quinta-feira, 31 de maio de 2007

:: 5 filmes queridos ::


"O AMOR EM TEMPOS DE DESESPERO"
- EM 5 FILMES VISCERAIS E DOLOROSOS -


OS AMANTES DE PONT-NEUF [Les Amants Du Pont-Neuf / Lovers On The Bridge, de Leos Carax, França, 1991] Este é um controverso e originalíssimo clássico do cinema francês nos anos 90 e um dos filmes mais poéticos e visualmente entorpecentes que eu já vi. A espetacular Juliette Binoche, de longe uma das atrizes mais talentosas (e lindas) de sua geração, passeia magistralmente pela tela aqui, divina num de seus papéis mais diabólicos e difíceis: é talvez a sua performance mais marcante, mais até do que as de A Liberdade é Azul ou A Viúva de Saint-Pierre – coisa de deixar boquiaberto... Ela precisou se "enfeiar" bastante para esse filme, mais ou menos como a Charlize Theron no Monster, mas o poder e o charme dessa atuação vem muito mais do talento transbordante da atriz (Juliette... um daqueles exemplares de Mulher Perfeita...), do que das transformações exteriores que ela sofreu para encarnar esse personagem tão incomum...

Juliette é uma misteriosa pintora mendiga que fixa residência na Pont-Neuf, uma das mais famosas de Paris, e passa a viver ali junto com outros esfarrapados miseráveis. Misteriosa e solitária, a personagem de Juliette (que está progressivamente perdendo a visão, como a Bjork de Dançando no Escuro), vai lentamente criando um laço afetivo esquisito e indefinível com seu amigo mendigo, interpretado brilhantemente por Denis Lavand. O que começa como um retrato sórdido de vidas miseráveis e imundas transforma-se numa doidíssima e psicodélica história de amor, enquanto Leos Carax realiza uma síntese impensavelmente brilhante entre a realidade mais crua e sofrida e a fantasia mais mágica. Se David Lynch tivesse tentado fazer um filme de amor e dor, depois de ter usado um pouco de LSD, talvez soaria como algo parecido ao resultado de Os Amantes de Pont-Neuf...

É um filme sobre o amor na beira do abismo, entre duas pessoas que já ultrapassaram faz muito a linha da sanidade mental e que chegaram a uma espécie de eufórico niilismo. É também um doloroso retrato de um personagem que cai num estado de completa dependência em relação a sua amada e que fará de tudo – inclusive causar imensos incêndios e assassinar pobres inocentes – para impedir o maior dos horrores: ser abandonado pela mocinha. As “viagens visuais”, que incluem muitos fogos de artifício, cuspição de fogo, jornadas subterrâneas pelo metrô e outras imagens altamente poéticas, são um espetáculo à parte – eis um filme bom pra ver chapado, e que chapa quem o assistir sóbrio...

Foi um dos filmes de orçamento mais caro da história do cinema francês (28 milhões de francos), de parto mais difícil (levou quase 3 anos pra ser finalizado), de lançamento mais problemático (o filme é tão controverso que demorou 9 anos para ter lançamento no Estados Unidos, e só foi de fato lançado pelos esforços do fã Martin Scorcese). Mas tantas dificuldades valeram a pena ser transpostas, pois o resultado é de encher os olhos... Pra mim, além de ser um originalíssimo experimento de cinema dionisíaco, poético até a embriaguez (o cinema transformado em droga psicodélica!), deve ser um dos 5 melhores filmes franceses que já vi, senão o melhor - o que não é dizer pouca coisa, já que a França é com certeza um dos países mais abençoados pelo Deus do Cinema... Extremamente recomendado.

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É um estranho tipo de seqüestro o mote do dark e ultra-cool BUFFALO ’66 [EUA, 1997], primeiro filme dirigido, escrito e estrelado pelo Vincent Gallo (que ainda assina a trilha sonora). O protagonista, Billy Brown, é um perfeito espécime daquela raça de caras perdidos na vida: raivoso, explosivo, neurótico, deprimido, com um passado cheio de máculas e um futuro sem perspectivas... Born to lose total. Ele acaba de sair da prisão, onde vai parar por uma bobagemzinha pra lá de estúpida, e agora precisa ir visitar os pais para contar as novidades e tranquilizar os progenitores de que tudo vai muito bem - quando é óbvio que tudo vai de mal a pior. Só há um detalhe complicador: papi e mami nem ficaram sabendo que o filhão tinha passado um tempo em cana... Ele então rouba a pequena Christina Ricci de uma escola de balé e, com uma arma na cabeça dela, obriga-a a fingir-se de esposa para que ele dê um espetáculo de normalidade na casa dos pais – que são uns freaks bizaríssimos. Depois disso, os dois pombinhos partirão numa viagem peculiar por pistas de boliche, cabines de fotografia e clubes dark, resultando numa comédia romântica com colhões que eu, pelo menos, curto demais, demais, demais...

