muito mais longe do que ser somente mais um filme sobre a pena capital (e já são muitos, só nos últimos tempos: A Vida de David Gale [de Alan Parker], À Espera de Um Milagre [de Frank Darabont], Os Últimos Passos de um Homem [de Tim Robbins]...). De um certo modo, Dançando no Escuro se enquadra naquele grupo de filmes sobre condenados à morte que se compadece do preso, se finge de advogado de defesa e se põe a enumerar circunstâncias atenuantes (caso também de filmes como Monster [de Patty Jenkins] ou A Viúva de Saint-Pierre [de Patrice Leconte]).

Agora a ressalva: o filme do Von Trier mostra sim o espetáculo doloroso de uma (injusta) Justiça que passa como um rolo compressor sobre uma mulher bondosa e pura, o que o torna sim um persuasivo manifesto contra a pena de morte... Mas ele é muito mais que isso. Porque a Selma, personagem principal de Dançando no Escuro, além de ser uma condenada das mais peculiares, parece consentir com a decisão de seus carrascos, o que faz o filme ir além do fechamento no tema "pena de morte". Pra mim, ele é quase uma "fábula existencialista" que trata de muitos outros assuntos além da pena morte: ética, amor, auto-sacrifício... É o que vou tentar explicar na sequência.


PARTE 2: UMA SANTA NA FORCA.

Não há dúvida de que o retrato que Lars Von Trier nos fornece de Selma não contêm uma reprovação oculta ou uma ironia desdenhosa, como parece ser o caso com a Grace e o Thomas Edison Jr. de Dogville e o Dickie de Querida Wendy (que são frequentemente zoados e tratados com desprezo por seu Criador...). Lars Von Trier pinta na tela uma mulher que é a própria encarnação da inocência, do altruísmo e do bem - em uma palavra: uma santa. Não é à toa que Dançando No Escuro é parte de uma trilogia - completada por Ondas do Destino e Os Idiotas - chamada Golden Hearts.

Selma simboliza um comportamento de uma "beleza moral" inegável: trabalha exaustivamente na fábrica, mesmo com a progressiva piora de sua condição física, fazendo inclusive horas extras e trabalhos por fora, para reunir o dinheiro para a operação que pode salvar seu filho da cegueira. Uma missão que exige obstinação e paciência, recusa dos gastos supérfluos e todo tipo de consumismo, rígido auto-controle e disciplina... A vida de Selma é de fato uma via-crúcis, e mesmo antes de sua condenação; uma vida que é tão dura e tão sofrida que é só mesmo entregando-se a suas fantasias musicadas que ela consegue achar a força para seguir em frente. Mas segue. Selma têm energia para continuar lutando e se esforçando, mesmo com a escuridão progressivamente avançando sobre ela por todos os lados, praticamente recusando uma vida para si mesma: sua vida inteira é dedicada ao bem de outrem. Ela é a santa da auto-abnegação que aceita todo o sofrimento e todo cansaço em nome do bem da pessoa amada...

Quando seu "amigo" policial tenta roubar suas suadas economias, é mais que dinheiro o que ele ameaça arrancar de Selma, é algo de muito mais precioso, algo que não tem preço: é todo o sentido de sua vida, é tudo aquilo que justificava para ela o sofrimento, é o resultado de um esforço imenso... É por isso que qualquer um consegue compreender como essa assassina está longe de ser malvada: qualquer um de nós faria o mesmo para defender algo de tão valioso...

A cena do assassinato, extremamente comovente e filmada com um realismo impressionante, de modo algum mostra Selma "caindo em perdição" ou "perdendo sua bondade", como parece ser o caso com a Grace no desfecho de Dogville e Manderlay. Selma não faz o que faz por maldade, eis o ponto - e o espectador sabe disso, sente isso. Mesmo com as mãos sujas de sangue e um cadáver em seu colo, ela não permanece tão pura quanto sempre foi? Seu ato não é absolutamente compreensível e desculpável? O problema é que os juízes e os jurados não estavam lá para ver a cena - e infelizmente "fatos são fatos"...

Após a prisão de Selma, quando Dançando No Escuro ameaça se tornar um "drama de tribunal", a atitude dela causa uma certa estranheza. Apática, silenciosa, distante da realidade, perdida no mundo da Lua, Selma assiste meio que de longe ao desenrolar do julgamento que vai selar seu destino. E a angústia cresce no coração do espectador, que quase se levanta e grita para a tela: "Vamos, moça, se defenda! Proteste! Se explique! Tente se salvar!" E ela não faz o mínimo esforço para se desculpar, se justificar, se inocentar, como também não reclama ao receber a sentença. Assume o papel da ovelinha que vai sendo conduzida ao matadouro e que não ousa dar nem um mínimo balido de protesto...

Isso me deixa curioso. Por quê Selma se entrega à morte de um jeito tão resignado? Ela certamente poderia ter se defendido melhor, tentando mostrar como as coisas se haviam passado na realidade, que tipo de circunstâncias praticamente a obrigaram a fazer o que fez... Poderia ter procurado conquistar a simpatia e a piedade do júri. Poderia inclusive dar o testemunho de sua consciência, que, ao que tudo indica, permaneceu sempre absolutamente limpa (a canção não diz exatamente: "Só fiz o que precisava fazer"?). A apatia de Selma quando senta no banco dos réus, sua falta de vontade para esforçar uma defesa e uma desculpa, parece inexplicável, como se a vontade de viver tivesse extinta dentro dela... Algo que me lembrou da atitude do Mersault de Camus na segunda parte d'O Estrangeiro.

Como explicar? Eu tento (mas é uma interpretação difícil de comprovar, mais uma hipótese do que uma certeza): é que, mais uma vez, esta santa da auto-abnegação está abandonando seu interesse pessoal, que seria salvar-se a qualquer preço, e tentando não fazer mal aos outros, mesmo aos mortos. Dizer a verdade naquelas circunstâncias seria acusar Bill de roubo, de egoísmo, de falsidade para com sua esposa... o que seria contaminar sua reputação e o amor que os vivos continuam a nutrir por sua memória. Talvez Selma aceite que a culpa recaia sobre ela só para que Bill possa descansar em paz também nas mentes de seus queridos. Talvez.

Outra coisa: é possível que ela pudesse ter se salvado da condenação, que muito provavelmente se deu pela incompetência do advogado de defesa (cujo discurso Von Trier omite), se tivesse aceitado pagar o novo advogado. No momento em que lhe oferecem a possibilidade de gastar suas economias pagando um advogado melhor ela se vê está frente a frente com um dilema: deve se apossar das economias arduamente conquistadas para se salvar da pena de morte e, com isso, impedir o filho de conseguir sua operação?

O direito de utilizar esse dinheiro ela o tem, certamente, pois é tudo fruto de seu suor e de seu trabalho. Mas isso não seria incoerente com sua vida e sua batalha? Ela, que sempre havia sacrificado tudo, todo o seu prazer, todo o seu interesse, toda a sua vida própria, na tentativa de dar ao filho o presente da cura, iria nesse momento deixar-se vencer pelo "egoísmo" e preferir-se em relação àquele que sempre foi o preferido? Na resposta de Selma a esse dilema está a prova da pureza de sua virtude: mesmo sob ameaça de morte, ela se recusa a tomar para si algo que fará um bem a outro. Prefere morrer pra fazer o bem ao filho do que se salvar tirando dele a possibilidade da cura.

