quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010
segunda-feira, 28 de dezembro de 2009
segunda-feira, 21 de dezembro de 2009
:: o homem é o ser supremo para o homem ::
domingo, 1 de novembro de 2009
:: Preâmbulus... ::
Segue abaixo, ainda em forma de rascunhão, mais uma partinha (na verdade partona....) do meu trampo de iniciação científica lá na USP. Meu objetivo é basicamente filosofar sobre "a vida depois de Deus", e averiguar que sabedoria e felicidade são possíveis depois do crepúsculo dos deuses e da queda das ilusões religiosas todas. Pra isso, estou centrando o foco principalmente em André Comte-Sponville, meu querido mestre, que escreveu livros que, além de me terem apaixonado pela filosofia, me mudaram a vida, para sempre, e para muito melhor, me salvando do niilismo e da melancolia infinita que eu temia que não me iriam largar nunca mais. É meu desejo que outros, igualmente agoniados com a absurdidade da vida, possam encontrar em Sponville o que encontrei: serenidade, sabedoria, doçura, alegria... Neste trecho, "ataco" principalmente dois temas sponvillianos que acho bem importantes: o estatuto da esperança e do eu, traçando paralelos com Camus, Spinoza e o budismo, entr'outros. Reflitam, discutam, discordem, conversem... Espero que não se assustem; mas, se se assustarem, lembrem-se: "o espanto é o pai da filosofia"...
Voilà:
SIGLAS:
T.D.B. = Tratado do Desespero e da Beatitude
F.D. = A felicidade, Desesperadamente...
Postado por Unknown às 19:04 |
sexta-feira, 30 de outubro de 2009
:: Abandonai toda esperança, vós que entrais! ::
- Paralelos de Sponville com Spinoza, Camus e o budismo -
[ NO FUNDO DA CAIXA DE PANDORA ]
Pois neste trecho o mestre existencialista é fidelíssimo ao “espírito do sponvillianismo”, que também considera a esperança um mal a ser superado e um obstáculo à nossa felicidade. O materialismo de Sponville gera necessariamente, depois da queda das ilusões religiosas, uma inversão radical do estatuto da esperança, que cessa de ser vista como um valor (como é no cristianismo, em que é uma das três “virtudes teologais” junto com a fé e a caridade), e passa pelo crivo de uma crítica que a desmascara como fonte de temor e infelicidade.
A esperança, para Sponville, é apenas uma das modalidades do desejo – e justamente o desejo como falta, como Platão o definia, ou o desejo como sofrimento, para falar como Schopenhauer e Buda. “O que é a esperança? É um desejo que se refere ao que não temos (uma falta), que ignoramos se foi ou será satisfeito, enfim cuja satisfação não depende de nós” (F.D., 58). Donde a definição clássica e sintética: “esperar é desejar sem gozar, sem saber, sem poder”.
“Só esperamos o que não temos, e por isso mesmo somos tanto menos felizes quando mais esperamos ser felizes. Estamos constantemente separados da felicidade pela própria esperança que a busca. A partir do momento em que esperamos a felicidade (“Como eu seria feliz se...”), não podemos escapar da decepção... É o que Woody Allen resume numa fórmula: “Como eu seria feliz se fosse feliz!” (F.D., p. 37).
Sabe-se que Dante pôs na entrada do seu Inferno, na Divina Comédia, a seguinte inscrição: “Abandonai toda a esperança, vós que entrais!” Sponville, pelo contrário, considera que quem está no inferno é quem mais se inebria de esperanças. “Colocar essa frase na porta do inferno é inútil. Como querer que os danados não tenham esperança?”, provoca (F.D., 71). Pois a esperança é um desejo que surge de um solo de impotência, de ignorância, de insatisfação, e conduz em quase todos os casos ao desencanto, ao tédio ou à “alienação” em relação ao real/concreto (ou seja, ao que existe). Sem falar que toda esperança é mãe de um medo, e o medo, para Spinoza e Sponville, é uma tristeza, ou seja, algo que diminui nossa potência de existir. Como haveria paz interna (ou seja: sabedoria) se não cessamos de cair no tumulto labiríntico das esperanças e dos temores? E uma não existe sem a outra: “não há esperança sem temor”, como define Spinoza (Ética III, def. 13 das afeições).
Lembrem-se do que diz a canção de Geraldo Vandré, "Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores": "Quem sabe faz a hora, não espera acontecer...". Pois quem sabe e pode, age; quem ignora e não pode... espera e reza. E quem espera não goza: teme e sofre. Também aí, neste clássico da MPB, vêm implícita a idéia de que em tempos de opressão política, como foi no pós-1964 no Brasil,o povo nada ganha ficando sentado em casa, com vagas esperanças utópicas de melhoras, mas deve sair às ruas, desfraldar bandeiras, pôr bocas em trombones - a ação e a intervenção, o protesto e a batalha, o fazer acontecer e o gerar-o-novo são o que conta, não a esperança (palavra que, não à toa, traz a "espera" em seu bojo...). Viver não é esperar.
O sábio, pois, não espera nada: vive no presente, impulsionado pela força alegre de seu desejo, preferindo sempre a ação à espera, a intervenção ativa à reza, o amor à carência, sem temores nem desencantos...
“Como esperar é desejar sem saber, sem poder, sem gozar, o sábio não espera nada. Não que ele saiba tudo (ninguém sabe tudo), nem que possa tudo (ele não é Deus), nem mesmo que ele seja só prazer (o sábio, como qualquer um, pode ter uma dor de dente), mas porque ele cessou de desejar outra coisa além do que sabe, ou do que pode, ou do que goza. Ele não deseja mais que o real, de que faz parte, e esse desejo, sempre satisfeito – já que o real, por definição, nunca falta: o real nunca está ausente -, esse desejo pois, sempre satisfeito, é então uma alegria plena, que não carece de nada. É o que se chama felicidade. É também o que se chama amor.” (F.D., p. 76)
[ SÍSIFO FELIZ ]
Em sua obra, Sponville tenta uma reelaboração do mito de Sísifo que, depois de ter passado pelo prisma existencialista com Camus, torna-se, em seu Tratado do Desespero e da Beatitude, um “símbolo da esperança”. Para Sponville, não há cena mítica que melhor indique os padecimentos causados pela esperança: arrastamos rochedos pesadíssimos para cima de topos de montanhas de onde eles, sempre, fatalmente despencam – e sempre recomeçamos o mesmo vão trabalho...
“O rochedo é a própria esperança” (TDB, 28), arrisca Sponville; são elas os pedregulhos que arrastamos colina acima, e que sempre acabam no despencamento do desencanto, da saciedade insatisfeita, do tédio... “Isso é que é o absurdo, e triste, e trágico: o peso sempre de nossos desejos insatisfeitos e temores vãos.”
Aqui, a palavra “absurdo” é pra ser tomada a sério: o “absurdo”, que Camus dizia ser a essência da condição humana, provinha, segundo este, dum “desacordo” ou “desarmonia” entre nossa psique e o “mundo”. Nós, famintos por sentido; ele, mundo, silencioso, indiferente e a-linguístico. Como não se abriria um abismo?
Mas Camus, que neste ponto é mais pessimista que Sponville, achava que havia uma fratura irrecuperável, um abismo intransponível, separando a “fome de sentido” humana e a indiferença absoluta do mundo. Isto é o Absurdo – essa relação desarmônica entre o desejo humano e o “cosmos”. “Este mundo não é razoável em si mesmo, eis tudo o que se pode dizer”, afirmava o mestre existencialista. “Porém o mais absurdo é o confronto entre o irracional e o desejo desvairado de clareza cujo apelo ressoa no mais profundo do homem. O absurdo depende tanto do homem quanto do mundo. Por ora, é o único laço entre os dois.” (O MITO DE SÍSIFO, p. 35).
Estamos perdidos: pedimos e suplicamos do “mundo” o que ele não tem para nos dar – sentido, calor, diálogo, amor... A razão humana, epifenômeno raro nascido em uma espécie dentre milhões de espécies vivas, emerge no seio de um planeta indiferente, inconsciente, amoral, morto. Em uma palavra: a razão humana está diante de um Irracional de uma imensidão absolutamente incontornável. “O homem se encontra diante do irracional. Sente em si o desejo de felicidade e de razão. O absurdo nasce desse confronto entre o apelo humano e o silêncio irracional do mundo.” (M.d.S., p. 41) Por isso, pesa sobre tantos homens a condenação a angustiar-se, se podem enxergar bem a verdade sobre nossa condição: “a angústia é o ambiente perpétuo do homem lúcido...” (M.d.S., p. 37). Este Absurdo, para ele, só pode “resolver-se” na Revolta: é para ela que devemos tender.
Já Sponville não fala em revolta, mas, se falasse, diria provavelmente: se for pra se revoltar contra algo, que seja contra as esperanças, e não exatamente contra o absurdo! Pois matar as esperanças é o mesmo que matar o absurdo. O absurdo só vive uma existência derivada e secundária, dependente das esperanças. É somente porque esperamos que o mundo e a vida tenham sentido que somos tomados pela sensação de absurdidade quando os fatos crus negam nossos desejos. Quando não mais espera-se que o mundo tenha sentido, o fato dele não ter nenhum deixa de parecer absurdo – passa a ser unicamente verdadeiro.
