terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

:: A Graça de Deus ::


BERNARD MALAMUD
A Graça de Deus

(God's Grace, 1982, 216pg,
ed. Cia das Letras, trad. Isa Mara Lando)



"A remarkably consistent writer who has never produced a mediocre novel. He is devoid of either conventional piety or sentimentality. Always profoundly convincing."
(ANTHONY BURGESS)

"Malamud in his novels and stories discovered a sort of communicative genius in the impoverished, harsh jargon of immigrant New York. He was a myth maker, a fabulist, a writer of exquisite parables. (...) The accent of hard-won and individual emotional truth is always heard in Malamud's words. He is a rich original of the first rank."
(SAUL BELLOW)

"Malamud's vision is personal, original, and almost wholly unrelated to the most characteristic or normative Jewish tought and tradition. As for Malamud's style, it too is a peculiar (and dazzling) invention."
(HAROLD BLOOM)

"In this final moment of a brilliant career, the reader can feel a trembling urgency just below the surface: a writer's desperate need to shatter the rosy one-way mirror that stands between literature and life."
(DARA HORN)


Responda sem pestanejar: qual é o personagem mais sádico da história da literatura, o campeão supremo do mal, o chifrudo fedente a enxofre que cometeu as piores mortandades e crueldades? Algum vilão do Marquês de Sade? O Satã do "Paraíso Perdido" de Milton? A Marquesa de Merteuil de "Ligações Perigosas"? A Cathy Ames de "A Leste do Éden"? Quem sabe Hannibal Lecter? Talvez não...



O sempre hiperbólico Richard Dawkins sugere uma outra solução, provocativa e iconoclástica, mas que não deixa de ser bem plausível: “O Deus do Antigo Testamento é talvez o personagem mais desagradável da ficção: ciumento, e com orgulho; controlador mesquinho, injusto e intransigente; genocida étnico e vingativo, sedento de sangue; perseguidor misógino, homofóbico, racista, infanticida, filicida, pestilento, megalomaníaco, sadomasoquista, malévolo...”. [deus: um delírio]

Isso me lembra de um trecho magistral da Hilda Hilst, que em uma hilariante crônica de Cascos e Carícias provocava: "Não me conformo com isso de um deus mandar seu filho para o planeta Terra a fim de ser crucificado. Para nos salvar, me ensinaram. Mas nós não fomos salvos de nada! Continuamos os mesmos estúpidos paranóicos (é só ler a História) em direção à loucura, ao pânico, ao desespero. Como é que você pode entender alguém que te diz: 'sim, meu amor, eu te amo, mas aguenta firme que vou te arrancar as unhinhas, aguenta firme que vou te furar os óinho, aguenta firme que vou te crucificar'. Até parece historinha sadô: 'me bate, amor, me corte de gilete, me põe o armário em cima'. Se Deus fosse só um amante enciumado e eu o traísse com o chifrudo, até dá pra entender. O sexo é ligado a muitas fantasias sórdidas. Ou vocês só fazem aquele buraco no lençol? Alguém muito especial me dizia: tens um inimigo? Deseja-lhe uma paixão. Mas a luz lá de cima, o grande sol das almas me condenando ao sofrimento, me pentelhando para sempre a vida? Ah, não." [cascos e carícias]

Em A Graça de Deus, o brilhante romance de despedida de Malamud (que o escreveu em 1982, morrendo em 1986), esta divindade terrivelmente temperamental e bizarra é retratada perdendo as estribeiras. Depois de muito aguentar as macaquices da raça humana, o Cara Mais Poderoso do Universo se enfeza feito um gângster, tem um ataque psicótico incontrolável e decide mandar tudo pras cucuias. Ele lança sobre a Terra um Segundo Dilúvio, monumental e impiedoso, que faz picadinho - ou melhor: dá um belo dum caldo... - em todas as criaturas vivas sobre a face do planeta. Ou quase. Pois um judeuzinho rabudo, que estava em seu submarino na hora do atentado da jihad divina, acaba sobrevivendo. Numa ilha deserta, ao lado de um grupelho de macacos, vai tentar recomeçar a aventura humana como um Segundo Adão.