Em definitivo, Lars Von Trier completa o retrato de sua Santa Selma: ela é sim uma mártir que deixa-se sacrificar pois coloca a vida de outra pessoa em um patamar superior ao da sua. Ela é um símbolo daquele tipo de amor (tão raro que parece que não existe fora da fantasia...) que vai até o extremo dos extremos e que acaba em auto-imolação... O que vimos em "Dançando no Escuro" foi mais do que uma execução, portanto: foi uma canonização! Algo que já tinha sido feito por Lars Von Trier em seu filme anterior, Ondas Do Destino (Breaking The Waves), que têm um final explicitamente místico-religioso... Arrisco uma conclusão pretensiosa: Selma - e também a Bess, protagonista de Ondas Do Destino - são como duas imagens de Jesus Cristo segundo Lars Von Trier! Ou, parafraseando Camus (que, se estivesse vivo, iria ter adorado Dançando no Escuro), "são os únicos Cristos que merecemos"...

No fim do percurso, Selma pode se entregar à morte sem resistência e sem protesto porque sabe que sua "missão" foi cumprida: o sentido que ela impôs à sua vida foi realizado, o salvamento do filho foi concretizado, seus esforços e seus suores deram seus frutos... Seu sacrifício valeu a pena. Dançando no Escuro, um dos filmes mais tristes de todos os tempos, não é só escuridão, afinal, e um pequeno Sol se acende e começa a brilhar ao final de tudo... O amor sobre-humano de Selma, seu sacrifício obstinado, sua luta infatigável, acabam por dar exatamente o resultado que ela buscava. A morte não pode arrancar dela essa vitória. É por isso que ela pode morrer de um modo extremamente incomum para um condenado à pena capital: morre cantando...

sexta-feira, 21 de abril de 2006

1998

(SHERYL CROW sim, qualé o problema, pô?
E na mesma lista que SLAYER sim, por que não?)

segunda-feira, 17 de abril de 2006





(ia escrever só pra pagar pau pro filme do Fincher, mas me empolguei e acabei com um texto que é meio que sobre a Trilogia Inteira... Então tó:)

!!! TRILOGIA ALIEN !!!

Alien (de Ridley Scott, 1979)
Aliens
(de James Cameron, 1986)
Alien III (de David Fincher, 1992)


Quando foi lançado, em 1992, o segundo ano da Era Grunge, Alien III foi considerado por grande parte da crítica como um fiasco monumental - e o diretor iniciante David Fincher, saído do mundo dos videoclipes e das propagandas de TV, parecia ter afundado sua carreira de cineasta logo em sua estréia. Alguns anos depois, como se sabe, Fincher iria se redimir lindamente, cometendo pelo menos duas obras-primas irrepreensíveis que bastaram para o tornar um dos grandes diretores americanos dos anos 90: Seven, Os Sete Pecados Capitais (que é pra mim o melhor suspense de sua década, melhor até que O Silêncio Dos Inocentes) e Clube da Luta (que é pra mim um dos melhores filmes de todos os tempos - ponto final), além de dois outros thrillers competentes mas não tão marcantes (O Quarto Do Pânico e Vidas em Jogo). Só fui realmente checar qualé a de Alien III depois de ter virado fã de carteirinha de Fincher, curioso pra saber se o cara realmente derrapou tão feio assim em sua primeira incursão cinematográfica quanto dizem... E que boa surpresa! Digo, mesmo com 90% dos críticos do mundo contra mim, que acho o Alien de David Fincher disparado o melhor da série, o mais ousado, o mais estiloso, o mais subversivo, deixando o seu predecessor, o Aliens de James Cameron, comendo poeira...

O Alien 1, o do Ridley Scott, é sim uma obra-prima, um marco pro cinema de ficção científica com elementos de terror, um eye-candy maligno e plasticamente perfeito... Com um climão sombrio muito bem construído, um suspense hitchcockesco bem conduzido, uma narração que flui excelentemente apesar de com um certo vagar, o Alien de Ridley Scott tem sua maior virtude no climão em que ele nos envolve. Ele nos põe naquele ambiente claustrofóbico e solitário, nos encerra dentro naquela nave desoladora, nos faz tremer junto com os personagens perseguidos por aquele oitavo passageiro sanguinário...

Já em Aliens, a sequência dirigida pelo estrupício do James Cameron (que depois ficaria famoso pela desgraça do Titanic e por alguns outros filmes que eu não vi e não gostei...), a coisa desanda totalmente. Até hoje não entendo o deslumbramento de críticos e fãs com um filme tão desprezível - 100% no Tomatometer, vê se pode! O que antes, sob a condução de Ridley Scott, era uma ficção científica distópica e um suspense sombrio, virou um filme de ação descerebrado, uma espetaculosa idiotice, um "Rambo no Espaço"...

Se Ridley Scott tinha se preocupado mais em criar um climão todo gélido e temível, como faria também com mãos de mestre em Blade Runner, James Cameron (que aliás já dirigiu filme de ação com Arnold Schwarzennegger, pra vocês verem o nível...) resolveu fazer uma Aventura Galática Com Muito Tiro e Correria, onde os mariners americanos, todos com jeitão de Robocop, desmiolados e metidos a fodões, vão invadir o ninho alien com seus lança-chamas, suas metralhadoras gigantes e sua gritaria insuportável... Aliens é só apelação: aquela menininha enfiada na história para efeitos melodramáticos, aquelas cenas de ação zoneadas e sem feeling, aquele desfecho inacreditável de tão medonhamente ridículo onde a Ripley aparece comandando um Robozão Amarelo (um dos maiores momentos de Humor Involuntário da história do cinema!)... Fala sério!

Fincher chegou com uma visão nova e levou a Trilogia Alien pra outro lugar, tornou tudo mais excitante, mais imprevisível, mais gore - e seu filme traz os melhores diálogos da série e alguns efeitos de câmera muito bem utilizados, já demonstrando o "virtuosimo técnico" que se tornaria uma das marcas do cara no futuro (só pensar nas peripécias incríveis que faz a câmera de O Quarto Do Pânico). Os primeiros 15 minutos de Alien III já chegam chutando o pau da barraca em relação ao filme anterior, substituindo todo aquele heroísmo e glória de Aliens em tragédia e desolação. Todo aquele exaustivo espétaculo de resgate empreendido por Ripley para salvar sua querida filha adotiva, no fim de Aliens, já é de cara é estilhaçado em mil pedaços quando a loirinha é dada como morta já no início de Alien III. Foi tudo em vão... O previsível final feliz da saga, que se delineava no 2o episódio, já era. Não, Ripley não terá o prazer de substituir sua filha morta pela adotiva e viver feliz para sempre... E não é qualquer um que tem coragem de cuspir no filme a que pretende dar sequência! Ponto para Fincher, que fez bem em não continuar na mesma linha que Cameron impôs à série.