Aceitar que o mundo e a vida não tenham nenhum sentido que transcenda o homem, que há um “vácuo objetivo de sentido” no cerne do ser, que o próprio ser talvez seja completamente sem-sentido e cheio somente de sua própria existência, traz uma inesperada plenitude. Vivemos então “na plenitude que a justa percepção de sua vacuidade nos proporciona...”, como escreve lindamente Sponville (TDB, 31). É também o espírito do budismo, como Lévi-Strauss o descreve: “Não há além para o budismo; nele, tudo se reduz a uma crítica radical (…) ao cabo da qual o sábio desemboca numa recusa do sentido das coisas e dos seres...” (LÉVI-STRAUSS, Tristes Trópicos, p. 475).
A fome de sentido é o que nos dana. É dela que precisamos nos libertar. Precisamos aprender a viver em paz, ainda que a vida não tenha sentido, ainda que o céu não exista. No silêncio da verdade. Na serenidade. Sim: trata-se de renunciar. Pode parecer estranho que apareça por aqui esta necessidade de renúncia, tão associada às religiões e aos conselhos-de-vida que estas costumam dar a seus devotos... Mas as religiões renunciam ao mundo... Já aqui, trata-se de renunciar justamente à religião, e agarrar-se com amor desesperado ao mundo! Sim: não haverá felicidade sem renúncia. Mas esta renúncia é uma renúncia das esperanças ilusórias que nos impedem o caminho para a felicidade real, sendo a religião só mais uma dentre tantas forças ideológicas que nos entulham a mente com ilusões a rodo...
Camus, de seu modo, chegou a conclusões semelhantes. O homem, percebendo a absurdidade de sua condição, não deve “saltar” para o abraço às ilusórias consolações oferecidas pela cultura; nem deve entulhar sua cabeça com contos-de-fada agradáveis. O essencial do “método” é recusar a salvação, aferrar-se à lucidez, manter os olhos abertos até o fim – o que ele chama, lindamente, de “viver sem apelação”:
“Insistamos de novo no método: trata-se de obstinação. Em certo ponto do seu caminho, o homem absurdo é solicitado. Na história não faltam religiões nem profetas, mesmo sem deuses. Pedem-lhe para saltar. Tudo o que ele pode responder é que não entende bem, que isso não é coisa evidente. Só quer fazer, justamente, aquilo que entende bem. Afirmam que aquilo é pecado de orgulho, mas ele não entende a noção de pecado; talvez o inferno esteja ao final, mas ele não tem imaginação suficiente para vislumbrar esse estranho futuro; talvez perca a vida imortal, mas isso lhe parece fútil. Querem que reconheça sua culpa. Ele se sente inocente. Na verdade, só sente isto, sua inocência irreparável. É ela que lhe permite tudo. Assim, o que ele exige de si mesmo é viver SOMENTE com o que sabe, arranjar-se com o que é e não admitir nada que não seja certo. Respondem-lhe que nada é certo. Mas isto, pelo menos, é uma certeza. É com ela que tem que lidar: quer saber se é possível viver sem apelação.” (O HOMEM REVOLTADO, p. 65)
Sísifo só seria feliz se não tivesse esperança alguma. É o que Sponville resume numa fórmula quase cruel: melhor não arrastar rocha alguma, e ficar ao pé da montanha fumando o cigarro do condenado. Que é a própria vida. Resignação e apatia? Pelo contrário! Desfrute intenso de um bem temporário, no presente, único tempo que existe.
De certo modo, trata-se sim de uma vitória da sobriedade sobre a embriaguez, e da razão sobre a paixão... Trata-se, sim, de “moderação dos desejos”, do “princípio de realidade” vencendo o “princípio de prazer” (Freud), de um trabalho sobre a vontade que tenta “ensiná-la” a não desejar erroneamente – e ter esperanças é, pura e simplesmente, o jeito errado de desejar. É este o ponto. Esperanças são desejos humanos que conduzem ao temor e ao sofrimento; somente por isso estão sendo criticadas, e não porque o filósofo deseja pisotear nas flores vivas e fazer com que o homem vive na lama sem auxílio algum das consolações... É como diz Marx: “A crítica arrancou as flores imaginárias que enfeitavam as cadeias, não para que o homem use as cadeias sem qualquer fantasia ou consolação, mas que se liberte das cadeias e apanhe a flor viva...” (CRÍTICA DA FILOSOFIA DO DIREITO DE HEGEL)
* * * * *
[O SAMSARA DA ESPERANÇA FAZ-SE O NIRVANA DO DESESPERO]
Quando a esperança bate em seu nível zero, uma espécie de “momento místico” acontece; e, ao contrário do que possam pensar os crentes, é um momento exuberante, cheio de vida e energia, em que nos sentimos mais vivos do que jamais antes. Curioso instante em que um umbral é transposto, um portal é atravessado, um extremo torna-se seu oposto... “O desespero se inverte em ataraxia”, resume Sponville. (T.D.B., 28) A felicidade é para ser pescada no fundo-do-poço. Haverá felicidade quando toda esperança morrer. Pois a vida é bem mais forte do que a esperança; e são nossas esperanças as principais vilãs que nos separam e nos alienam da vida. Desesperar é viver.
Queres pouco: terás muito.
Queres nada: serás livre.
(FERNANDO PESSOA)
O desespero é o meio desta libertação. É quase budismo: aniquilação completa do Samsara da esperança. Pois os homens “giram a esmo na prisão de seus desejos” (TDB, 30), e isso é o Samsara. Como Buda dizia: “O homem apega-se apaixonadamente a sombras: inebria-se de sonhos, planta no meio um falso Eu e estabelece à roda um mundo imaginário”. (PERCHERON, MAURICE. Buda e o Budismo, p. 41).
A esperança nos encerra no Samsara: não existe esperança no Nirvana. E não seria exato dizer que quando “entramos” no Nirvana a esperança some. Não: a esperança precisa sumir para que possamos entrar no Nirvana. É uma necessidade sine qua non para a iluminação: que o esperançar tenha se silenciado; não no silêncio da depressão ou da apatia, mas no silêncio da plenitude, da escuta e da contemplação.
Heresia das grandes: “a única salvação está em renunciar à salvação” (T.D.B, 29). Frase suficiente para que Sponville tivesse ido parar na fogueira da Inquisição, se tivesse vivido séculos atrás. Pois o que se afirma é: os crentes jamais salvarão suas almas através da esperança. Não há alma a salvar, nem céu a se conquistar. Toda a idéia de “salvação” não passou de um embuste... Só se chega à felicidade quando se percebe que o céu não existe e que é inútil esperá-lo; e, que se for pra ser em algum lugar, só poderá ser aqui – se o pudermos construir.
“O nirvana não é outro mundo, que viria justificar este, dar-lhe um sentido, santificar ou superar suas ilusões. Nem paraíso, nem justificação, nem santificação. O mundo é o mundo, nada mais, e o céu é vazio. Não há deuses, ou nada a esperar deles. Então?... Então a salvação é esse vazio mesmo, a compreensão da ilusão, a aceitação do contra-senso – o desespero. O nirvana não é, portanto, o contrário do samsara: “Enquanto o nirvana for encarado como algo diferente do samsara, ainda será necessário superar o erro mais elementar relativo à existência (Nagarjuna)...”. (TDB, 30-31)
Nada mais ilusório, pois, do que pensar em Nirvana e Samsara separados espacialmente, como se fossem duas cidades separadas por uma fronteira, ou duas margens de um rio atravessáveis por uma ponte. Na verdade, é a “atitude interna” o que muda, um novo olhar/perspectiva se estabelece. Não se vai ao Nirvana a pé. Nem de carro ou avião. Ao Nirvana “vai-se” sem mexer um músculo. Pois trata-se de uma modificação de consciência. Uma “purificação” de consciência. Uma pacificação, serenização, ataraxia desta consciência, antes presa do carrossel das esperanças e dos temores. Ver o mundo através do vidro impuro da esperança é enxergá-lo mal, como se olhássemos por um material semi-opaco, delirante, de pouca transparência...
O que temíamos que nos esmagaria como a pior das mais terríveis notícias – o mundo não tem sentido! O céu está vazio! Não há o que esperar dos deuses! - acaba (surpresa!) sendo nosso maior tesouro. O desespero, que temíamos, nos liberta de todo temor. Descobrimos que, se éramos medrosos, era porque esperávamos. Espero a carta chegar, e enquanto ela não vem sofro, importuno o carteiro, tenho tremendas insônias... A carta chega e com ela cessa a espera, eu des-espero: alegria, alívio, estou livre de um rochedo!
Há “novidade”, pois, nesta “lição de desespero” sponvilliana? Decerto que não! E ele não pretende ser original: de certo modo, segue nos passos de Buda, Epicuro, Spinoza, Marx e Freud... Que a esperança seja uma praga existencial é uma descoberta ancestral. “Não esperai nada dos deuses implacáveis. Esperai tudo de vós mesmos” (PERCHERON, p.34-35): palavras de Buda, mais de 2 mil anos atrás... “As noites serenas são as noites sem esperança”, escreve um poeta grego (Sêneca), também milênios lá longe...