Reza a lenda que o filme tem altos elementos auto-biográficos e que Vincent fez esse filme movido à raiva, ressentimento e sadismo. O espectador realmente sente que por trás desse filme estão vários sentimentos sórdidos e sujos, mas que não deixam de darem como resultado uma obra cinematográfica excitantíssima. Esse parece ser um filme em que Vincent Gallo, feito um adolescente rebelde e ressentido, que quer se vingar dos maus-tratos sofridos pelos pais, vai e faz uma obra-de-arte que é uma espécie de crucificação pública de seus próprios pais. É um filme cruel e malvado de um menino doentio e endiabrado. Precisa dizer mais como recomendação?

Além de um peculiar filme de amor, Buffalo '66 é também um road movie saturado de humor negro, com uma atuação pungente e visceral de Gallo, que nunca mais repetiria uma performance tão autêntica e tão forte, despertando no espectador, ao mesmo tempo, muita compaixão, identificação, repulsão. Christina Ricci também dá show, numa divertida performance que não tem nada de convencional: ao invés de encarnar a menininha apavorada e acuada à mercê de um perigoso criminoso, ela parece estar achando o máximo a aventura de estar sendo seqüestrada por um maluco, tacando-se de cabeça na vida dele e acabando por se apiedar do destino do pobre Vincent. O amor entre os dois vai nascendo do estado lamentável em que ambos se encontram - como se ele se agarrasse a ela como um náufrago se agarra a uma bóia...

Em seu filme seguinte, o polêmico e difícil The Brown Bunny, que contêm uma famosinha cena de sexo oral explícito de Gallo com a Chloe Sevigny, o diretor-autor-compositor criou algo muito mais deprê, arrastado, experimental, “ambient” - de digestão extremamente difícil. Já Buffalo ’66 é mais fácil de adorar, e de cara: tem uma narrativa linear, um senso de humor apurado (apesar de perverso), uma trilha sonora de primeira, uma montagem espertíssima e um sabor delicioso de coisa clandestina e feita com as tripas pra fora. Além disso, comparado com o ambiente sufocante de labirinto sem saída de The Brown Bunny, Buffalo ’66 é quase um filme feliz, com um desfecho que deixa entrar até bastante luz numa história que todos esperavam que fosse dar em tragédia e muito, muito sangue... Um dos grandes clássicos do cinema indie americano nos anos 90.

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DESPEDIDA EM LAS VEGAS [Leaving Las Vegas, de Mike Figgis, EUA, 1995]. Uma das histórias de amor mais regadas a álcool e niilismo que o cinema já registrou – e também uma das mais melancólicas, desoladoras e belas que eu já tive o prazer de ver numa tela. Lembra um pouco um romance de David Goodis e seus anti-heróis perdidos na vida e tendo como único recurso o esquecimento das mágoas num bancão de bar ou nos braços de alguma parceira sempre fugaz... Pode também ser visto quase como uma revitalização do clássico Farrapo Humano do Billy Wider, um dos filmes mais “fortes” que já ganhou (merecidamente) um Oscar de Melhor Filme. Quem sabe pode até ser visto como o equivalente cinematográfico de um improviso de cool jazz?

O personagem do Nicolas Cage, um alcoólatra maníaco-depressivo, já começa o filme demonstrando sua opção por ir aos extremos: faz fogueira com suas fotos e seu passaporte (adeus ao passado e ao futuro!), enche sacos e sacos de lixo com tudo o que possui (adeus aos bens materiais!), vende seu carro (adeus locomoção!) e se manda pra Las Vegas com um único objetivo: beber até morrer. E isso não é metáfora: esse filme não é sobre hedonismo ou diversão – é sobre pura auto-destruição.