Fincher traz Alien de volta ao seu climão, que é de desespero, de sombras, de incerteza, e fecha a saga com um filme sci-fi altamente grunge – culpa dos tempos, também, pois era 1992. Alice in Chains e Soundgarden não ficariam mal na trilha-sonora de um filme tão deliciosamente sombrio! Fincher não economiza nos tons negros para pintar seu quadro desolador: ele nos obriga a assistir a autópsia de uma criança (numa daquelas cenas que faz com que as mocinhas mais sensíveis tapem os olhos com as mãos), encerra sua "heroína" numa prisão de segurança máxima cheia de assassinos e estupradores (que não vêem mulher há anos), a faz aparecer na tela com um zóião vermelho e inchado e com o cabelo raspado, e ainda por cima, como se não bastasse, faz com que ela esteja grávida de um Alien... E o melhor de tudo: nada de armas de fogo. Ah, James Cameron, eu queria ver o que tu faria tendo que fazer um Alien sem poder usar metralhadoras...

Nos dois filmes anteriores, dava pra saber de antemão que a Ripley iria vencer apesar de todas as tretas, durona e inquebrável como é. Fincher chega e subverte tudo. Mais do que um filme sobre a luta pela sobrevivência de um herói condenado desde o princípio à vitória, Fincher transforma Alien III num campanha suicida! Dá até pra dizer, exagerando um pouco, que no epicentro do filme está um dilema moral que Ripley precisa resolver: ela deve se entregar à equipe de resgate que vai reconduzi-la à Terra com um alien em sua barriga, com o risco de que a criatura cause imensas destruições no planeta azul, ou vai preferir se sacrificar em nome da segurança da humanidade?

Alien III, diferente dos dois anteriores, não é somente uma luta pela vida: Ripley quer mais é morrer... Ela se decide bem cedo ao suicídio, mas tem sérias dificuldades para concretizá-lo, principalmente porque mamãe Alien não quer matar a hospedeira do bebê Alien... Ripley quer se matar e não consegue; pede para o bicho sanguinário que a engula, e ele se recusa; pede para seus amigos lhe cortarem fora a cabeça, mas eles não querem... Quer coisa mais grunge?

E o dilema vai mais longe, porque, de certo modo, toda a saga Alien é meio que uma metáfora para os perigos da curiosidade humana. No início de tudo, não foram os aliens que nos atacaram gratuitamente, como é o caso na maioria dos outros filmes de ficção científica sobre extraterrestres, mas fomos nós que fomos meter o bedelho, mexer no vespeiro, enfiar o nariz onde não éramos chamados... É em nome da Ciência que a humanidade se coloca em perigo, e é em nome da Ciência que a equipe da Nostromo é "sacrificável", pois mais importa trazer vivo o espécime alien para estudo do que o bem-estar das próprias pessoas mandadas ao espaço para resgatá-lo... O lance distópico em Alien é que os astronautas são enviados ao espaço junto com andróides e naves pré-programadas, e eles mesmos, os astronautas, não são tão importantes: o que importa é capturar as criaturas, levá-las de volta para a Terra e estudá-las com a intenção de criar armas biológicas.

David Fincher, famoso por seus finais-de-filme imprevisíveis e inesquecíveis (ah, aquele de Seven é de longe o melhor final que eu já vi...), também aqui foge da previsibilidade e fecha a saga de um modo que os fãs certamente não esperavam (e talvez isso explique a implicância). O fim da trilogia, pessimista e sombrio, faz com que Ripley, ao invés de ficar de pé novamente como uma sobrevivente heróica frente aos aliens assassinos, pereça como uma mártir. Em sua agonia incendiária, Ripley envia uma mensagem de descrença em relação aos avanços da humanidade em direção a outros planetas e ao desenrolar da ciência em geral. Quando a heroína afunda naquela piscina de fogo, carregando consigo um espécime importantíssimo como objeto de estudo científico, está dizendo que a ignorância é mais segura que a busca pelo conhecimento e que a curiosidade, afinal de contas, pode nos matar. Pode-se não concordar com essa visão, mas o fato é que Alien III oferece um desfecho que faz pensar mais que qualquer de seus predecessores e nos entrega às discussões pós-filme. Aqui, em sua estréia, já está prenunciado o talento de David Fincher para enfiar questionamento e provocação em filmes que parecem, à primeira vista, unicamente comerciais - de modo que Alien III está longe de ser um fiasco: visto depois de Seven e Clube da Luta, é só mais uma prova de quão brilhante é a mente de Fincher.

sábado, 15 de abril de 2006

Baixaê, ó:



(dois ótimos lançamentos: a banda nova do Jack White e do Brendan Benson, o Racounters, e um primoroso álbum ao vivo e orquestrado do Eels.)

DOWNLOAD RACONTEURS - BROKEN BOY SOLDIERS

DOWNLOAD EELS - LIVE AT TOWN HALL


Além disso, o CD 01 do BOX trimmassa NO THANKS! THE 70s PUNK REBELLION, a melhor coleta do punk nos 70 - ó o que a PITCHFORK diz.)

DOWNLOAD - NO THANKS DISCO 1

01 Ramones - Blitzkrieg Bop
02 Clash - White Riot
03 Nick Lowe - Heart Of The City
04 Buzzcocks - Boredom
05 Saints - (I'm) Stranded
06 Damned - Neat Neat Neat
07 Jam - In The City
08 Pere Ubu - Final Solution
09 Modern Lovers - Roadrunner
10 Television - Little Johnny Jewel
11 Adverts - One Chord Wonders
12 Heartbreakers - Born to Lose
13 Iggy & The Stooges - Search and Destroy
14 Mink Deville - Let Me Dream If I Want To
15 X-Ray Spex - Oh Bondage Up Yours!
16 Wire - 12XU
17 Richard Hell & The Voidoids - Blank Generation
18 Stranglers - (Get A) Grip (On Yourself)
19 Runaways - Cherry Bomb
20 New York Dolls - Personality Crisis
21 Eddie & The Hot Rods - Teenage Depression
22 Dictators - Two Tub Man
23 Patti Smith - Hey Joe [Version]
24 Generation X - Your Generation

sexta-feira, 14 de abril de 2006

Sorte de hoje: "Você tem um coração generoso e é bem-amado".

(O Orkut cada dia mais sarcástico...)



Amós Oz - Contra o Fanatismo
(How To Cure a Fanatic, Ed. Ediouro)

Gostei muito desse livrinho do escritor israelense... lúcido, bem-humorado, simples, profundo, e pra lá de útil pra entender esse começo de século que (quem diria...) vem mais marcado pelo fanatismo que muito século da Idade Média... Recomendado.