A sabedoria, pois, exige uma renúncia suprema: de toda esperança. “A sabedoria é a inversão do desespero, e seu apogeu” (TDB, 33). Quando o desespero chega ao seu ápice, ou seja, quando não há mais esperança alguma, é aí que a sabedoria, o nirvana, a ataraxia nascem.
A felicidade é uma hóspede que, chegando em nosso hotel, exige um quarto vago. E ela é bem específica em suas demandas: diz que só fica se for no quarto hoje ocupado pelas esperanças, aquelas pragas. Diz a felicidade, a quem sabe ouvi-la: “expulse todas as danadas do quarto, estas ervas daninhas, que juro que me instalo, mesmo que seja só por meia-diária, uns minutos, um pisco...”. É preciso abrir no peito um ninho vazio onde o pássaro da felicidade seja convidado a se pousar. O desespero é quem trabalha nesta obra: abre “o espaço livre” que a beatitude precisa para nascer.
Por isso Sponville não diria que nosso tempo histórico, o “clima espiritual de nossa época”, é dominado pelo “desespero”. O nosso tempo é do desencanto, da decepção. O desespero seria a superação deste mesmo desencanto; pois todo desencanto é a queda de uma esperança. Notem na própria palavra: é preciso que se esteja encantado para que o desencanto sobrevenha... Não se desenfeitiça quem não foi enfeitiçado; mas quase todos perdemos nossas vidas enfeitiçados pela esperança e pelo desencanto. São nossas vidas: quereres e frustrações, desejos sem fim e infindáveis tédios... Samsara. Como escapar a este labirinto? Não há medicina alguma além desta: doses colossais de desespero. É preciso descer até o fundo do poço. Estranha terapêutica, que de certo modo recomenda aos deprimidos e melancólicos que continuem descendo... Haverá uma estrela brilhante no fundo do poço escuro...
[ A QUEDA DE VOSSA MAJESTADE, O EU ]
Em Sponville vacila também o “cogito” cartesiano, suposta base solidíssima para toda a filosofia de Descartes. Este “eu” que se pôs no alicerce de tudo, como certeza primeira, existirá de fato? Ou só existe esta “multiplicidade vaga e como que fantasmática de suas aparições”? (TDB, 44). O eu, em Sponville, pára de ser visto como uma unidade estável, e passa a ser enxergado como um processo metamórfico. Crer na estabilidade do eu, pois, é nutrir uma crença profundamente ilusória. O eu é um rio que corre, sempre, e que não se pode congelar. Tal concepção vêm de muito longe na história: do atomismo de Epicuro/Lucrécio/Demócrito, de Heráclito, das filosofias “místicas” orientais (hinduísmo, budismo etc.), chegando até Nietzsche e grande parte da filosofia do século 20. Não resta nada do sujeito senão sua “ilusão de si”. Desespero: não há mais Deus nem sujeito.
Para o budismo, por exemplo, não há “eu” - ou seja, bem antes de Nietzsche e toda a filosofia contemporânea, Buda já tinha decretado a “morte do sujeito”. “Só há agregados, isto é, combinações fugidias cuja aparente continuidade é apenas ilusória”, explica Sponville. (TDB, 47). Processo, metamorfose, agregado, dança de átomos... não há mais “eu”. Contra a presunçosa tese metafísica dos monoteísmos, que garantem que há algo em nós, o “espírito”, que é imortal, imutável, indestrutível, fixo, Buda diria: “o que chamais de espírito se produz e se dispersa numa mudança perpétua... se forma e se dissolve sem cessar...” (PERCHERON, Maurice. Buda e o Budismo, Seuil, p. 58). O cosmo é uma imensa praia de areia movediça. “...não há nada permanente, eterno e sem mudança na totalidade da existência universal...” (WALPOLA RAHULA, p. 93). “O homem não passa de um composto impermanente num oceano de impermanência” (TDB, 49), resume Sponville.
Isso que chamamos de “identidade”, pois, entendendo por isso uma estabilidade da personalidade, algo que “continuamos a ser” através das idades da vida, desde o primeiro choro até o último suspiro, por todas as curvas e ladeiras e morros do tempo, não passa de uma ilusão. Se formos sábios, descobriremos que o amor não é uma questão de esperar que os outros admirem nosso “eu”, que não passa de fumaça e correnteza, vaidade das vaidades, mas sim de agir em nome da alegria e da potência de existir, batalhar pela felicidade alheia, dando o “eu” em hecatombe, como combustível para este incêndio maior (tão maior!)... O amor é uma ação, uma potência, uma força - e não um desejo de ganho. Pobre de Narciso, “que só ama reflexos e miragens, que só ama inapreensíveis jogos na água, e frágeis, e cambiantes, da luz...” (TDB, p. 55).
A única coisa eterna é a mudança. A fugacidade é só o que há de perene. A eternidade não é uma estátua: é uma eterna correnteza, que corre e corre sem se cansar... E por isso o tal do “eu” não passa de uma quimera, que o budismo tão bem soube desmascarar:
“...aquilo que nós chamamos de Eu não passa de uma abstração da memória e não representa senão lembranças registradas – o que contribui para dar uma impressão falaciosa de continuidade. O único Ego genuíno é o do momento dado, pois se concentra na experiência imediata. A dualidade dolorosa aparece quando o indivíduo tenta a cada instante pôr em ação um Eu, de fato, inexistente. Pouco importa para o budista encarar a libertação de seu sofrimento como um objetivo futuro, pois a única coisa que conta realmente é a identidade do seu Eu e o pensamento presente. Seria um erro crer que esse aprisionamento do Eu e o caráter efêmero que ele reveste afastem toda possibilidade de modificar, de maneira geral, um ponto de vista do espírito, fortemente polarizado pelo momento atual: muito pelo contrário, a renúncia a um falso Eu é libertadora, uma vez que o pensamento do instante presente não se entregue a interpretações errôneas.” (PERCHERON, M. BUda e o Budismo, p. 63)
[ CONHECE-TE A TI MESMO: DISSOLVE TEU EU... ]
O “eu” é somente uma ilusão a superar, pois, e o modo para esta superação não é outro senão o velho imperativo do oráculo-de-Delfos: “conhece-te a ti mesmo”. O auto-conhecimento, ao contrário do que pensam os ingênuos e os otimistas, não nos dá, quando consumado e bem-sucedido, a felicidade de “sermos donos de nosso próprio eu”. Não: o auto-conhecimento dilui este mesmo “eu” que ele, pensando conhecer, só consegue “dissolver”...
E o auto-conhecimento não passa, também, de processo. E processo vitalício. Não é possível “estacionar” num conhecimento “seguro” e “imutável” sobre o tal do “eu”. E é porque ele não existe “parado”: o que chamamos de eu é algo que corre... Como na célebre parábola de Heráclito: não se banha duas vezes no mesmo rio, tanto porque as águas não são mais as mesmas, tanto porque o “eu” que se refresca já é outro... O eu corre, está sempre correndo. O eu não sabe ficar sentado; é criança traquinas que não sossega o facho... Como “conhecer”, pois, um moleque endiabrado que fica correndo pela casa?
O auto-conhecimento, se conduz ao contentamento e à serenidade, se é a jornada essencial para “atingir” a sabedoria, é muito mais pelo efeito dissolvente que ele possui. Ele destrói mais do que fabrica: destrói ilusões, quimeras, esperanças, temores, fantasias, paranóias, neuras... O próprio Freud certamente assinaria embaixo desta tese, tão simples e tão comprovadamente verdadeira: o auto-conhecimento é terapêutico. Mas se é terapêutico, é pelos males que ele dissolve mais do que pelo “conhecimento positivo” que ele possibilita – aí está. E não é terapêutico porque nos dá a “posse” de nosso próprio “eu” - não há eu a possuir, só ilusões a dissolver. E querer possuir um eu – imutável, idêntico no nascimento e na morte, que não flui nem se modifica – é a ilusão essencial. Quem embarca nesta viagem de auto-descobrimento com tais ímpetos colonizadores (“apossar-se do eu”...) periga naufragar no meio do Atlântico, como um Cabral que não descobre a América...
O oráculo de Delfos nos deu uma missão que talvez seja, no fundo, irrealizável (mas que não é, por isso, menos crucial e de suma importância). Não porque não haja níveis de “auto-conhecimento”: com certeza existem pessoas extremamente iludidas sobre si mesmas, que se tomam por uma imagem distorcida que fabricaram de sua “identidade”, e outras que parecem possuir uma extrema lucidez, uma capacidade límpida para perceberem-se e aceitarem-se como são. O que é impossível é que o auto-conhecimento “pare”, estacione, se conclua. Esta não é uma jornada com uma recompensa que se possa possuir, como é no caso de um mergulhador que desce ao navio naufragado e emerge com um baú de tesouros. Não há eu: não há no fundo de nós, escondido lá nos breus das funduras, nenhum “eu” que seja o nosso pote-de-ouro no fim-do-arco-íris. Conhecer-se, de verdade, é perceber-se como um mutante, e abdicar de qualquer esperança de estabilidade...
