sábado, 6 de janeiro de 2007



Praia de Araçatiba, Ilha Grande, Angra Dos Reis/RJ
lugar do meu Reveillon (e sim, a foto ENGANA!)

(OBS: escrevi esse lance aí embaixo mais pra mim mesmo, pra registrar algumas coisas sobre minha viagem de fim-de-ano para relembrar com detalhes daqui a um tempo, mas achei que não havia nada de mal em publicar aqui também. Mas já vou avisando: é um texto bem Querido Diário... ou uma daquelas redações ginasiais: "Minhas Férias...")

A viagem foi uma Aventura de verdade, perigosa e selvagem como tem que ser (por que senão não tem graça!), um lance meio Lost: jovens perdidos na selva, longe da civilização e do luxo burguês, metendo o pé na lama, mochilão nas costas, re-aprendendo a viver com simplicidade...

Nosso destino: Ilha Grande, que fica a 1 hora de barco de Angra dos Reis, sendo considerada parte desse município carioca, e que é famosa por um antigo presídio (uma espécie de Alcatraz brasileira), hoje em ruínas, que costumava abrigar principalmente presos políticos (o mais famoso deles: Graciliano Ramos, que escreveu lá suas Memórias do Cárcere) e pelas dúzias de praias, separadas por morros, que formam o principal pólo de atração turística.

Meus 4 companheiros de viagem, todos simpaticíssimos sociólogos USPianos, já tinham passado um Reveillon em Ilha Grande uns dois ou três anos atrás, mas naquela ocasião tinham ficado parados em Aventureiros, uma das praias mais famosas e agitadinhas da ilha – o point jovem de Ilha Grande. Dessa vez a idéia era mais ambiciosa e mais pirada: queriam dar a volta inteira na ilha, a pé, saindo de Abraão e indo para Oeste, num percurso que os caminhantes de trilhas mais vigorosos fazem em 7 dias de viagem frenética.

Me contaram a história de um jeito que eu não me preocupei tanto. Diziam que era fácil conseguir camping, que todo vilarejo tinha lugar que vendia PF e marmita, que um monte de gente fazia o mesmo trajeto, que era sussa... Além disso, a gente estaria levando um monte de coisas para garantir nossa sobrevivência: uma pá de produtos alimentícios (dúzias de barras de Nutry, café com leite em pó, potes de Nutella, retangulinhos de geléia, cilindros de salame, feijoadas enlatadas, purês de batatas instantâneo, pacotes de macarrão e molhos de tomate, atum em lata, bolachas Maisena...), o fogareiro com botijãozinho de gás, o repelente, o bronzeador e os band-aids, a máscara de mergulho e o snorkel, o baralho e as garrafas de pinga... - só itens de PRIMEIRA NECESSIDADE :P.

Cada um de nós presenteou sua pobre coluna com um mochilão de uns 8kg de peso, recheado com uma mistura liquidificada de comida, roupas e partes de barraca, e com esse trambolhão nas costas nos metemos a pegar umas trilhas que, como eu logo iria descobrir, eram FODIDAS.

O primeiro dia da viagem foi de longe o mais traumático e assustador. Acho que nunca na minha vida me senti tão cansado, exausto e com saudade da minha vidinha sedentária quanto naquele dia. A coisa foi assim: depois de umas boas 8 horas de viagem Sampa –> Angra dos Reis, feita na madrugada (e durante a qual eu dormi mal e porcamente, acordando uma dúzia de vezes a cada manobra pirada do nosso motorista psicopata), chegamos à Angra (cidadezinha feia que dói) antes do amanhecer. Nos mandamos direto pro cais pra embarcar já no próximo barco pra Ilha Grande, que saía às 6h30 da manhã. Caindo de sono e com os olhos meio remelentos, me sentei ali no chão do barco enquanto ele deslizava sobre as águas, e lá pelas 8 da manhã chegávamos em Abraão, ponto de partida de nossa aventura.

A galera não queria perder tempo. A caminhada tinha que começar imediatamente, logo após um café da manhã reforçado, antes que o Sol começasse a queimar forte demais e nos derretesse feito sorvete. Eu tava morrendo de medo de entrar em colapso debaixo do peso daquela mochila, até porque eu tinha certeza que eu era o que tava mais mau preparado fisicamente para essa jornada e que provavelmente seria aquele chatão que sempre fica implorando: “Gente, vamos dar uma paradinha, né?” Mas fomo-nos...


(Mapa de Ilha Grande. Tá vendo a setona vermelha em Abraão?
Saímos de lá, em direção à Oeste. O máximo que deu pra ir sem morrer de exaustão foi Mataris... )

Nos informaram que a caminhada de Abrãão até Saco do Céu demorava 1h40. Ouvimos isso e dissemos: “bah, então é bico!” Depois descobrimos que não se deve confiar nos informantes de Ilha Grande. O tempo que eles dizem deve ser sempre multiplicado por 2. E, se por acaso você está com uma mochila de 10kg nas costas, deve ser multiplicado por 4. Resultado: andamos, andamos e andamos, por ladeiras e descidas e planos, entrando em morros e mais morros, horas e horas na sequência, e nunca que chegava a desgraça do Saco do Céu, que já nos parecia a Terra Prometida e nunca alcançada... E NADA de camping! E NADA de PF! E NADA de civilização! Só trilha e mais trilha e mais trilha, tudo enlameado, barrento, deslizante...

Descobrimos no caminho umas praínhas bacanas – a da Feiticeira, por exemplo, onde descansamos por umas 2 horas e demos uns bons mergulhos relaxantes, era muito massa... – mas a fadiga da viagem preocupava. Deu umas TRÊS DA TARDE e a gente ainda estava caminhando, todo mundo já meio grogue e zumbizão, quase desmaiando, com as pilhas fracas, e num surgia um único camping no nosso caminho pra gente se abandonar a um merecidíssimo descanso.