”O fanatismo é mais antigo que o Islã, mais velho que o Cristianismo, que o Judaísmo, que qualquer estado, governo ou sistema político, que qualquer ideologia ou fé no mundo. O fanatismo é, infelizmente, um componente onipresente da natureza humana, um gene do mal, se quiserem chamá-lo dessa forma. Pessoas que explodem clínicas de aborto nos Estados Unidos, que queimam mesquitas e sinagogas aqui na Alemanha, diferem de Bin Laden apenas em escala, mas não na natureza de seus crimes.” (15)

* * * * *

”O fanatismo é, com frequência, intimamente relacionado a uma atmosfera de desespero profundo. Num lugar em que as pessoas sintam que não há nada além de derrota, humilhação e indignidade, podem recorrer a várias formas de violência desesperada.” (17)

* * * * *

”...o fanatismo está em quase todos os lugares, e suas formas mais silenciosas, mais civilizadas, estão presentes em nosso entorno, e talvez dentro de nós também. Conheço bem os antitabagistas que o queimarão vivo, se você acender um cigarro perto deles! Conheço bem os vegetarianos que o comerão vivo por comer carne! Conheço bem os pacifistas, alguns de meus colegas no Movimento de Paz Israelense, que estão dispostos a atirar na minha cabeça só porque advogo uma estratégia ligeiramente diferente sobre como fazer a paz com os palestinos. Mas é claro que não estou dizendo que qualquer pessoa que levante sua voz contra qualquer coisa seja um fanático. Não estou sugerindo que qualquer um que tenha opiniões fortes seja um fanático, certamente não. Estou dizendo que a semente do fanatismo brota ao se adotar uma atitude de superioridade moral que não busca o compromisso...” (24)

* * * * *

”...todos os fanáticos têm uma atração, um gosto especial pelo kitsch. Muito freqüentemente, o fanático só consegue contar até um, dois é um número muito grande para ele. Ao mesmo tempo, descobre-se que, com muita freqüência, os fanáticos são irremediavelmente sentimentais. Freqüentemente, preferem sentir a pensar, e têm uma fascinação particular por sua própria morte. Eles desprezam esse mundo e anseiam trocá-lo pelo ‘céu’. O céu deles, no entanto, é geralmente concebido como a felicidade eterna do final dos filmes ruins.” (24)

* * * * *

”...muito frequentemente, o culto à personalidade, a idealização de líderes políticos ou religiosos e a adoração de indivíduos sedutores podem perfeitamente ser uma outra forma difundida de fanatismo. O século XX parece ter dado excelentes mostras de ambos. Regimes totalitários, ideologias mortíferas, chauvinismo agressivo, formas violentas de fundamentalismo religioso, por um lado, e a idolatria universal de Madonna e Maradona, por outro lado. Talvez o pior aspecto da globalização seja a infantilização da espécie humana: ‘o jardim de infância global’, cheio de brinquedos e maquininhas, balas e pirulitos.” (27)

* * * * *

”Creio que a essência do fanatismo reside no desejo de forçar as outras pessoas a mudarem. A inclinação comum de melhorar seu vizinho, de consertar seu cônjuge, de guiar seu filho ou de endireitar seu irmão, em vez de deixá-los ser. O fanático é uma criatura bastante generosa. É um grande altruísta. Freqüentemente, o fanático está mais interessado em você do que nele próprio. Ele quer salvar sua alma, quer redimi-lo, quer libertá-lo do pecado, do erro, do fumo, de sua fé ou de sua falta de fé, quer melhorar seus hábitos alimentares ou curá-lo de seus hábitos de bebida ou de voto. O fanático importa-se muito com você, ele está sempre ou se atirando no seu pescoço, porque o ama de verdade, ou apertando sua garganta, caso você prove ser irrecuperável. (...) O senhor Bin Laden e sua gente não odeiam simplesmente o Ocidente. As coisas não são tão simples. Em vez disso, creio que eles querem salvar suas almas, querem liberar vocês, nós, de nossos valores horríveis, do materialismo, do pluralismo, da democracia, da liberdade de expressão, da liberação feminina... Tudo isso – sustentam os fundamentalistas islâmicos – é muito, muito ruim para sua saúde. (...) Bin Laden essencialmente os ama. O 11 de Setembro foi um empreendimento de amor. Ele o fez para o bem de vocês, ele quer mudá-los, redimi-los...” (30-31)

* * * * *

”Auto-sacrifício envolve, com muita freqüência, infligir sentimentos de culpa terríveis no beneficiário e, dessa forma, manipulá-lo ou mesmo controlá-lo.” (31)

* * * * *

”Senso de humor é uma grande cura. Nunca vi na minha vida um fanático com senso de humor, nem vi uma pessoa com senso de humor tornar-se fanática, a menos que tenha perdido o senso de humor. Os fanáticos são, freqüentemente, muito sarcásticos. Alguns deles têm um senso de sarcasmo muito mordaz, mas não têm humor. O humor inclui a capacidade de rir de nós mesmos. O humor é relativismo, é a aptidão de vermo-nos como os outros podem nos ver, é a capacidade de entender que, por mais cheios de razão que estejamos e por mais terrivelmente equivocados que estejam os outros sobre nós, há sempre um certo aspecto disso tudo que é um pouco engraçado. Quanto mais você tem razão, mais engraçado fica.” (35)

* * * * *

”...as pessoas podem tornar-se fanáticos anti-fanáticos, radicais antifundamentalistas, cruzados anti-Jihad.” (36)

* * * * *

”Uma das coisas que torna o conflito Israel e Palestina particularmente difícil é o fato de que este conflito, o conflito árabe-israelense, é essencialmente um conflito entre duas vítimas. Duas vítimas do mesmo opressor. A Europa, que colonizou o mundo árabe, o explorou, o humilhou, esmagou sua cultura, o controlou e o usou como um quintal imperialista, é a mesma Europa que discrimou os judeus, os perseguiu, os enxotou e, finalmente, os assassinou em massa num crime de genocídio sem precedentes.” (54-55)

* * * * *

”...para escrever um romance, você tem que ser capaz de referendar meia dúzia de sentimentos e opiniões diferentes, conflituosos e contraditórios, com o mesmo grau de convicção, veemência e empatia.” (94)

* * * * *

”Como você usa sua voz? Suponha que é um homem de voz, alguém que tem uma caneta e pode utilizá-la. Bem, seria correto dizer que sangue está sendo derramado na esquina onde você mora, que não é hora de contar histórias de amor, de escrever histórias eruditas, sutis, complexas, experimentais, mas é hora de combater a injustiça? Sim, faço isto de vez em quando, e sempre me sinto um pouco traidor de minha arte, do refinamento, da ambivalência e do matiz. Ao mesmo tempo, se me sento em casa e trabalho nas várias alternativas sintáticas de uma certa frase, ou nos problemas idiomáticos de um certo diálogo, ou mesmo na relação melódico-musical entre duas frases no romance, há, muitas vezes, uma vozinha insistente dentro de mim que me chama de traidor. ‘Como você é capaz disso? Há pessoas sendo mortas a apenas vinte, quinze quilômetros de onde você se senta e escreve – como você é capaz disso?’ O que faz alguém em tal situação? De qualquer forma, você é um traidor. O que quer que você faça, ou é traidor de sua arte, ou é traidor de seu sentimento interno de dever civil.” (96)

quarta-feira, 12 de abril de 2006

domingo, 9 de abril de 2006



CAMPARI ROCK II
8 de Abril de 2006 - Atibaia/SP

Walverdes - Ludovic - Cachorro Grande - Mission Of Burma -
Nação Zumbi - Ira! - Supergrass - Fixxer + McCarthy


Got a low, low feeling around me,
And a stone cold feeling inside!
I just can't stop messing my mind up,
And wasting my time, ooooh!