“Loucura de Narciso: querer possuir um eu que não existe”, escreve Sponville (TDB, 92). “A sabedoria é renunciar à posse.” Não estamos falando somente de posses materiais, claro, mas sim deste desejo de “ser dono de si mesmo” - desejo ilusório, esperança miserável, que não passa de uma fantasia utópica. Como naquela música dos Los Hermanos, que encerra o Ventura, onde o Marcelo Camelo canta (com infinita melancolia) sua fantasia de que, no “final” (um “final” que ele, claro, projeta num futuro distante, num mitológico tempo cósmico onde se tornará carne o happy end)...
...vou ser coroado rei de mim.
Mas ninguém se torna “rei do seu próprio eu”, na verdade, pois esse “eu” (substancial) não existe. Somos um corpo, decerto, mas não um corpo que “tem um eu”. Se dissermos que cada um de nós é um corpo que tem “vários eus”, já estaremos um pouco mais próximos da verdade. “O eu é um outro”, dizia Rimbaud, talvez querendo dizer que a estranheza consigo mesmo era tamanha que seu “eu” soava como um estranho, um desconhecido bizarro... Mas para sermos fiéis ao espírito do sponvillianismo, teríamos que dizer algo esquisito como: “o eu é todo um monte de gente!”. Parece coisa de criança... mas quem disse que as crianças não tem lá sua sabedoria? E, se o “eu” é “um monte de gente”, ora bolas, por que o chamamos de “eu” e não de “nós”? Por que acreditamos numa “identidade”?
A gente é um monte de gente...
“...só terei alegria, em minha relação comigo mesmo (ou com o que vivo como tal), se souber amar aquilo em mim que não é eu, aquilo em mim que não é um indivíduo, não é um sujeito, não é uma coisa: aquilo... esse jogo de forças e desejos, essa potência em mim de gozar e de pensar, essa força de existir, isto é, de viver e de agir, que Spinoza chamava conatus ou desejo. Ou seja: a natureza em mim viva (Vênus Volupta), de que não sou, e nunca serei, mais que uma parte. Bem tolo é o egoísta, que toma essa parte por um todo. E bem infeliz: pois ela morre. E sua vida é amarga como um sonho natimorto. É o sonho de Narciso, e o amargor de suas esperanças vãs... Ao invés disso, é necessário amar, não o eu, mas a natureza em mim (minha própria potência enquanto parte da potência da natureza), não o eu, mas a vida. Isso não se possui: a onda não se possui, nem o mar. Mas ser sábio, repitamos, é renunciar à posse.” (TDB, pg. 92)
A vida não se pode possuir. A vida não é algo que se tenha. Ninguém tem, da vida, nada senão uma “posse” precária, transitória, passageira, mortal. Uma posse que passa e se perde, não sabemos quando, e para todos, sem exceção. Da vida, um dia, seremos todos despossuídos. Pois então: possuímos de verdade aquilo que vai morrer? Ou tudo o que vai morrer nos está somente emprestado? Pois somos, para nós mesmos, aquilo que vai morrer: transitória carcaça de carne e nervos que arrastamos pelos dias, parcos e poucos, em que vivemos e lutamos, persistindo como podemos...
A “satisfação interior”, o “auto-contentamento”, a “ataraxia”, a “beatitude”, “a sabedoria”, só virá quando este complexo de ilusões que chamamos eu, na ilusória crença de sua unicidade e substancialidade, ruir e se desfazer. Sim: é como no budismo – o Nirvana é alcançado com a “extinção do eu”. Ou seja: da ilusão de que o eu existe. Estar iluminado é saber que o eu não existe.
* * * * *
[ VIVER É DESEJAR, DESEJAR É VIVER ]
O eu não existe; mas a vida sim. O eu não existe; mas nossos corpos, sim. E nossos corpos, que carregam seus desejos e necessidades, que sentem prazer ou dor com certos e cert'outros contatos, têm uma força íntima, propulsora de tudo, que vive enquanto vivermos – exatamente o que chamamos conatus, desejo, libido. Viver é desejar. E só os mortos não desejam.
Não há eu imutável, não há identidade fixa, não há nada em nós que não flua na correnteza do tempo, junto com tudo o mais... Mas há os desejos.
O que não há é o “eu” que deseja, e que seria supostamente sempre o mesmo, apesar do carrossel de seus quereres. Só há o carrossel, sem piloto, sem botão de stop, e que só pára com a morte. Só no túmulo paramos de desejar. Por isso “a experiência do eu é a experiência do desejo. Anterior à consciência do eu no recém-nascido, mais ampla que esta no adulto, o desejo é a essência de nossa vida”, afirma Sponville. “Todos os nossos dias lhe são submetidos, e até nossas noites, como Freud mostrou, lhe obedecem.” (TDB, p. 63)
Somos, essencialmente, vontade de gozo. E isso, como diz o poeta, “nos faz ir onde quer que o prazer (voluptas) arraste cada um de nós” (LUCRÉCIO, II, 257.) Vênus é sempre um magnético sol em nosso horizonte: vamos em sua direção. E não há fim para a “constante marcha adiante do desejo”, nesta vida – a marcha só cessa quando cessa a vida. “O desejo, como o mar, é sempre recomeçado. Do mesmo modo que meu corpo não passa de composição, no espaço, de átomos perpetuamente móveis, assim também minha vida não passa da sucessão, no tempo, de desejos indefinidamente variados.” (TDB, p. 66)
Não se enganem, pois: dizer que não se deve querer a posse do “eu” não é o mesmo que apostar, como no niilismo de Schopenhauer, que é preciso negar toda a “vontade de viver”. Pelo contrário! Isto que chamamos de “vontade de viver” é pra ser afirmada, decerto! É o próprio conatus, e o conatus é todinho feito de desejo. “Não se trata de renunciar ao desejo”, frisa Sponville, neste ponto sendo fiel a Nieztsche. Nem é possível, no fundo, esta renúncia completa: somente no suicídio. Enquanto há vida, há conatus – mesmo no moribundo, há ali um resíduo desta força vital que persevera no ser, a despeito de tudo, de quaisquer argumentos e razões....
“Spinoza é o anti-Pascal: em vez de nos rebaixar pela denúncia, carregada de ódio, de nossa 'miséria', ele nos eleva pela consideração, cheia de alegria, de nossa potência.” (Sponville, T.D.B., 93) Pascal – que dizia que nada há de mais odioso que o eu – não conseguiu libertar-se dele (e é óbvio porquê: pois ficou prisioneiro do cristianismo). Já Spinoza, que alçou vôo bem longe dos dogmatismos dos monoteísmos ocidentais, percebeu o que a filosofia oriental já descobriu há milênios (como mostra muito bem o “Filosofias da Índia”, o magistral livro do Heinrich Zimmer, que considero um dos melhores da filosofia no século 20): o eu é só uma quimera, que deve ser desfeita para que possamos viver “a verdadeira vida”.
“Nem Pascal, nem Narciso: nem o eu da religião, nem a religião do eu” (T.D.B., pg. 96). O “eu” não é um culpado, um criminoso, que é preciso torturar, arrastar no chão, humilhar com violência, mandar pro castigo, como queria Pascal, como quer o cristianismo (doutrina que nos convence que somos todos pecadores, precisados de redenção...). O “eu” também não é algo pelo que apaixonar-se, como fez Narciso, que delirou uma imagem de si-mesmo e tacou-se de cabeça nela – afogando-se, lembrem-se bem. Ser cristão, ser narcisista, não nos servirá para atingir nem felicidade nem sabedoria.
“Quem não se possui se partilha sem perda”, escreve lindamente o Sponville (TDB, 95). Como nos partilharíamos, se acreditássemos ter um “eu” que é preciso guardar e resguardar? A “possessividade” em relação ao eu é a fonte de todos os vícios, infelicidades e burrices do desejo.
Desiludidos das miragens das posses, não nos descobrimos pobres: estamos mais ricos do que jamais estivemos. Lembrem do que cantava a Janis: “freedom is just a another word for nothing left to lose”. Quando não mais há eu a perder, quando não há mais esperanças a nos iludir, estamos livres. É o espírito de Woodstock, e não à toa chamavam aquela geração de mística, esotérica, orientalizada... Pois é verdade: o balanço da cultura-jovem daqueles Verões-do-Amor pendeu mais para o Oriente, o sábio Oriente, do que o Ocidente bélico, industrialista, individualista, consumista, competitivo e tecno-junkie desejava. Que perigo, essa juventude achando que a contemplação, o amor e a música são valores mais dignos de serem perseguidos do que o consumo e o trabalho mecanizado!...
A vida, pois, é pra ser desfrutada, não possuída. A vida foi feita para o desfrute passageiro, e não para a posse eterna. Na vida somos apenas visitantes, nunca moradores. E devemos amá-la pelo que é, sem apelação e sem ilusão, sem falsas esperanças que nos furtem da implacável grandeza de uma existência lúcida. “Desfrutar-se sem se possuir: o filho pródigo contra o avarento, o jogo contra a propriedade, a serenidade contra a angústia” (T.D.B., pg. 96). Pois quem disse que “perder o eu” e “abandonar toda esperança” é coisa ruim? Pelo contrário! É a libertação...