Em Vegas, conhece a Elizabeth Shue, lindíssima como nunca, que interpreta uma prostituta maltratada por um cafetão muito malvado. Poucos imaginariam que poderia dar uma história tão linda o romance entre um alcoólatra suicida e uma prostituta de Las Vegas, enquanto ambos perambulam pelos cassinos e avenidas lotadas de néon da cidade do jogo e do pecado... Mas deu sim uma linda história, que demonstra, às vezes, como pessoas no fundo do poço conseguem encontrar a ternura e a solidariedade em tempos difíceis – como mostra aquela cena em que ele, ao invés de tratar a prostituta como um objeto sexual a ser usado, simplesmente suplica: “fica aqui, me ouve, me abraça, só quero isso...” Que humanidade, que decência e que ternura às vezes emanam desses que estão perdidos na vida!...

Alguns gostam de enxergar no filme um retrato de um caso de amor incondicional, em que cada um dos pombinhos aceita o outro exatamente como ele é, sem pedir que mude um grão de sua personalidade ou de sua vida para agradar o outro (“I accepted him as he was and didn't expect him to change...”). Isso fica muito bem simbolizado pela garrafinha que a moça dá de presente para seu amado, como se dissesse: “Beba o quanto quiser, seja um alcóolatra insano o quanto quiser, que eu te amo mesmo assim, do jeito que você é...”, e no que ele diz a ela: “Não me importa que você seja uma prostituta, te amo mesmo assim...”. Em uma das cenas mais sexies da história do cinema não-pornô, a Elizabeth Shue, de maiozinho preto, despe seus seios à beira da piscina, se encharca de uísque e dá de mamar para o Nicolas Cage, já doidaço de tão chapado, enquanto a câmera de Figgis, com um Sol belíssimo brilhando lá atrás, traz magia e poesia para uma cena que tinha tudo para ser de uma vulgaridade cafona...

Mas não acho que dê realmente pra dizer que essa é uma linda história de "amor incondicional" - porque é claro que as coisas não são assim tão simples e tão fáceis e que essa "aceitação incondicional" de cada um pelo outro é algo que vai se deteriorando enquanto o enredo vai progredindo até que... mas não vou estragar a surpresa! :)

John O’Brien, o autor do romance auto-biográfico que inspirou o filme, suicidou-se antes do filme ser rodado – o que já indica bem que sua bebedeira e sua auto-destruição não eram de brinquedo, nem eram mera “exibição de machice”. O Nicolas Cage entendeu muito bem isso e encarnou seu personagem sem transformar o alcoolismo em algo cool, nem muito menos fazer de sua completa confusão mental e sentimental algo admirável. É um personagem de dar dó e não um personagem que nos deixe com vontade de imitá-lo. E é extremamente admirável que um filme americano de grande porte, que foi indicado a vários Oscars, seja tão corajoso a ponto de não fazer concessões ao final feliz, à saga do herói que vence todos os obstáculos ou a um ilusório amor redentor...

Tem um crítico que definiu muito bem o porquê deste ser um filme importante: ”Por natureza, a maioria das histórias de amor são insistentemente otimistas. Um tom jovial e um final feliz são quase obrigatórios. Então é pouco usual para um romance mergulhar tão profundamente nos reinos sombrios da psique humana quanto em Despedida em Las Vegas. Este filme é um exame tanto do poder quanto da impotência do amor. Essa emoção não é, como a maioria de nós poderia pensar, uma mágica cura que varreria para fora os problemas e tribulações da vida. Tampouco é um portal para a salvação.”

O desfecho trágico de Despedida em Las Vegas indica que talvez a história desses dois não seja bem a de um “amor incondicional”, mas sim a de duas almas perdidas e solitárias que tentaram se juntar, um procurando no outro a força que não tinha em si... E fico pensando, talvez, que não seja assim tão admirável a decisão de cada um deles de permitir que o outro vivesse suas desgraças até o fundo sem querer “intervir”: porque quando a gente ama, fica assistindo desse jeito ao outro se destruir, sem estender a mão pra ajudar? Silencia sobre os defeitos do outro e finge aceitar tudo, ao invés de reclamar, pedir pra mudar, exigir reparação quando o estrago foi feito, solicitar perdão quando o machucado é infligido? Quando a gente ama, não tenta se adaptar ao que o outro deseja e necessita ao invés de ficar com esse discursinho narcisista do "sou quem sou e não mudo por ninguém!"? Quando a gente ama, não é muito mais comum tentar se mudar para ser mais o que o outro quer que a gente seja? E também não é muito mais intensa a vontade de, mesmo a contragosto, mesmo que o outro não aceite a ajuda, ir lá e fazer de tudo para tirá-lo do abismo quando nele se afunda? ... Digressões..