Got a low, low feeling around me,
And a stone cold feeling inside,
I've got to find somebody to help me,
I'll keep you in mind!

SUPERGRASS, "Moving"


Que aventura... Saí de casa à uma da tarde, logo depois de um almoço pra lá de reforçado no Bandeijão Central da USP, e me mandei pra rodoviária da Barra Funda pra pegar a galera (altos reencontros com unespianos já desbauruzados...). Nem sabia que só voltaria a pisar em casa às 6 e meia da manhã do dia seguinte. Nosso destino: um hotel fazenda em Atibaia, onde as próximas horas seriam muito bem gastas com o róquenrou no talo durante a segunda edição do Campari Rock, um dos festivais mais bacanas do Brasil...

Se no ano passado parecia que a idéia era realizar algo realmente focado na cena independente, colocando pra tocar dúzias de indie-bands desconhecidas, neste ano aqui a coisa adquiriu "ares de importância". O Campari mudou daquele galpãozão tosco da Fábrica Lapa, onde foi realizado em 2005, e foi prum vasto hotel que comportava muito mais gente do que as 5 mil almas que deram as caras; o palco triplicou de tamanho e melhorou muito em termos de iluminação e pirotecnias; a qualidade e a altura do som tavam beirando a perfeição; e as bandas escaladas eram de muito mais renome do que no ano passado, quando os headliners foram os semi-desconhecidos The Kills e MC5.

O André Barcinski, locutor do Garagem e autor de um dos livros-de-rock mais legais já escritos no Brasil ("Barulho", que tem entrevistas com Joey Ramone, Jello Biafra, Kurt Cobain...), e o Lúcio Ribeiro, o colunista de música mais pop do Brasil ("O Lester Bangs ao contrário: fala bem de tudo!", foi a pérola do Berna), estão realmente mandando muito bem na idealização do Festival, que promete se tornar o equivalente nacional do Reading. Ano que vem eu garanto que eu vou, não importa quem venha, porque confio nos caras.

Fui mesmo pra ver o Supergrass, mas falo rapidinho das outras coisas que rolaram num paragrafão zoneado (e tranquilamente "pulável"):

(Dos Walverdes eu gosto muito - poucas bandas que eu conheça conseguem fazer punk-grunge nirvanesco com letras em português e sem soar ridículo. "Classe Média Baixa Records" é demais. Fiquei esperando, mas as minhas prediletas "Meu Bar" e "Viajando na A.M." não vieram. Num tem problema. O vocalista e guitarrista Mini se esgoelou bonito e os gaúchos fizeram um grande show na tarde atibaiana que ainda esperava o público chegar. Já do Ludovic eu não gosto: me parece muito teatral, muito dramático, com uma "dor" muito fingida... Se for pra ser triste, tem que ser triste de verdade! O Cachorro Grande, de quem eu nem sou tão fã, é uma banda incrivelmente supimpa em cima do palco. Os discos dos caras eu não aguento ouvir, principalmente porque me irrita aquela voz agudinha demais do vocalista... Mas ao vivo a coisa muda de figura, ganha em energia e diversão, vira uma festança rock and roll do caralho... E o MOMENTO GUITAR HERO, com aquele improviso de guitarra fuderoso, é prova de que, se fosse uma banda instrumental, o Cachorro Grande ainda assim seria foda. Desce redondinho, redondinho. E eu preciso dizer: os caras fazem com que um lance como a BÔINA pareça cool! Eu nunca na vida tinha suspeitado que um dia eu ia ficar afim de comprar uma bôina. Coisas que só o Cachorro Grande faz por você! A Nação Zumbi tem um dos shows ao vivo mais poderosos do Brasil, uma mistureba vigorosa de maracatu, dub, psicodelia, batucada, eletrônica e rock - aquele showzinho no SESC Bauru por 3 pilas, anos atrás, já tinha me deixado admirado, e dessa vez os caras tb não decepcionaram. Tudo bem que falta à Nação Zumbi um vocalista com mais carisma e mais energia (o Jorge Du Peixe sempre vai ser um substituto fraco pro Chico Science), e poderia ter um espaço maior para a guitarrinha ótima do Lúcio Maia se destacar. Mas são problemas mínimos. Mais uma vez tive aquela SENSAÇÃO DE TERREMOTO em alguns momentos do show, principalmente em "Blunt Of Judah" e "Meu Maractu Pesa Uma Tonelada". Show da nação vale por causa daquela máquina rítmica extremamente poderosa (qualquer gringo deve ficar louco vendo uma sessão percussiva tão BRUTAL) e daqueles GRAVES GORDÕES que são como imensas ondas que te estremecem o corpo todo. Dizem que nós aqui no Brasil não temos a oportunidade de sentir qual é a sensação de estar no epicentro dum terremoto. É mentira: basta ir num show da Nação Zumbi e ver os números subindo alto na Escala Richter... O Mission Of Burma, banda considerada uma das mais influentes do rock independente americano no começo dos anos 80, tendo inspirado gente como R.E.M. e Replacements (e Franz Ferdinand, bem depois), fez um ótimo show, barulhento, punky, sujo, bem ao estilo das bandas da Dischord. O único problema é que existem duas bandas que fazem um som igualzinho ao do Mission e que me empolgam muito mais: o Fugazi e o Gang Of Four. De qualquer modo, uma banda que valeu a pena conhecer - agora vou atrás dos discos. Já a saideira ficou a cargo do Fixxer e McCarthy, uma dupla de eletrocnêra pesada, deprê e raivosa - eu não tava no clima pra curtir depois de ter ficado alegre com o Supergrass, mas os caras são bons no que fazem. Bem Nine Inch Nails. E o Ira! realmente já encheu o saco. Aquela versão em português que fizeram pra "Train in Vain" do Clash, trocando o refrão original "Did you stand by me? No way!" por um horroroso "Vem ficar comigo! De vez!", é uma vergonha. Tudo muito previsível e sem paixão, tudo muito burocrático... Eis uma banda que já passou da hora de se aposentar... E alguém precisa avisar pro Nasi parar de ficar mostrando o sovaco pro povo a toda hora! Que falta de educação... Pensa que a gente quer ficar admirando tuas axilas, rapá? Sai fora...)

Vamos ao que interessa (ou não)...

O começo do show do Supergrass levantou suspeitas de que aqueles moleques que antes pareciam tão alucinados e cheios de energia juvenil tinham realmente entrado na desgraçada da maturidade... várias músicas levadas só na voz e no violão e na voz e pianinho deixaram a coisa com clima de luau, como se o Supergrass estivesse afim de ensaiar prum MTV Unplugged ou não quisessem fazer muita zona, mantendo tudo sussa. Comportados e certinhos, esses caras... Após um começo mais rocker, inclusive com o esporro gostoso de "Caught By The Fuzz", o Supergrass se pôs a mostrar as músicas da fase nova: aquela elegante e climática "música de tiozinho", quase Elton John e Steely Dan, bonito pra cacete, mas não muito rock and roll... As baladinhas quase prog do disco mais recente, o sofisticado e ambicioso e virtuosístico Road To Rouen (2005), deram uma gelada naquela parcela do povo que estava louca pra pular e pogar. Mas foi só um momento.