Postado por Unknown às 09:44 |
quinta-feira, 22 de outubro de 2009
Perder a fé não é nada fácil. Junto com Deus, cai também o Sentido. E agora, vida, o que é que você significa? O que é te salva do absurdo, da infinita angústia? Que missão dentro de ti devo cumprir? Pois antes, quando ainda havia a crença, havia uma meta muito bem definida: fomos postos no mundo por uma divindade benevolente e onipotente, que faz de nosso percurso terrestre uma espécie de prova para checar do que somos merecedores: da bem-aventurança eterna, ou da danação sem fim. O cosmos ficava impregnado de sentido: houve uma criação, e uma razão para esta criação, e um espectador atento, lá em cima, que observa nossos atos e intenções, distribuindo castigos e recompensas conforme nosso mérito, com a mais perfeita equidade e justiça...
Quando deixa-se de crer em Deus, faz-se esse vazio no peito, um buraco negro antes preenchido por sentido. E agora, com que preencher essa ferida deixada por um Deus que se ausentou, levando consigo todo o sentido? Que é a vida, então, se não foi criada, mas foi simplesmente “algo que aconteceu”? Que devemos fazer dela, com que tipo de ações e atos preenchê-la? E agora, que não há certeza de que seremos recompensados pelo Bem nem punidos pelo Mal? Que sobra para nortear nossos seres nos agitados mares de um mundo sempre movente?
Era fácil ser um homem bom quando para isso bastava seguir os Dez Mandamentos, ir à igreja aos Domingos, ficar longe dos puteiros e das amantes. E agora, como ser um homem bom, quando não mais está escrito em pedra os princípios que devemos abraçar? E quem é que vai julgar se um homem é bom ou mau, se o juiz que imaginávamos estar sentado num trono nas estrelas mostra-se só uma ilusão, um vazio, um nada? De onde tirar a energia para a bondade, se sabemos que não há forças cósmicas engajadas em recompensá-la? E como resistir à tentação da maldade, se ela muitas vezes pode trazer suas vantagens e nenhuma divindade punidora nos observa lá de cima?
Ninguém perde a fé à toa ou porque acha gostoso. Não há nada de agradável em ver desmoronar tudo o que antes tínhamos como verdadeiro. E dá uma grande indignação descobrir, de repente, que nos mentiram e nos enganaram. A criança, ao descobrir que Papai Noel não existe, talvez nunca mais vá levar a sério o que dizem os adultos, esses embusteiros, passando por uma desilusão essencial no caminho para a maturidade. Nós, ateus, ao percebermos que tudo na religião não passava de embuste, e que Papai Noel e Papai do Céu tinham mais semelhanças do que uma mera rima, passamos por mais um doloroso ritual de maturação. É como deixar a criança pra trás, de novo, e sempre dói saltar para um outro estágio onde a volta ao anterior é impossível. “Que culpa temos da infância, de seu viço e constância?”, perguntava Jorge de Lima. Mas que culpa temos se as ilusões da infância, cedo ou tarde, acabam ruindo? E crer em Deus não é um aferrar-se a ser criança? Não é querer habitar um mundo onde os nossos desejos mais íntimos e profundos são todos atendidos?
* * * *
Sei muito bem, também, o quanto argumentos contam pouco contra vivências. Se me tornei ateu, sem chance de retorno, foi certamente pelo que vivi muito mais do que pelo que li ou me disseram. Se tudo saísse como o planejado, eu teria sido um cristão perfeito, que comunga toda semana, que confessa seus pecados, que reza à noite e à mesa seus pais-nossos, que preocupa-se com a salvação de sua alma, que vive com a sensação constante de estar sendo pelo juiz supremo observado...
Quando criança, fui mandado pro catecismo, e não tinha nada de levado-da-breca. Ouvia com atenção. Respeitava a sabedoria dos anciãos. Acreditava piamente que o padre entendia muito mais sobre o mundo do que eu. Enxergava sobre a Bíblia uma certa aura sagrada, que a fazia ser um livro especial entre os livros, e um que não se podia ler sem uma respeitosa postura de gravidade. É claro que, como todo menino, achava tudo muito chato e não via a hora de voltar ao vídeo-game. Mas, desde muito cedo, influenciado muitíssimo, também, pela minha avó, me preocupei, sobretudo, em “ser um bom garoto”. Meus pais não têm muito a me censurar em termos de travessuras: eu não atirava pedras nas janelas dos vizinhos, não matava passarinho no estilingue nem roubava doce na padoca. Era excelente aluno, desses que a professora não precisa jamais puxar a orelha por indisciplina ou por excesso de barulho, e que passou por todas as séries sem nunca ter ficado de recuperação. Em casa, não era nem respondão, nem revoltado; apenas, talvez, mais triste do que costumam ser as crianças e os jovens, e muito mais calado...
Fui um cristão perfeito, que rezava todas as noites, comportado como um coroinha, o orgulho da mamãe e da vovó, sem pecados a relatar, sem sujeira na alma, quase um Santo Agostinho. Estava no caminho para ser canonizado. Até o dia em que, quando eu retornava da igreja, um trombadinha com o dobro da minha altura e o triplo da minha massa muscular me pôs sob a mira dum punhal , me arrastou pr’uma rua deserta, me tirou tudo que eu tinha de valor e ainda fez questão de dizer que já tinha matado “três caras” e que matar mais um era a coisa mais fácil do mundo.
- Num tenta nenhuma gracinha, senão eu te furo. Brinca não que eu já furei três caras!
Como descrever o desmoronamento que isso causou dentro de mim? Ainda hoje não sei como meu tórax não explodiu, tamanha a alucinante disparada que deu meu coração quando notei que estava sozinho, no meio da rua, longe de pai e mãe, frente a um adolescente irado, com sangue nos zóio, que ameaçava me cortar a faca e me deixar sangrando na calçada. Que tinha feito eu para merecer um tratamento tão truculento?
E os desastres não gostam de anunciar previamente sua chegada: vêm quando estamos desprevenidos. Fui pego como se fosse um atropelamento. A ira dos despossuídos veio com toda a força para me punir pelo crime inafiançável e terrível de ter 10 pilas na carteira e um relógio no pulso, e estar andando com eles pelas ruas da miséria, na volta da igreja.
Tempos depois, na puberdade, foi a hora do segundo golpe – dessa vez, não foi mais um mero punhal na mão de um trombadinha, mas dois revólveres na mão de dois ladrões de carro profissa, que puseram eu e meu pai na mira, nos deixando quase implorando por misericórdia. Me lembro até hoje de ficar literalmente petrificado de medo. E, por favor, levem a sério a palavra petrificado. Minha sensação é que eu ficaria sendo uma pedra por alguns anos – e foi o que aconteceu e o que hoje eu costumo chamar de “adolescência”...
Há modo mais dolorido de uma criança aprender sobre a fragilidade da vida humana, sobre a violência urbana e a luta de classes, sobre as sangrentas rixas entre os homens? Estas são coisas que eu preferiria ter aprendido nos livros, e não assistindo, impotente, enquanto meu pai era ameaçado de morte por uma mão tremendo de ira, a um passo do assassinato...
* * * * *
O pior de tudo, porém, não foram nem os assaltos, enquanto eles duraram, mas suas seqüelas e feridas, das quais nunca realmente me curei – meus pesadelos que o digam. Eu demoraria anos e anos, depois, para “elaborar” essas experiências. Mas sei perfeitamente que foi ali que Deus pra mim morreu. Talvez existam outros ateus que tenham “acordado” de modo mais gradativo e menos traumático. Eu, não. Acordei num repente. A cruel pedagogia do mal me desconverteu subitamente.
A verdade é que Deus me decepcionou profundamente.
E acho que nunca o perdoei por esta decepção.
Sei que Ele não existe, e continuo culpando-o.
Culpei-o pelo desprezo absoluto e completo por mim. Pela indiferença monstruosa que demonstrou por meu destino. Por não ter movido um único dedo de sua mão onipotente quando eu estava ali, precisando, suplicando, minha vidinha de 10 anos de idade vacilando, por um triz... Me perguntei: e se a faca tivesse sido enfiada no meu peito, e o bandido tivesse me deixado num beco escuro para morrer, e ser recolhido pela polícia, e mandado sem documentos pro IML, o que faria meu bom Deus? Surgiria, milagrosamente, abrindo um buraco nas nuvens, para me resgatar? Não. Eu soube que não. Senti que não. Meu Deus tinha me provado que para Ele eu não tinha absolutamente nenhum valor. O fato de eu viver ou morrer, pra Ele tanto fazia. Eu não era digno de resgate. Nem meu pai, tampouco, o de carne-e-osso - que Ele, excelente Deus que eu tanto fazia para louvar, não salvou da mira de uma pistola que teria destruído nossas vidas por inteiro, e que, ao não disparar, a destruiu somente pela metade.
Uma pistola que não dispara nem por isso nos deixa inviolados. Uma pistola que não disparou me deixou, por anos, procurando meus cacos pelo chão...