Esse personagem, Calvin Cohn, é uma mescla de Robinson Crusoé, Adão Pós-Moderno e Mersault (o anti-herói de Albert Camus). E o pobrezinho se engaja num duelo de esgrima com um Deus que parece um Calígula sanguinário. Calvin vê-se ao mesmo tempo nos apuros de viver na selva pré-civilizada (ou pós-diluviana), na angústia de encontrar um modo de perpetuar a espécie humana (o que ele faz trepando com uma macaquinha) e na revolta contra o Criador e Descriador. A solidão mais completa fustiga o nosso herói ("quão desolado era o mundo; quão lúgubres as experiências, quando se é um só a experimentá-las!" - 37) e "não há ninguém para se condoer de sua sina" (40). Tanto que, "se fosse possível inventar um mosquito, Cohn o inventaria." (57)

O Deus de Malamud se parece com um chefe que despede todos os seus empregados por justa causa, por comprovada incompetência ou cafajestice, e declara a empresa falida. Diz Ele: "Desde o início, quando lhes dei o dom da vida, tinham uma perversa avidez pela morte. Por fim pensei: dar-lhes-ei a morte, já que estão imersos no mal. Destruíram a minha obra, as condições para sua sobrevivência: o doce ar que lhes dei para respirar; a fresca água com que os abençoei para beber e banhar-se; a fértil Terra verde. Os homens dilaceraram meu ozônio, carbonizaram meu oxigênio, acidificaram minha refrescante chuva. Agora afrontam meu cosmos. (...) Em suma, o mal predominou. O Segundo Dilúvio foram os próprios homens que provocaram" (15).

Leitores ingênuos podem ver nessa magistral parábola um mero romance alarmista, que puxaria nossas orelhas de seres moralmente corruptos com a ameaça de uma hecatombe punitiva. A "moral da história" seria: Deus vai nos dizimar se não nos transformarmos logo em bons garotos. Até porque "A atual Devastação, que termina em fumaça e pó, é consequência da autotraição do homem", como justifica-se o genocida super-poderoso.

Mas Malamud escreveu um livro muito mais profundo do que uma mera ficção alarmista, que qualquer autorzinho cristão apocalíptico e moralista de meia-tigela poderia ter composto. O autor não só soa os alarmes contra os abusos ecológicos e morais da raça humana, como usa a catástrofe para desencadear todo um estouro da boiada de questionamentos teológicos.

Pois Calvin, o último dos homens, não é exatamente um fiel ortodoxo e submisso. Suas dúvidas religiosas o levam a perigosos confrontamentos com o Poderoso Chefão, que por vários momentos chega perto de fulminá-lo com um raio, Ele que tanto curte súbitos extermínios. Na manhã após a tragédia,

Calvin "acordou enlutado, pranteando o fim do ser humano, da existência humana, de todas as vidas perdidas. Enumerou todas as pessoas de quem se lembrava e também as que não conhecera mas cujos nomes tinha ouvido. Lamentou o fim da civilização, da bondade, da ousadia, da alegria, de tudo que o homem fizera de bom" e "encolerizou-se contra Deus, que destruíra seu próprio sonho" (19). É com estupefação e revolta que ele se pergunta: "Por que a vida humana significa tão pouco para Ele?" (21) E como Ele se sentiria no direito de infligir tão severas punições, se foi Ele mesmo, dizem, que nos criou assim, com tão "sérias imperfeições" (77)? Calvin diz: "Sentia por Deus mais temor do que amor."

O Calvin de Malamud é também crítico ferrenho da indiferença emocional divina: "Ele [Deus] poderia ao menos ter um mínimo de sentimento e comover-se com a aflição humana; considerar que muitos têm pouco e muitos não têm nada e que os homens vivem apenas um minuto e morrem em plena flor da juventude"). Ele ataca também o "serviço mal-feito" que Deus fez aos nos criar como criou ("não teria sido tão difícil para Ele dotar-nos com um pouco mais de controle sobre os instintos!").

E, claro, Calvin trata com ironia esse Deus desequilibrado que fica dando piti. "Missão cumprida: a Terra depurada de criaturas vivas, exceto talvez por uma barata subnutrida debaixo de uma bacia de madeira em Bombaim, que Ele exterminará com Seu spray da próxima vez que ela mostrar a cabeça com suas antenas frenéticas. O que O faz ser tão teatral?" (32)



Mas Calvin, de certo modo, reconhece que Deus tem lá suas razões para estar iracundo e decepcionado. Nas palestras e aulas que ele dá aos macacos da Ilha, tentando ensiná-los a não cometer os mesmos erros que cometeu a extinta raça humana, ele comenta: "...o que vimos foi o homem fazer um serviço bem sofrível nas suas relações com os outros homens, amando de uma maneira apenas superficial. O amor não é um fenômeno dos mais populares. Fala-se muito, mas na prática a coisa só arranha a epiderme. Seja como for, em todos esses séculos o homem não conseguiu dominar sua natureza e dar um fim a essa matança sem trégua. O que estou dizendo é que ele nunca dominou sua natureza animal para o benefício de todos (...). Tampouco conseguiu inventar uma forma de altruísmo que funcionasse na prática. Enfim, o homem comportou-se a maior parte do tempo de maneira irracional, insensata, selvagem e bestial. Estou me referindo, é claro, às repetidas mortandades." (128)