Sem falar que talvez nem o amor mais incondicional seja capaz de salvar um homem disposto a se perder e se aniquilar, um homem que não se acredita merecedor de um amor tão grande, um homem que desistiu de si mesmo, como quem pára de apostar as fichas num certo número da roleta depois de tanto ter perdido, e que se entrega, todo, à decisão de tomar um suicídio no conta-gotas... Ou melhor: um suicídio a garrafadas e garrafadas de álcool.

Raras vezes o cinema americano foi tão melancólico, tão cruamente realista, tão amargamente poético e tão quietamente trágico quanto em Despedida Em Las Vegas. Um filme para ver e admirar com o copo de uísque na mão e com as lágrimas de compaixão chovendo sobre as bochechas...

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CONTRA A PAREDE [Head-On, de Fatih Akin, Alemanha, 2005] Neste filme alemão, vencedor do Urso de Prata em Berlim (o primeiro longa germânico a realizar a proeza depois de 18 anos), vemos surgir um improbabilíssimo caso de amor entre dois completos ferrados na vida. Ele, Cahit, é uma espécie de bêbado-mendigo-suicida, que já começa o filme arranjando briga feia no bar e lançando o carro contra um muro, à toda velocidade (infelizmente, acaba por sobreviver). Ela, Sibel, é uma pós-adolescente revoltada contra o puritanismo de seus pais muçulmanos e que vira uma mistura de libertina, ninfomaníaca e punk – também especialista em tentativas de suicídio fracassadas. Como panorama sócio-cultural, o clash entre duas civilizações e dois sistemas de valor: o da Alemanha e o da Turquia (o diretor Fatih Akin, aliás, tem conhecimento de causa de sobra sobre o assunto: é um alemão nascido de pais turcos).

Contra A Parede é um dos filmes mais fortes e radicais que eu já vi, do tipo que merece muitos daqueles adjetivos bombásticos tão legais de usar: selvagem, incendiário, subversivo, devastador, polêmico, chocante, horrorshow... - e coisas do tipo. Certas cenas “chocantes” de violência repentina só encontram paralelo nas ultra-violências grotescas do Irreversível de Gaspar Noé . Mas Contra a Parede é muito, muito mais filme – enquanto o filme do Noé me parece “ostensivo” e exibido demais, com coisas que são muito “choque pelo choque”, o 5º filme deste Fatih Akin (o primeiro que eu vejo) é muito mais realista, cru e poderoso.

Um casamento de conveniência se tornando um caso de amor pungente; uma paixão inesperada acabando em tragédia, homicídio, prisão e a vaga promessa de um difícil reencontro. De início, a mocinha só pede ao cara que finja ser sua esposa (mais ou menos do jeito em que o Vincent Gallo, no Buffalo '66, "pede" - pondo um trabuco na cabecinha dela... - pra Christina Ricci se fingir de esposinh). A única coisa que a mocinha quer (ela não tem nada de romântica e com certeza não pensa ter achado seu "príncipe encantado"!) é arranjar um pretexto para dar o fora da casa dos pais. Ele aceita se casar (uns 2 dias depois de conhecer a moça numa clínica para suicidas!), mais porque ela ameaça se matar se ele não o fizer, do que realmente por gostar dela. Eles começam o filme se odiando. Casam ainda se odiando. Mas ai...

A princípio, marido e esposa (mas que casal mais incomum!) se tratam como se fossem meros roomates ou amigos punk dividindo uma pocilga imunda – e ela, a mocinha, dorme por aí sem o mínimo pudor, já que a fidelidade não estava no contrato de casamento dos dois. E o moço, por sua vez, está tão preocupado tentando ser uma imitação classuda de um mendigo bêbado bukowskiano que não parece se importar se a “esposa” está ou não com outros homens... Porém, com o tempo, imprevisíveis laços mais fortes vão se criando entre os dois, uma paixão violenta e desesperadora vai tomando conta, e com isso chega também ciúme e a possessividade – e esses sentimentos, num filme que sempre leva ao espectador aos extremos, vão acabar, como era de esperar, gerando banhos de sangue. E depois, uma quase impossível jornada na tentativa de uma reparação ou uma redenção quase impossíveis...