* * * * * *
E então, por não saber nem o sentido da vida, nem quem sou eu, vivo rascunhando uma existência que nunca vou passar a limpo... Talvez a vida não seja uma prova, e ninguém nas estrelas tenha como serviço nos dar uma nota azul ou vermelha. Isso também é uma decorrência do ateísmo: nada, no além-túmulo, virá para julgar nossa vida. A vida a julgamos conforme a vivemos. E eu talvez me iluda a transformando num teste, e me invente este desejo, que passa por um sentido, de ser aprovado. Vou entregando às gentes rascunhos de um ser que se procura, que se interroga, que se angustia, que se cansa, que se reergue, que insiste. Faço tudo com a inépcia de um principiante, com a falta de jeito de uma criança, pois viver, ao que eu me lembre, é algo que nunca fiz antes. Descubro que o caminho é errado só depois de começar a trilhá-lo. Encontro provas de meus erros nos machucados com que vou povoando outros peitos. Me refaço como posso, me transformando enquanto caminho, e não tenho cais à espera nem muita escuta pra minha angústia. Quero amar porque sou só, e a vida é muito difícil. Mas o amor não é uma marcha da vitória, mas uma dolorida busca, que empreendo com minhas fracas forças, tentando construi-lo para iluminar o escuro. Dos céus nada espero – nem mesmo que reconheçam o ressentimento que seu eterno silêncio deixou no meu coração partido.
* * * * *
Mas os seres amados não são eternos. É sempre um mortal amando outro mortal. E sempre amamos uma pessoa que um dia irá morrer, não sabemos quando – talvez antes de mim, talvez depois, mas que deste mundo partirá, com certeza. Disso todo mundo não sabe, e disso todo mundo finge não saber. Por isso foi preciso que Wayne Coyne cantasse, naquela linda música dos Flaming Lips, tentando despertar nos ouvintes a lembrança de algo que quase todos nós varremos para longe de nossa mente por ser verdade demasiado amarga: “do you realize everyone you know someday will die?”
O ser amado sob ameaça de morte: nada causa um terremoto pior em mim do que isso. Foram talvez os piores momentos da minha vida, sentir esta ameaça. Meu pai sob a mira de uma arma de fogo segurada por um bandido irado. Minha avó Enid, adoecendo e definhando, até que, perto do fim, nem mais reconhecesse meu rosto, nem mais soubesse quem eu era, me provando que eu estava guardado dentro dela em células cerebrais que, também elas, nada têm de eternas. E agora isso: uma namorada, a mil quilômetros de distância, subitamente internada, com perigo de morte por embolia pulmonar. O pavor, o pavor... O silêncio que desce... O silêncio da impotência absoluta. E o medo do futuro, depois da perda: como sobreviveria eu a uma amputação tão grande, ao vazio em mim onde estava o amor pelo ser desaparecido? Nestas horas, a possibilidade de rezar faz falta, não nego. Quase desejo ser capaz de ter fé. Mas não tenho escolha: as ilusões perdidas não retornam. Persisto como posso.
Morte certa, hora incerta – e, enquanto isso, a angústia e a ignorância, fardos necessários dos lúcidos. Não: infelizmente, não consigo crer que o amor seja mais forte que a morte. Vejo nisso um exagero romântico, uma ilusão do otimismo, um wishful thinking que não se sustenta. O fato de amarmos alguém, não importa com qual intensidade e devoção, não basta para imortalizá-lo. Pois nada basta. A imortalidade não existe. O amor é “só” uma invenção sublime da vida em sua fome incontenível por si mesma. A vida quer a vida, e se esforça por perseverar na vida, sendo nesta missão o amor seu servidor supremo.
Este desejo de viver, que transcende em tanto a razão, que é tão maior do que todos os nossos pensamentos, que está instalado no mais profundo de nossos corações, esta energia vital subterrânea e inextirpável, que Spinoza chamou de conatus, Freud de libido, Nietzsche de vontade de poder, Bergson de élan vital, isto que em nós clama pela vida e pela felicidade, isto é a fonte de onde jorra o amor. Pois sabemos que sozinhos não somos nada, que nenhuma vida se justifica no isolamento, que (como cantou Tom) “é impossível ser feliz sozinho”... Mas alguns o percebem tarde demais, pegam nas mãos esta sabedoria quando já não sobrou muito tempo para pô-la em prática: lembrem-se da morte do herói de Na Natureza Selvagem, que em seus momentos de agonia tem a epifania e percebe: “happiness is only true when shared”.
Minha prova entregarei amarrotada, cheia de rasuras, orelhas nas páginas, tinta borrada pelas lágrimas, aqui e ali até uma ou outra gota de sangue... Em meio ao som e à fúria, caminho por um mundo que não entendo, na dura lida de fabricar melodia. Ai, vida, revela pra mim teu mistério? Me conta se faço de ti o que é devido? Ou só consigo criar um bizarro e triste rascunho-de-vida?
Goiânia, 22/10/09
Postado por Unknown às 16:09 |
sábado, 10 de outubro de 2009
:: theory of flight ::
AULA DE VÔO
O conhecimento
caminha lento feito lagarta.
Primeiro não sabe que sabe
e voraz contenta-se com o cotidiano orvalho
deixado nas folhas vividas das manhãs.
Depois pensa que sabe
e se fecha em si mesmo:
faz muralhas,
cava trincheiras,
ergue barricadas.
Defendendo o que pensa saber
levanta certezas na forma de muro,
orgulhando-se de seu casulo.
Até que maduro
explode em vôos
rindo do tempo que imaginava saber
ou guardava preso o que sabia.
Voa alto sua ousadia
reconhecendo o suor dos séculos
no orvalho de cada dia.
Mesmo o vôo mais belo
descobre um dia não ser eterno.
É tempo de acasalar:
voltar à terra com seus ovos
à espera de novas e prosaicas lagartas.
O conhecimento é assim:
ri de si mesmo
e de suas certezas.
É meta da forma
metamorfose
movimento
fluir do tempo
que tanto cria como arrasa
a nos mostrar que para o vôo
é preciso tanto o casulo
como a asa.
[mauro iasi]
Postado por Unknown às 11:13 |
segunda-feira, 21 de setembro de 2009
:: tenho uma cabeça com asas ::
"Quem é pobre", já dizia o Millôr, "só entra em avião se for pra varrer". Eu, que tive a má idéia de ser filósofo e não faxineiro, só tinha voado na vida uma vez, pra Porto Seguro, ainda moleque. Mas na época era pirralho demais para aproveitar a viagem e todas suas "potencialidades filosóficas". Desta vez, voando ao encontro da amada, era como se voasse pela primeira vez. Grudei-me à janelinha, com olhos famintos, desistindo do Joana D'Arc do Michelet que tinha trazido no pocket para me distrair na viagem, e entreguei-me à contemplação espantada das cambiantes paisagens, as externas e as internas (pois meu coração é também uma cambiante paisagem!). Descobri que tenho mais "sentimento cósmico" do que o pirralho de cabelo tigelinha que, no banco da frente, berrava com o pai querendo um pirulito, nem se surpreendendo com o fato de que estávamos cruzando os ares a 900 quilômetros por hora. Eu sou desse tipo besta de gente que acha avião um espanto. E pra mim é uma constante fonte de espanto, também, o quanto as pessoas conseguem achar tudo normal...
* * * * *
Depois de Auschwitz e Hiroshima, acho um tantinho difícil admirar a raça humana e não desejar ter nascido um esquilo ou um girassol. We have not done well. O engraçado foi sentir dentro do meu coraçãozinho misantropo, quando posto a bordo de um grande avião, um sentimento quase inédito: uma espécie de orgulho pela humanidade e suas façanhas tecno-científicas. Sem essa lindeza que é o progresso da ciência e da tecnologia, apesar disso ter dado também na bomba atômica e na nazi-eugenia, eu não poderia ter atravessado as distâncias para chegar perto da minha amada. Por vezes a razão trabalha em prol do coração! Me entreti um pouco batendo palminhas imaginárias para os homens, que inventaram este deslumbre que é o avião, e fiquei pensando que Zweig podia ter aceito a missão de escrever a bio de Santos Dumont – certamente sairia um livraço, com o talento incrível que possuía ele, Zweig, na descrição dos Momentos Decisivos da Humanidade (um livro que adoro). Se ele não topou, foi porque o Getúlio, na época, pediu de modo indelicado, autoritário, como se o artista fosse pau-mandado das ôtoridades; e aí o autor de Brasil: País do Futuro deu pra trás, já que começava a descobrir que este país não era a lindeza e a maravilha que ele tinha julgado quando aqui aportou, judeu exilado da Europa infestada de nazis, encontrando nesta acolhedora terra tropical o paraíso da miscigenação pacífica e da convivência harmoniosa de todas as raças, cores e credos...
Por mais viril que a gente queira ser, e por mais que nos garantam que não existe meio de transporte mais seguro, um medinho de catástrofe sempre dá. Fomos catequisados na paranóia por Hollywood, por Lost, pelo 11 de Setembro e... pela Lei de Murphy: algo sempre pode dar errado, sempre penso, e muito mais provavelmente no exato lugar onde estou. Tentei me consolar com as boas coisas que decorriam da minha morte num desastre aéreo: minha família faturaria 50 mil pila do seguro, o que certamente seria uma imensa alegria; muitos chorariam no meu funeral, lamentando um destino tão trágico, até mesmo aqueles que nunca me conheceram mas ficaram sensibilizados pela matéria do Fantástico; e podia até mesmo acontecer d'eu sobreviver roliudianamente ao crash: e aí uma Kate Austen, suja de fuligem, roupas aos frangalhos, numa ilha deserta australiana, estaria lá para me suturar os rasgos, oferecer um consolo... ai ai... olha que num é má idéia!
