Queria que ela tivesse escrito estes três pensando em mim:
não morro de amores
por pessoas sem mistério
quando se é muito transparente
muito risonho e educado
é raro ser levado a sério
prefiro os mais silenciosos
os que abrem a boca de menos
os mais serenos e mais perigosos
aqueles que ninguém define
e que sempre analisam os fatos
por um novo enfoque
prefiro os que têm estoque
aos que deixam tudo à mostra na vitrine
* * * * *
ele é o homem mais moderno que conheço
não usa brinco, nem rabo-de-cavalo, nem as gírias da moda
é absolutamente tranquilo e seguro até da própria insegurança
fala pouco, é afetuoso, discreto
não tem músculos rasgando a camisa, realmente não
mas eu também não tenho uma cinturinha de vespa
é o homem que melhor conseguiu me enxergar
e isso faz toda a diferença
ele é tão seguro, tão forte, tão amante do mistério
que prefere me adivinhar
aplaude meus erros, perdoa meus dias de mau-humor
ri dos meus deslizes
crê em mim, me ama, me acalma
é o homem que me deu liberdade
de ser como eu sou, e eu não sou tão boa
sou maníaca, voraz, fácil, difícil
eu mesma, às vezes
não tolero a minha presença
ele me faz massagens, abre um vinho
eu digo que não quero beber, e ele
- bebe, relaxa!
eu digo que não sei o que fazer
e ele sorri como quem sabe do que eu sou capaz
ele é honesto, bonito
e eu sou uma mulher inquieta, ansiosa
divertida, secreta
ele é calado, menino
e eu sou ácida, perversa
ele é silêncio, eu sou notícia
essas coisas combinam
mais do que você pensa
* * * *
um hiato, assim, troço oco,
um buraco no meio, um pedaço sobrando,
assim, como uma parte faltando,
um recuo, uma ferida aberta,
assim como uma trincheira, uma fatia roubada,
um mergulho no nada,
assim, um vácuo, um aborto forçado,
um porta-retrato vazio, é assim
mais ou menos
que fica um coração depois que seu dono partiu.
* * * *
Esses dois eu gostaria de ter escrito:
em altos brados
berro
não deixo entrar ninguém
nem branco, nem abade
nem com a barba por fazer
bato se preciso
mas me faço obedecer
bruta ou borralheira
absurda ou abissal
não abdico dos meus brios
não permito
que entrem na minha gruta
e lá descubram o meu vazio
* * * * *
de mim, que tanto falam
* * * * *
de mim, que tanto falam
quero que reste
o que calei
que tanto rezam por mim
quero que fique
o que pequei
de mim, que tanto sabem
quero que saibam
que não sei.
* * * * *
Já esse aqui é uma hilária e deliciosa auto-confissão feminina e um perfeito retrato das mulheres, que são comprovadamente as criaturas mais incompreensíveis do Universo conhecido (eu, pelo menos, nunca entendi muito):
se ele nunca falta ao trabalho
queremos um homem que jogue sinuca
se ele nos ama acima de tudo
queremos um homem que atraia piranhas
se ele é limpo, bonito e cheiroso
queremos um homem com barba na cara
se ele traz flores, bombons e diamantes
queremos um homem que suma três dias
se ele chama por outra na cama
queremos um homem que decore poesia
se ele cospe na pia e come com os dedos
queremos um homem com brasão de família
se ele aos domingos aposta em cavalos
queremos um homem de gravata
se ele bate o telefone na cara
queremos um homem educado e comovido
toda mulher
é mulher de bandido
* * * * *
é quarto-crescente e já venero a lua cheia
o disco nem foi lançado e já sei a letra de cor
o sol ainda não nasceu e já estou estendida na areia
fuzilem-me, não há nada em que eu não creia.
(MARTHA MEDEIROS. De Cara Lavada [1995])
* * * * *
Também li este aqui, ó:
"Conheces a cabra-cega dos corações miseráveis?"
. . .
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