Calvin sabe muitíssimo bem, por exemplo, que a História Humana, que sempre foi um encharco de sangue, virou uma podreira enojante de tão imunda depois do Holocausto ("todo aquele sabão judaico feito com os corpos esqueléticos assassinados nas câmaras de gás") e da bomba H ("os americanos jogando as bombas em todos aqueles japoneses que de nada suspeitavam, rastejando às oito da manhã em meio aos cacos de vidro tentando encontrar seus globos oculares") (129). Que Pai não se revoltaria contra filhos capazes de tamanhas obscenidades?

Pois esses ápices no HORROR que o Homem conseguiu atingir nestes escândalos que sujam o século 20 podem gerar dois tipos de confrontação teológica. Por um lado, a negação absoluta da Divindade, o ateísmo completo, que diz que uma Criação tão cheia de pecado não corresponde a uma Causa Divina e Bondosa. Além disso, se o Onipotente não se manifestou para impedir tamanhos massacres e indignidades, é certamente porque: ou é Do Mal, o que não corresponde a Deus, ou simplesmente Não Existe. Existe um Demônio ou não existe nada: a isso se reduzem nossas opções. Ou seja, a hipótese de um Deus Bondoso, Onipotente e Interventor morreu de vez em Auschwitz e devemos seguir em frente sem essa imensa ilusão que nos entravou o caminho para o conhecimento por milênios.

Por outro lado, para aqueles que conseguem prosseguir crendo, esses terrores podem gerar dúvidas do tipo: como pode Ele permanecer impassível frente a um espetáculo tão de revirar o estômago? Por que é que não vomita um Segundo Dílúvio pra limpar toda essa sujeira? Donde a chuva de cristãos apocalípticos e outros religiosos de comportamento paranóico - "o Fim dos Tempos está chegando! Preparem-se para o Juízo Final! - que não é preciso andar mais que uma esquina em uma grande metrópole para encontrar...

* * * * * *

Esse é um livro desbocado, provocativo, às vezes bastante obsceno. Mais parece um livro de juventude, em que Malamud se mostra com a impertinência de um adolescente peralta, imaginando situações que a maioria dos homens ficaria de cabelo em pé só de imaginar. É o caso das cenas de sexo inter-espécies em "A Graça De Deus". Pois a certo ponto do romance, nosso herói, perdendo as esperanças de se deparar com alguma fêmea homo sapiens sobrevivente do Dilúvio, bola um "plano ousado" para driblar esse pequeno empecilho.

"O extraordinário feito que tinha em mente valia uma punhalada no escuro" (156). "Se ele e a macaca Maria Madalenta, unidos pela afeição mútua, e qualquer que fosse sua maneira de assestar e penetrar ele conseguisse depositar naquele útero acolhedor um jato do seu audacioso esperma, isso poderia mais cedo ou mais tarde exercer o efeito que ele esperava. (...) a evolução dos primatas exigia, como fundamento, além de algumas afortunadas mudanças macroevolucionárias, uma certa potência cerebral. Partindo de uma criança produzida por uma combinação de homem e chimpanzé, os dois seres mais inteligentes entre todas as criaturas de Deus, poderia surgir essa nova espécie - em última análise uma invenção de Cohn..." (157) Enfim: ele literalmente se decide a "fazer macaquices com a evolução" (159).

"A Graça de Deus" é tão sarcástico e iconoclástico, tão desrespeitoso frente a tabus sexuais e religiosos, que mais parece a obra de um autor ateu brincando de escrever uma continuação para a Bíblia. Nem de longe soa como o último livro de um escritor célebre por ter raízes judaicas profundas, o que nos faria supor um certo respeito temoroso por Jeová. Ao deixar sua imaginação voar livre e solta na criação desta infame parábola, Malamud cometeu uma obra que beira a ficção científica distópica e satírica - algo como um Planeta dos Macacos ou um Senhor das Moscas todo besuntado de questionamento teológico e ironia mordaz. Ao fazê-lo, esse brilhante autor americano, fechando com classe sua carreira de romancista, me dá a impressão de que escreveu um novo capítulo - divertidíssimo, pungente e estarrecedor! - do maior livro de ficção científica que a humanidade já imaginou: a Bíblia Sagrada.

(Já falei sobre outro clássico de Malamud, "O Bode Expiatório", aqui...)