Outra das coisas que mais me surpreendeu, enquanto olhava fascinado as paisagens cambiantes lá embaixão, foi constatar que apesar de todo o papo sobre super-população no planeta, e a necessidade de controle de natalidade, ainda existem imensos vazios populacionais: por dezenas e dezenas de quilômetros, viaja-se por paisagens perfeitamente habitáveis, mas que não mostram muitos sinais da presença humana além daqueles riscos e rabiscos no terreno que, vistos de perto, chamamos de estradas.
E aí, de repente, meio que "do nada", aparece ali uma cidade humana, com milhares de casinhas e prédios amontoados num pontinho minúsculo da paisagem, e ali se aglomeram 100 mil, 500 mil ou 5 milhões de seres humanos, por vezes rodeados por espaço natural vasto. Questão: por que é que os homens não se espalham mais por aí, ao invés de ficarem todos colados uns nos outros, se cutucando com vara curta? É claro que é porque o homem é necessário ao homem, e nada há de mais valioso para o homem do que o homem, como Spinoza já dizia. Se cada um, sozinho, tivesse que ir atrás dos meios de sua subsistência, a sobrevivência seria de fato muito mais difícil; foi, pois, uma descoberta da espécie: a de que a solidariedade representa uma vantagem evolutiva.
Pensando bem, homem é um bicho meio tosco: não temos a força física dos ursos ou dos leões; não temos o tamanho imponente dos dinossauros; não temos a velocidade da pantera nem a visão dos linces; nem a capacidade de voar ou nadar que têm tantas milhões de espécies... Se sobrevivemos, e nos tornamos, merecidamente ou não, soberanos no planeta, teve necessariamente que ser pela união de forças - impossível sem a linguagem, impossível sem as cidades.
Mas dizer que o homem é “naturalmente sociável”, o zoon politicon de Aristóteles, não significa que ele não seja egoísta: é sociável justamente pelos torpes motivos egocêntricos, pelo interesse privado. É como na famosa metáfora dos porcos-espinho ao redor da fogueira de Schopenhauer: precisam se aproximar uns dos outros para não passarem frio, e por isso se reúnem perto do fogo; mas se chegarem muito perto, começam a picar-se uns aos outros com seus espinhos, por isso mantêm sempre uma certa distância confortável...
Me surpreendeu também notar os imensos vazios populacionais e paisagens naturais intermináveis que circundam a cidade, e que deixam a impressão de que a decisão de ali construir o centro do poder federal teve um pouco de elucubração política satanicamente espertinha: quiseram contruir NO MEIO DO NADA a capital do Brasil, distante das grandes massas, tornando dificílimos os levantes populares, os protestos, as marchas. Imaginem se a capital fosse ainda no Rio de Janeiro, que problemão não seria! Com os 2 milhões de favelados, a guerra civil entre polícia e traficantes nos morros, o imenso caudal de deserdados irados, que não cessariam de tentar atentados contra senadores ou tacar uns ovos no terno engomadinho do presidente, ainda que ele um dia tenha sido um operário...
* * * *
Viajei carregando meu violãozinho, que recentemente sofreu o duro baque de uma fratura exposta. Vinha ainda molhado de verniz, e o luthier me tinha recomendado que o deixasse sossegado num cantinho, mas eu desobedeci. Tinha curtido a sensação de andar por aí com instrumento nas costas; fiquei imaginando que as pessoas me julgariam importante, um músico pegando avião, e que talvez se sentissem quase impelidas a saber mais sobre quem eu era, para verem se valia a pena uma abordagem e um pedido de autógrafo, que depois pudesse ser gabado ou revendido. Claro que tal fantasia megalomaníaca não se concretizou e nenhum fã ensandecido veio tirar uma casquinha do celebérrimo guitarrista da Liga das Senhoras Católicas, que tava dando bobeira em Congonhas, em Brasília, em Goiânia, facinho de interpelar e tietar...
Como Marlon Brando, em The Fugitive Kind, fiz pose de quem vê na sua viola uma companheirona de vida, my life's companion, que é preciso carregar pra cima e pra baixo como um filho dileto, que me segue como uma sombra, formada pelo sol escaldante do rock and roll... E lembrei-me da fábula que Snakeskin, no filme do Lumet, conta sobre o bluebird, o pássaro azulado que não tem pernas, e que, dado sua impossibilidade de pousar, passa a vida inteirinha voando... Sempre achei lindamente poética e hippie a idéia desta ave que vive nas alturas, que dorme no vento, que quando se cansa e precisa dormir continua planando com as brisas, e cujo único pouso é o despencamento da morte...
E estavámos ali como crianças, tão absorvidas na brincadeira que esquecem-se que os adultos criaram relógios e despertadores, calendários e cronogramas, horários e rigores, pontualidades e cronômetros! Deslizamos afora do tempo que para nós programaram, o tempo culturalmente inculcado, e que nos tranca em sua jaula, quando temos vocação para algo maior: a eternidade. E falo, não de imortalidade, nem de vitória sobre a morte, nem de viver para sempre. Falo da eternidade como a verdadeira experiência concreta do tempo: pousar no absoluto presente, e notar que ele é eterno. E eternamente renovável, sempre rebrilhando de novo, já que a eternidade não exclue a mudança nem a “eterna novidade do mundo” de que nos fala Pessoa. Ali, perdemos todas as preocupações - e há sensação mais doce, enquanto dura? O deleite era tão absorvente que literalmente perdemos a noção da hora. Há nisso estupidez, de quem tropeça nas pedras que os homens práticos tão fácil evitam e pulam, ou há a sabedoria de quem sabe escapar da jaula e viver na terra alguns pequenos êxtases?
E se um dia nos perguntarem de que tipo era o nosso amor, podemos dizer: “desses que nos faz perder o avião”...
Postado por Unknown às 08:48 |
quinta-feira, 10 de setembro de 2009
:: presidiários da ternura ::
Postado por Unknown às 10:46 |
sexta-feira, 28 de agosto de 2009
:: one more silly love song! :D ::
With silly love songs.
What's wrong with that?
I'd like to know!
Cause here I go again..."
PAUL MCCARTNEY
* * * * *
Spinoza fala, do amor, que é uma alegria que surge acompanhada da idéia de sua causa. Em outras palavras: amo aquele que reconheço como causa de minha alegria. Não é que amemos todos aqueles que nos causam alegria: há os palhaços e os piadistas que nos divertem, mas que nem por isso conquistam nosso afeto; e há os contentes que são ingratos, e contentam-se sem agradecer à fonte deste contentamento de que gozam.
Quando a fonte de nosso bem é uma outra existência, que nos é causa de alívio, doçura e alegria, e quando reconhecemos contentes a benfeitoria que nos é feita por outra criatura, isso é o que chamamos de amor. De qualquer modo, se enlaçam nesta belíssima idéia, cheia de doce sabedoria, os dedos do amor e da alegria, da gratidão e do contentamento - o que já é um avanço vastíssimo em comparação com outras concepções do amor bastante catastrofistas. Cada vez mais, sou muito mais Spinoza que Werther!
Por que não partir daí, desse tijolinho adorável e tão sólido, para construir o edifício da filosofia, o edifício da vida? Sou mais a alegria que o cogito, tio Dêcartê que me perdoe! E a alegria não tem nada de “fenômeno idealista”, "ilusão ideológica" ou "superstição religiosa", vocês hão de convir: qualquer criança nos prova sua existência, não necessitando nós, pois, de filósofos ou cientistas que nos provem que existe a alegria. Acho até que o melhor argumento contra os Schopenhauers e Mallarmés da vida, com suas sombrias teorias e poesias, continua sendo uma careta, uma cabriola, um beijo na boca... (Mas não na deles, cruz credo!)
Alegria há.
Quanto à “felicidade”, há controvérsias; talvez seja ela só um sonho que tivemos? um construto imaginário? um pretexto de marketing? um conto-de-fada para os pseudo-“amadurecidos”? Sobre ela pode-se discutir, se existe ou foi inventada, se deve-se persegui-la ou desencanar... mas sobre a existência, ainda que eventual, ainda que doloridamente efêmera, das alegrias, não há louco que negue.
Até os deprimidos reconhecem: alegria existe, e se estamos doentes é por não podermos nos nutrir dela! Quase todo mundo sabe, ainda que intuitivamente, que falta de alegria pode deixar um ser humano doente. Me surpreende, por exemplo, o fato da Psicanálise não usar quase nunca este vocabulário, o do “alegre” e do “triste”, como se considerasse isso uma pueril polarização, digna da infância teórica da humanidade, já aniquilada pelas dinâmicas tão mais complexas e dialéticas do id, do ego e do super-ego, e já superada após os combates homéricos entre os conceitos de Natureza e a Civilização, Eros e Tânatos!