"Agora vamos dar a vocês um pouco de rock and roll", disse Gaz Coomes à platéia que aguardava ansiosamente o fim da baladas e o começo das porradas. E elas vieram numa sequência matadora, hit após hit, numa demonstração de que o Supergrass, uma das bandas mais pop do brit-pop, só não vendeu 10 milhões de cópias de In It For The Money, X-Ray Album ou Life On Other Planets porque... por que mesmo? Porque esse mundo é muito estranho.

Vestindo uma roupa de brechó e uns semi-ridículos SUSPENSÓRIOS VERMELHOS, o simpático e super-simples vocalista Gaz apareceu e me fez pensar: ele tá cada vez mais parecido fisicamente com um Neil Young mais jovem... ou com um jardineiro pobretão... ou com um camponês demodê que nunca aprendeu o que é vaidade... ou mesmo com um mico-leão dourado de 1 metro e setenta. Subiu ao palco vestido como se tivesse indo pra feira ou até a banca de jornal, totalmente "sem produção" (ao que parece: talvez tenha se produzido pra parecer desproduzido...). Desencanadaço, o cara se pôs, no maior sossego, a mostrar seu imenso talento como cantor e músico (no violão, na guitarra, no baixo e no teclado). Ver um show do Supergrass serve pra provar que a banda não seria nada sem Gaz Coombes, que ele é a alma e o coração do negócio - o Supergrass é o tipo de banda que nunca poderia seguir em frente com outro vocalista. Com um alcance vocal inacreditável, o cara é capaz de levar sozinho na voz e violão/voz e piano uma lenta balada quase Elton John, meter a garganta num punk rock nirvanesco ("Richard III", um dos sons mais pogáveis do mundo) e cantar afinadérrimo uns power pops melodiosos e grudentos ("Pumpin' On Your Stereo", "Grace"...). Poucos vocalistas do rock atual são tão versáteis e tem uma voz tão abençoada. E poucos são tão cheios de talento permanecendo tão humildes...

Porque olhando pr'sses caras não dá pra ter uma relação de fanatismo exagerada, uma pagação de pau boquiaberta e derramando baba... Porque eles são uns caras muito simples, muito afáveis, muito parecidos com a gente - não tão nenhum pouco afim de ficar fazendo pose de superioridade nem de fazer "teatrinho rock and roll". Eles não tem nada de "estrelinhas", nada de messiânico, nada de megalomaníaco.

Gosto de imaginar como seria estudar na mesma sala que esses caras no colégio. Eles seriam aqueles carinhas sorridentes, bem-humorados e um tanto nerds de quem quase todo mundo na sala iria gostar. Sempre ficariam trocando vinis de bandas antigas, cantarolando hits dos Beatles e dos Beach Boys, desenhando caricaturas de Lennon e McCartney nos seus cadernos. Certo dia, no meio duma aula de física, o Gaz iria chegar, atrasado e todo empolgado, como se tivesse achado um tesouro enterrado no quintal, e iria gritar na minha orelha, atrapalhando a aula: "cara, olha só! Descobri um lance chamado Kinks! E um lance chamado Zombies! E um lance chamado T Rex! E cê precisa ouvir essa coletânea chamada Nuggets..." Eles teriam álbuns de figurinha, curtiriam o programa de TV dos Monkees e assistiriam filmes de terror trash escondidos dos pais. Eles iriam economizar no recreio pra poder comprar guitarras usadas dos primos mais velhos e baterias toscas de lojas de segunda-mão. E enquanto os outros garotos estariam nas baladas enchendo a cara, Gaz e seus dois amigos, Mickey e Danny, estariam dentro do quarto, sentados no carpete, tomando um Toddy com rosquinhas de leite e arranhando um violãozinho... Talvez colocassem algum dos VHS piratas pra rolar na TV, assistindo pela 3a vez o "Tommy", pela 5a vez o "Curtindo a Vida Adoidado", pela 7a vez o "A Hard Day's Night"... E estariam cozinhando sonhos de criar uma banda que fizesse o mundo tão alegre quanto para eles fizeram os Beatles, os Kinks, o The Who, os Zombies, os Buzzcocks, os Undertones... Talvez já acalentassem idéias sobre possíveis clipes do futuro, inclusive um no qual eles estariam deitados numa cama andante e voante, parecida com um tapete voador, cantando "we are young, we are free, we're all right..."

Tô divagando...

É uma pena que o Supergrass tenha sido uma banda condenada ao "segundo escalão" do rock inglês, talvez por causa da "Síndrome do One-Hit-Honder". É aquela coisa: tem muita banda que explode mundialmente com uma música arrasa-quarteirão que toca tanto e tanto que faz muitas gente vomitar de enjôo e nem ir atrás do disco... Não são poucos aqueles que acham "Alright" uma bobinha popice descartável e que por isso nunca foram ouvir os discos do Supergrass. Pena. Igualzinho àqueles que, por raiva de "Ana Júlia", nunca ouviram os hoje já clássicos discos dos Los Hermanos...

Quando estourou "Alright", aquela grudenta baladinha sessentista que parecia Beatles-para-criancinhas (a continuação de "O-Bla-Di O-Bla-Dá"?), o Supergrass inevitavelmente teve seu destino marcado. Foram lançados subitamente para o alto das paradas, quando ainda tinham em média só uns 17 aninhos de idade, e depois nunca mais conseguiram cometer um hit de tamanho comparável. O Oasis, o Blur e o Radiohead, bandas mais ambiciosas e com líderes mais ególatras e ambiciosos, deixaram o Supergrass comendo poeira e ficaram na história como as principais bandas da história do brit-pop nos anos 90. E o Supergrass, banda mais discreta, acabou um tanto obscurecida - mas é sempre tempo de desfazer essa injustiça. Ok: o Supergrass não é uma banda "profunda", as letras não são lá essas coisas, eles estão longe de serem "gênios"... Mas e daí? Essas músicas são altamente curtíveis, beirando a perfeição pop... São praticamente pílulas de alegria! "BANDA PROZAC" - tá tudo dito aí.

Pra acabar, só um causo bizarro, em nome da Causa Gonzo:

Na hora de ir embora, Murphy resolveu aprontar das suas. Já estávamos na estradinha de terra de mão-única que conduz pra fora do Hotel Fazenda quando notei, tomado por um medão súbito, que minha carteira não estava mais no bolso onde deveria estar. "Xiii... fodeu..." - foi o que pensei. Tudo lá dentro: RG, CPF, título eleitoral, carteirinha de estudante, carteira de motorista, documentos do carro... Gelei só de imaginar todas as filas e todos os burocratas que eu teria que enfrentar pelas segundas-vias, toda a dor-de-cabeça que ia ser. Tive que dar a má notícia pros meus companheiros, tão mortos de sono e tão com vontade de chegar logo em casa: vou ter que voltar até o estacionamento e inventar um novo esporte - Caça À Carteira Perdida No Meio Dum Estacionamento Enlameado de Hotel Fazenda, De Madrugada, No Escuro, Com Dor nas Pernas E Com Sono, Com Risco Alto de Trabalho Em Vão... Duvido que vá se tornar esporte muito popular!