Numa cena ultra-legal, os dois personagens principais estão dançando/pogando/pirando ao som de algum pós-punk imundo e gritando: “o punk não morreu! O punk não morreu!” Depois de ver algumas das cenas deste filmaço – aquele que Sibel estoura uma garrafa e rasga os pulsos com os cacos, aquela em que Cahit acelera o carro e o joga contra um muro, ou aquele em que três mendigos espancam a mocinha quase até a morte... – podemos tranqüilamente criar um grito de guerra parecido: “o cinema punk não morreu! O cinema punk não morreu!” E olha que é um filme de amor... :)

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BARFLY [de Barbet Schroeder, EUA, 1987] é uma perfeita adaptação de um roteiro original do velho bêbado-poeta Charles Bukowski, o próprio. Esse lendário escritor, que já tinha se aventurado a escrever algo relacionado ao cinema no ótimo romance Hollywood, criou aqui um roteiro para um filme que não foge nada ao seu velho estilo. Barfly é um filme tão fiel ao espírito do velho Buk que eu freqüentemente me esqueço que o diretor é o tal do Barbet Schroeder e quase saio dizendo por aí uma bobagem grande: “cê já viu o filme que o Bukoswki dirigiu?”

Isso já é dizer bastante: se tivesse se aventurado a ser cineasta, provavelmente Buk acabaria fazendo filmes muito parecidos com Barfly. A interpretação do Mickey Rourke é perfeita, totalmente verossímil – difícil pensar em qualquer outro ator que poderia ter encarnado melhor esse personagem do escritor compulsivo que não vê graça nenhuma na vida fora da máquina de escrever e do balcão de bar. Só que Barfly é também um filme de amor, por assim dizer – e a Faye Dunaway dá show como a companheira do Mickey Rourke. Claro que no filme acontece pouca coisa de extraordinário: não se sai muito do cotidiano cheio de bebedeiras e papos de existencialismo barato, com os personagens gastando quantidades imensas de tempo perdidos no bar, debruçados sobre o balcão, arrumando briga ou reclamando sobre tudo... Buk, aliás, além do poeta dos bêbados, era também o poeta dos extremamente-entediados e dos incrivelmente-ranzinzas-e-rabugentos...

No ótimo documentário Born Into This, em uma entrevista sobre o que achou sobre a interpretação do Mickey Rourke, o Buk declarou tê-la achado um pouco “exagerada” demais, já que ele, segundo ele mesmo, não era assim tão “ostensivo” – era bem mais “low-key”. Imagino que é verdade e que o Buk, que nos seus livros às vezes gosta de vangloriar de ser beberrão e encrenqueiro, era mais o tipo de cara que gostava de ficar meio quietão no boteco, bem na moita, num lugar de bastante sombra, batendo papo baixinho e com a voz grave, só curtindo uma melancolia agradável...

Já o Mickey Rourke fala alto, faz cenas, dá escândalo, ostenta sua persona bêbada com um certo orgulho exagerado. Mas isso não quer dizer que é uma má interpretação – só que Mickey encarnou o Bukowski MITOLÓGICO, como nós gostamos de imaginá-lo, mas sem destoar demais do realismo – porque Barfly é um filme pé-no-chão pra caramba e de um realismo extremo ao narrar o relacionamento desses dois “pombinhos” punk. Pode ser que muita gente não veja muita graça em um filme desses, cheio de bebedeira, papo-furado, relacionamentos explosivos e brigas de bar – mas eu, sinceramente, adoro esse negócio. Ê filminho massa! :)

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Por falar em Buk, aí vai um vídeo tirado do doc Born Into This, que eu citei no texto sobre o Barfly aí em cima, em que o cara declama um poema genial:



Born like this / Into this / As the chalk faces smile / As Mrs. Death laughs / As political landscapes dissolve / As the oily fish spit out their oily prey / We are born like this, into this / Into hospitals which are so expensive that it’s cheaper to die / Into lawyers who charge so much it’s cheaper to plead guilty / Into a country where the jails are full and the madhouses closed / Into a place where the masses elevate fools into rich heroes / Born into this / Walking and living through this / Dying because of this / Castrated / Debauched / Disinherited / Because of this / The fingers reach toward an unresponsive god / The fingers reach for the bottle, the pill, the powder / We are born into this sorrowful deadliness / There will be open and unpunished murder in the streets / It will be guns and roving mobs / Land will be useless / Food will become a diminishing return / Nuclear power will be taken over by the many / Explosions will continually shake the earth / Radiated men will eat the flesh of radiated men / The rotting bodies of men and animals will stink in the dark wind /
And there will be the most beautiful silence never heard / Born out of that... / The sun still hidden there / Awaiting the next chapter.