Esquecem-se de deixar registrada essa banalidade, que fica implícita em quase todas as descrições de caso de psicopatologia: as pessoas ficam doentes por falta de alegria! Sei que sou um psicológo tosquérrimo, mas meu diagnóstico das neuroses com que me deparo é quase sempre o mesmo: as pessoas adoecem por não conseguirem gozar a vida, porque não acham meios para satisfazer suas libidos, porque as alegrias ficam soterradas debaixo de repressões, de culpas, de medos... Me arriscaria até a sugerir isto, misturando Reich com Spinoza: só há saúde na alegria; e só há felicidade no amor.
A queda da alegria, sendo queda da nossa potência de existir, já é uma espécie de doença que nos acomete. “Nunca” conseguir ascender às nuvens da alegria, como nos casos mais graves de melancolia crônica, de deprê absoluta, é uma situação extraordinariamente adoecente. Por isso a depressão é uma doença, e que está sempre a rondar, como um defunto insepulto, os pesadelos dos tristes. Nós odiamos a tristeza pois ela nos adoece, ainda que não chamemos seu efeito, costumeiramente, pelo devido nome. É chaga, ferida, atentado contra a vida!
Não digo que não possamos aprender nada das lágrimas! Pelo contrário: são professoras que respeito, e mais que muitas outras, nesta insana escola da vida (que é tão avara das soluções de seus enigmas!). Muita crosta sobre os olhos, barrando a vista das retinas, desfaz-se liquidada pelo líquido dos tristes. Talvez toque-se mais de perto na pele quente da vida, quando se chora: pele que pulsa, pele que treme.
“Os dias que me vejo só são dias que me encontro mais”, canta o Amarante, ecoando muitos sábios e místicos orientais que rimavam solidão com auto-conhecimento... Creio, sim, que isso seja possível: um “isolamento” que seja “frutífero”, que seja uma jornada de introspecção realizada com ousadia e aventurosidade, que seja amadurecimento e treinamento antes das grandes batalhas... Como Zaratustra na montanha, Cristo no deserto, Buda debaixo da árvore, Gramsci no cativeiro, e Leary e Kesey na floresta do ácido...
(Cê vê que BATEU quando o nêgo, que vinha falando de Spinoza, todo chicoso, descamba pra falar sobre a “floresta do ácido”... ----- WHAT-DA-FUCK?!)
A alegria existe. E existem seres humanos capazes de nos alegrarem. E somos (alguns de nós, ao menos) capazes de reconhecer fora de nós a fonte deste bem. Portanto, o amor existe, se o fizermos existir, e o fato disso ser simples e trivial não faz com que seja menos verdadeiro. O amor é um vôo possível; nada o impossibilita, de modo absoluto; todas as pedras, obstáculos e muros, todos os nossos egoísmos, couraças, neuroses e automatismos, são contrários a ele - mas nada disso é intransponível. Ao contrário! Como canta Eddie Vedder, numa das músicas do Pearl Jam de letra mais sábia dentre todas por eles já compostas, “once you hold the hand of love it's all surmountable” (“Love Boat Captain”).
Procurar a felicidade na solidão é como tatear no escuro por uma chave que nem está no quarto. Se há felicidade, só pode existir como felicidade compartilhada. É o grande “lema” que se marcou em mim do Na Natureza Selvagem, filminho que mon petit pauvre coeur sentiu como tão inspirador e revigorante: “HAPPINESS IS ONLY TRUE WHEN SHARED.” É aí que os dois grandes mistérios mostram-se conexos e inseparáveis: o amor e a felicidade. Como viver um sem o outro? Como ascender às sonhadas nuvens da felicidade se não for pelas asas do amor? Que outra escada, meus caros? Que outra escada?!
O dinheiro? O poder? A fama? O pensamento? A criação? Mas tudo que um ser humano pode fazer só é capaz de adquirir valor numa esfera humana. Só é possível valer em outro coração. O amor é a única fonte de valor em todo o Universo.
A Monalisa não vale nada para os macacos, e os cachorros mijariam sem pudor por toda a Capela Sistina. Toquem a Nova Sinfonia para um gato, e ele fará cara de quem não liga a mínima pr'esse tal de Beethoven. O planeta Terra jamais aplaudiu e ovacionou qualquer das civilizações que surgiram sobre o seu lombo, nem jamais derrubou lágrima ou suspiro de alívio ao ver um grande Império cair em ruínas ou uma grande revolução pondo do avesso um regime ultrapassado. E leiam vocês para os céus as poesias belíssimas que já escreveram os humanos sobre o pôr-do-Sol e as estrelas, e verão que nada perturba o infinito silêncio das esferas...
O único sentido da vida, o único remédio contra a mais absoluta absurdidade, está no amor que nutrimos e que nos nutre pelos outros precários vivos com quem viajamos juntos neste louco, louco palco rodopiante!...
Postado por Unknown às 18:58 |
sexta-feira, 14 de agosto de 2009
:: blasfêmias de um filósofo mirim ::
Amar a Deus é triste pois Ele jamais corresponde. Ele jamais responde, jamais dialoga, jamais beija ou abraça, jamais oferece um carinho ou um ninho... Digamos com simplicidade: amar a Deus é triste pois Deus não existe. Ah, amiguinhos, não sabem vocês o quanto é mais gostoso amar o que existe?
Abandonar Deus, pois, ao contrário do que pensam alguns beatos angustiados, apavorados e doloridos, não significa de modo algum abandonar a felicidade e a luta; trata-se, muito mais, de abandonar a cegueira, a ilusão, a superstição, a escravidão mental e corporal, a indignidade que é viver a crer em contos-de-fada! Abrindo-se, depois dos delírios, a uma vida real que carrega em si o amor como possibilidade, e uma a ser agarrada com a fé de que é o que mais vale sobre esta Terra por Deus abandonada.
“...no cristianismo foi o amor maculado pela fé, não foi concebido livre, verdadeiramente. Um amor limitado pela fé é um amor ilegítimo. O amor não conhece outra lei a não ser a si mesmo; ele é divino por si mesmo; ele não necessita da sacralidade da fé; ele só pode ser fundamentado por si mesmo. O amor atado à fé é um amor estreito, falso, contraditório no conceito do amor, i.é, a si mesmo; um amor pseudo-sagrado, pois ele oculta em si o ódio da fé; ele só é bom enquanto a fé não for atingida.” (...) “...o amor só é idêntico à razão, mas não à fé; pois como a razão, é o amor de natureza mais livre, mais universal, mas a fé de natureza mais estreita, mais limitada. Somente onde existe a razão impera o amor geral; a razão não é ela mesma nada mais que o amor universal. Foi a fé que descobriu o inferno, não o amor, não a razão. Para o amor é o inferno um horror, para a razão um absurdo.” (...)“O amor ao ser humano não pode ser derivado, ele deve ser primitivo. Só então torna-se o amor um poder verdadeiro, sagrado, seguro. Se a essência do homem é a mais elevada essência do homem, então também praticamente deve ser a mais elevada e primeira lei o amor do homem pelo homem.” --- FEUERBACH, A Essência do Cristianismo
Não gosto dos que, depois de terem inventado Deus, inventaram a lorota subsequente de que o amor teria sido uma invenção Dele! A religião, esta invenção humana que postula que ela mesma não foi inventada pela humanidade, mas nos foi dada como graça e dádiva divinas, quer conspurcar com seus dedinhos também ele, o amor, que é tão óbvia e explicitamente um FRUTO DA CARNE! Não aceito nem acredito que Deus tenha inventado o amor. Isso simplesmente pois Deus não inventou nada! Direi uma bobagem: o inventor, para inventar, precisa primeiro existir. E essa primeira coisa, bem... nem ela Deus conseguiu fazer. Pobrezinho!
O amor é uma demanda por um bem real, enquanto que a religião é uma súplica sempre vã por bens imaginários e inexistentes (implorar por uma alma imortal é um ótimo exemplo do que significa desejar o impossível). O amor que se pede a outra criatura, pode-se recebê-lo; mas de Deus tudo que nos chega são silêncios e indiferenças, adiamentos e vagas promessas (que nos faz não Ele, o Eternamente Silente, mas os seus supostos "porta-vozes na Terra". O amor, sendo um fruto da terra, sendo um filho do coração, sendo uma flor do jardim terrestre, pode perfumar os ares e alegrar os campos; mas Deus, sempre tão longínquo e escondente, permanece o interlocutor de uma súplica nunca respondida, como um gênio da lâmpada que se recusa a realizar desejos, por mais que milhões de sedentos aladins lhe implorem...
É bom amar pois o amor pode nos curar, e nos cura, de fato, quando vem; já Deus é um remédio falso que não impede as chagas de prosseguirem sangrando, não impede a inquietude e o medo de continuarem nos atormentando, não impede a tortura da esperança e os pavores do inferno de nos assombrarem o sono! Amar é melhor pois o amor é real, enquanto que Deus não passa de névoa, fantasma e alucinação.
Amar a Deus é que deveria ser pecado!
Pois amar a Deus é um crime, se aquele que O faz esquece-se de amar as criaturas humanas e fica preso no seu solipsismozinho delirante. Ficar disparando amor para as nuvens não difere muito de tacar amor na privada e dar descarga. Amor é pra gente distribuir aqui na Terra, onde dele mais se necessita! Deus, se existir, já possui o suficiente. Se não existir, o que é decerto o mais provável, então não deveríamos sacrificar nosso melhor em nome de nada.
Postado por Unknown às 15:12 |