O tal do estacionamento, onde eu perdi a desgraçadinha, não era beeem um estacionamento: era um gramadão imenso, sem iluminação e transformado em lamaçal depois da chuva (aliás gelada e que me fez tremer por alguns minutos) que caiu. Primeiro saí correndo de volta porque não dava pra dar ré na rua de mão-única empanturrada de carros. Sem resultado na busca, o jeito foi esperar o povo ir embora e voltar na contra-mão pra fazer uma exploração com o carro em 1a marcha jogando uma luz. Depois do sufoco e da quase morte das minhas esperanças, o Aran me trouxe o alívio levantando do chão uma imunda e molhada carteira preta, largada ali em meio... à supergrama. Ufa! Então 'bora pra Sampa que daqui a pouco tá amanhecendo...

Eram seis e meia da manhã quando eu finalmente entrei no meu quarto, chutei longe meus tênis enlameados, larguei minha camiseta dos Ramones pelo chão e a sapeca da minha carteira fujona em cima da mesa, e finalmente me deixei cair na cama, ainda com aquele "Can't you hear us pumpin' on your stereo?" pipocando na cabeça. Pela janela, já entravam os primeiros raios de Sol de um novo dia e os primeiro latidos da cachorrada da vizinhança. E senti aquilo que sinto só umas duas ou três vezes por ano (às vezes menos...): eu tava de bem com a vida.


SETLIST Supergrass :

01 lenny
02 caught by the fuzz
03 bullet
04 mary
05 kiss of life
06 road to rouen
07 tales of endurance
08 st. petersburg
09 low c
10 roxy
11 funniest thing
12 kick in the teeth
13 rush hour soul
14 moving
15 grace
16 strange ones
17 richard III
18 pumping on your stereo
19 (break)
20 sun hits the sky


LEIA MAIS
:

- Site Oficial do Festival.
- O que a FOLHA, ESTADÃO e a ROCK PRESS disseram.
- Discografia na AMG (ñ acreditem: o disco de 1999 é tão bom qto os outros)
- Matérias bacanas na BACANA, na PÍLULA POP e na ROCK PRESS.
- Biografia bem completa do Supergrass na DYING DAYS.
- and introducing... MISSION OF BURMA.

segunda-feira, 3 de abril de 2006


POR QUE ME CASEI COM A FILOSOFIA?
- uma digressão/brainstorming/meditação... -


"Question mark! Question mark!
I'm a walking-talking-question-mark!"
JAMIE LIDELL



Normalmente é com um certo espanto que as pessoas recebem a notícia de que eu tô fazendo um curso superior de filosofia... As reações são, no mínimo, bizarras:

- Filosofia? Ai, como você é chique!! - me disse uma moça.

- Filosofia? Mas seu pai tem dinheiro? Porque... - me disse um professor, quase a ponto de confessar que conhecia uma meia dúzia de filósofos morando debaixo da ponte.

- Filosofia? Que viááágem, Lucião! Que viááágem! - me disse um camarada.

E eu, como é que eu me explico? O que me levou a cometer uma loucura dessas? Porque não é "profissão" que dê dinheiro, nem algo que dê "status social", nem coisa que traga fama ou fortuna - muito provavelmente condena ao anonimato e à mendicância... E você tem que ser meio masoquista pra aguentar o suplício de ler todos aqueles textões complexos, e precisa ter uma alta tolerância à chatice e à prepotência, e se tornar um rato de biblioteca bitolado... Ao menos assim pensam muitos, inclusive eu, às vezes, quando fico com medo de virar um chato (se é que já não sou)...

Por que a filosofia, se agarrar a ela? Como explico por quê cometi essa loucura de entrar num curso universitário de filosofia? Posso responder parafraseando a Clementine: "I'm just a fucked-up guy searchin' for my own peace of mind"... Posso dizer que, simplesmente, sou um garotinho em busca da sabedoria, tateando na escuridão pelas respostas, pelos mapas, pelos interruptores (por que não consigo acender essa maldita luz?!)...

Por que a filosofia? Talvez seja a esperança de encontrar uma cura para a angústia, um remédio para a melancolia, um sentido para a vida, um facho de guiding light, uma direção que me guie na perdição... Um veterano disse uma coisa interessante - que tem muita gente que entra no curso por uma razão muito simples: porque está "meio perdido na vida"... Talvez seja esse o meu caso...

Por que a vida é esse presente que ganhamos no nosso aniversário de zero anos e que vem com um gravíssimo defeito: falta o Manual de Instruções... Isso só descobrimos depois, é claro, pois para todos nós houve o tempo em que tudo se explicava e tudo ia bem... Houve um tempo em que Deus ainda existia, mami e papi sabiam todas as respostas, ninguém morria de verdade e o Amor sempre se consumava numa apoteose igualzinha ao dos filmes ruins e dos contos-de-fada. "E foram felizes para sempre...". Só com o que tempo é que descobrimos quão pouco se sabe, como estamos todos vivos sem saber porquê, como é extremamente misterioso o simples fato de existirmos, e de existir alguma coisa, e como é terrivelmente doloroso saber que todos nós logo logo estaremos todos mortos, e, como, em geral, vivemos mal... E a Felicidade brilha tão raramente, sempre mais ausente e sonhada do que efetiva, frágil como uma bolha de sabão num dia de ventania...

Talvez eu exagere. Talvez exista sim a Felicidade, e não só para 2 ou 3 pessoas a cada século, como às vezes gosto de pensar... Não sei direito como é ser vocês, nem vocês jamais saberão direito o que é ser eu. Cada um está trancado dentro de si, e só com muita dificuldade é que conseguimos nos entender - e corro sempre o risco de generalizar o que é um sentimento meu como um sentimento de todos. Enfim, o fato de eu não ser feliz (ou ao menos não tanto quanto eu gostaria...), o que prova sobre a felicidade dos outros? O fato dos meus prazeres serem sempre tão efêmeros por acaso comprova a impossibilidade do homem em geral de conquistar algum prazer durável ou mesmo perpétuo?

Filosofia, também, por causa das perguntas. Tenho um monte delas. I'm a walking-talking-question-mark...

Por que existe um mundo e um universo? Por que existe algo ao invés de nada? Que força misteriosa fez com que as galáxias saíssem da inexistência e viessem à vida? Ou será que o nada nunca existiu e que Algo sempre houve? Nesse caso, como pensar o Tempo? Se o passado é infinito, se não houve um ponto onde o tempo começou, como imaginar que tenhamos chegado aqui?

E pra que serve esse troço que me deram, essa vida que ganhei sem que tenha pedido e que se acabará mesmo que eu queira continuá-la? Que devo fazer com ela? Quem a fabricou, e com que intenção? E por que desse jeito, condenada ao nada? E por que assim, tão difícil...?

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(2.)

Deve haver muita gente que acha, preconceituosamente, que aprender filosofia não é algo lá muito nobre, muito útil, muito urgente... Num mundo onde um bilhão de pessoas passam fome, não há coisas mais importantes a fazer do que se enterrar na biblioteca tentando entender uns livrões cheios de mofo que uns mortos ilustres escreveram séculos atrás? A filosofia não será só um mero jogo de palavras, de conceitos e de idéias, sem nenhum efeito prático? Não será ela nada mais que um passatempo para a inteligência, uma diversãozinha elevada para distrair a razão? Os médicos nos curam, os arquitetos e engenheiros constroem nossas casas, o agricultor faz crescer a comida que a gente precisa, e o comerciante nos fornece os produtos necessários e supérfluos, e o palhaço pelo menos nos faz rir... etc etc etc. Mas e o filósofo, que é que ele faz? Pra quê ele serve? Em que ele ajuda a humanidade? Qual é a sua função social? O mundo seria muito pior se todos os filósofos, num átimo, fossem extintos? Às vezes parece realmente evidente a imensa inutilidade da filosofia, sua natureza de coisa unicamente teórica, sem nenhum ponto de contato com a vida e seus problemas... Só tagarelice da razão! Só a atividade dessa gentinha desprezível que gosta de ficar exibindo sua "superioridade intelectual" por mera vaidade! Só isso a filosofia...

É claro que eu não concordo. Se estou em definitivo na estrada da filosofia, se embarquei de vez nela, é por acreditar nos poderes que ela possui pra transformar a vida, naturalmente que para melhor, e por achar, ao contrário de muitos, que estudar filosofia é sim tão importante quanto estudar medicina, direito ou astronomia - se não for mais... Sou daqueles que acredita na filosofia como um meio pra atingir a felicidade, e um dos melhores. Se precisamos de um médico para o corpo, não precisamos também de um médico para o espírito - ou para a mente, para usar um termo mais pé-no-chão? Pois então: a vida veio sem Manual de Instruções, mas muitos homens ilustres e sábios que nasceram antes de nós tentaram, tateando e cambaleando, explicar e elucidar os mistérios da existência - e por que não ouviríamos o que eles tem a dizer e a ensinar? Pensar melhor pra viver melhor: não cabe aí toda a missão da filosofia?

Talvez eu esteja exagerando. Sei bem que a filosofia não deve se deixar escravizar pela felicidade, ou seja, abandonar idéias só porque elas não causam bem-estar. Porque o prazer nunca foi critério pra julgar veracidade. Muito pelo contrário. Conheço muitas idéias falsas - toda a imensa selva dos meus sonhos... - que me fazem muito mais feliz do que as verdades nuas e cruas da existência, que muitas vezes só servem pra me arrancar água dos olhos... Mas o fato de uma idéia ser prazeirosa e confortante não prova nada de sua veracidade - e isso pode parecer banal, mas uma pessoa que crê em Deus não se deixa nunca convencer de que a idéia de Deus não é necessariamente verdadeira só porque é consoladora. Só porque "é gostoso" crer em Deus isso não quer dizer que Ele exista...

Em suma, a filosofia está mais submetida à verdade do que ao prazer, e um verdadeiro filósofo, como sempre diz o mestre Sponville, prefere uma verdadeira tristeza a uma alegria de mentira... É evidente que a filosofia não tem como função inventar idéias e raciocínios consoladores que nos torne a vida mais fácil e confortável - disso, aliás, já se ocupa a religião... Mas é evidente, também, que a filosofia tem que se colocar um objetivo prático (que é a sabedoria, a felicidade...), pois senão corre o risco de se tornar eruditismo estéril, teorização vã... Ela precisa sim ter como fim a melhoria da vida humana, individual e coletiva, e colocar toda a máquina da razão e da sensibilidade a serviço dessa Missão... "Qual o melhor jeito de viver? O que devo fazer para ser mais feliz, para adquirir uma paz de espírito durável, um bem-estar tranquilo? Quais são os obstáculos que me impedem de ser feliz?" Pra mim essas são perguntas filosóficas - e, sinceramente, as minhas prediletas. E são ao mesmo tempo perguntas que todos fazem, que são de interesse ultra-geral, quase universal. Todos querem saber quais são os melhores meios para atingir a felicidade, e uma das atividades a que a filosofia se dedica é justamente essa de verificar, pelo pensamento e pela experiência, quais os caminhos mais seguros para a sabedoria... Sempre dentro da verdade. A missão é tentar alcançar o máximo possível de verdade, e tentar aceitar e se alegrar o máximo possível com essa verdade descoberta. Simples assim.

Eu não consigo entrar em sintonia com nenhuma filosofia que não coloque a sabedoria e a felicidade como os fins últimos. Não gosto dos filósofos que se entregam a um eruditismo vão e vaidoso, aos pensamentos monstruosamente complexos que não levam a lugar nenhum... Não gosto dos filósofos que morrem de medo de serem compreendidos. Nem daqueles que criaram filosofias que nunca ajudaram ninguém, por mais "monumentais" que sejam.... Infelizmente, é comum que aqueles que deveriam ser os amigos da sabedoria se tornem, pelo contrário, os amigos dos raciocínios inúteis, das complicações desnecessárias, da erudição estéril, da chatice sistemática, do mau-humor erguido ao status de virtude... Muitos filósofos não passam de mortos-vivos que se emparedaram vivos em suas certezas e construíram uma parede de raciocínios que os protege da vida e dos sentimentos... "Muitos de nossos livros de filosofia - e diria: inclusive nossos bons livros, até mesmo alguns de nossos grandes livros de filosofia - não servem para nada", diz o Sponville. "A única filosofia que vale reflete a vida para vivê-la melhor, para viver de maneira mais verdadeira, mais profunda, mais livre, mais intensa." Assino em baixo. Aliás, se estou fazendo filosofia, é também por uma razão mais simples: por ter descoberto André Comte-Sponville. Se eu não tivesse lido os livros dele, se eles não tivessem mudado a minha vida, e radicalmente, eu teria seguido outro caminho...

Acho que a filosofia tem muito mais a ver com a dúvida do que a certeza, muito mais com a angústia do que com a serenidade, muito mais com a insatisfação existencial do que com a felicidade... Pelo menos no seu ponto de partida. Se fôssemos felizes, pra quê precisaríamos da filosofia? Se é preciso filosofia é porque nossas almas estão doentes, por assim dizer, e ela, a filosofia, é (ou pode ser) medicinal e terapêutica. A filosofia é muito mais a arte de se lançar ao oceano sem certezas como bóias, e procurar atingir outras praias, outras ilhas, outros horizontes... A filosofia não é o mais importante: o que importa é a vida. A filosofia (e a arte em geral, da mesma maneira) só vale alguma coisa quando nos ajuda a viver melhor, com mais lucidez, com menos temor, com mais intensidade, com mais compreensão, com mais profundidade, com mais virtude, com mais autenticidade... em uma palavra: com mais sabedoria. A filosofia só vale pela melhora que traz à vida, pela paz de espírito que possibilita, pelos horizontes que abre, pelos temores e angústia que destrói... O resto é só tagarelice e vaidade.