Eu já estava imaginando o pior: a gente ali, largado no meio do nada, naquela desertidão completa, armando barraca no meio duma praia qualquer, tendo que dormir com o medo de sermos atacados por alguns malucos nativos (aborígenes canibais!!!) ou de sermos expulsos pela Guarda Civil por acampamento em lugar ilegal. Sei que paramos uma hora lá para comer alguma coisa – mó fineza: umas fatias de salame, que não mataram a fome de ninguém, com umas bolachas Maisena molhadas em Nutella como sobremesa – e aí apareceu um tiozão, carioca das Laranjeiras, pra papear com a gente, informando sobre um certo camping do Moisés, que ficava ali por perto. Respirei aliviado.

Esse carioca das Laranjeiras foi o primeiro dos muitos “figuras” que a gente encontrou pela viagem... ficou ali contando histórias escabrosas sobre o submundo de Ilha Grande, comentando sobre o monte de cadáveres que já viu boiando na baía, com “peixe entrando e saindo do cara”... E falava sério, querendo assustar de verdade esses paulistas bobões perdidos no meio do nada...

Com ele tivemos também as primeiras lições sócio-políticas sobre a realidade de Ilha Grande, que vem sofrendo um lamentável processo de privatização que só acentua a desigualdade social já gritante que vigora por lá. Muitas praias, hoje em dia, já são inteiramente dominadas por mansões de ricaços e por pousadas e hotéis caríssimos para a burguesia. A praia de Freguesia de Santana, por exemplo, uma das mais bem afamadas da ilha, está sob o comando de um certo ricão que está praticamente gradeando e vedando o acesso à sua “propriedade”.

Daqui a pouco, Ilha Grande vai se tornar uma espécie de Parque de Diversões da Alta Burguesia carioca, dominado por meia dúzia de milionários. E a discrepância social é gritante, já que, em muitos de seus vilarejos, Ilha Grande tem uma população muito pobre e não-civilizada, principalmente de pequenos pescadores - Saco do Céu e Mataris, por exemplo, são vilarejos que parecem favelinhas: imundos, decadentes, sem luxo algum... sem falar que outros vilarejos, como Aventureiros, nem tem luz elétrica ainda...

Daqui a alguns anos, como pudemos constatar, o tipo de viagem que a gente tentou fazer vai se tornar impossível, já que os campings estão sendo extintos, as trilhas estão cada vez menos frequentadas e os turistas parecem estar sendo desencorajados. Um pouco, com certeza, é por preocupações perfeitamente aceitáveis com a preservação ambiental, já que turista costuma ser uma criatura meio destrutiva; mas um pouco parece ser, também, pelo desejo dos ricões de expulsarem todas as outras classes de lá e comandarem toda a Ilha Grande com suas mansões, suas lanchas e seus jet-skis...

Semi-mortos, nesse primeiro dia, conseguimos nos arrastar até o camping do Moisés para descansar após um primeiro dia que nos deixou pregadíssimos. Fomos muito bem recebidos por outro “figura”, o Dark, um negrinho simpático e com cara de louco de hospício, que meio que cuidava o camping para o dono, seu Moisés, que tinha síndrome do pânico e num era muito de tratar com gente estranha (sem zoeira – parece enredo de filme de terror, mas é tudo verdade...). Nossa sorte é que a senhora esposa do Moisés, patroa do Dark, nos ofereceu, por 10 pilas por pessoa, um prodigioso PF. Nunca comi tanto na minha vida.

Dois dias parados na Praia de Fora, acampados no camping do Moisés, quase sozinhos, retomando energias para retomar viagem depois. No primeiro dia de camping, depois que jogamos um truco e depois de eu ter apresentado ao povo o famoso jogo de baralho para bebuns popularmente conhecido como Sueca, alguém sugeriu a loucura: “vamos dormir fora da barraca, todo mundo?” Todo mundo já estava começando a ficar breaco. Um litro de pinga boazinha já foi inteira nessa primeira noite, e mais um pouquinho do começo da segunda garrafa (e só tínhamos três para a viagem...).

Eu achei que era sério o projeto de dormir ao relento, debaixo das árvores, num saco de dormir jogado na areia, ouvindo o marulhar ali pertinho, a melhor das canções de ninar... Mas o C. fugiu rapidinho pra dentro da barraca, assim que pensou que o resto do povo já tinha pegado no sono – amarelou! O cara instiga, dá a idéia e depois sai de mansinho... Ficamos eu, o Ca. bebum e a P. ali, largados no chão, parecendo loucos. Ainda demorei pra dormir. Eu fiquei ali, só curtindo minha loucura, chapado de pinga e de outras coisas também, olhando para o céu sem estrelas através dos galhos da árvorezona sobre nossas barracas, e pensando que a viagem já tinha valido a pena só por isso, só por essa memória que eu poderia guardar para sempre desse dia bizarro em que sofri mais que Jesus Cristo carregando a cruz, comi salame com Nutella e dormi ao relento...

Depois ainda rolou um passeio de barco com um outro figura que encontramos em Saco do Céu, e que estava rebelado contra as porquices da população local, até que finalmente encaramos mais uma caminhada monstro, saindo de Saco do Céu, parando em Japaris para umas pizzas brotinhos, e depois seguindo direto para Freguesia de Santana, Bananal e, finalmente, Mataris, uma praia horrenda, onde encontramos nosso segundo camping. Acreditem: é uma caminhada absolutamente GIGANTESCA!

* * * * *

No fundo eu curti esses esforços físicos monstruosos, apesar do cansaço, da dor nas costas e no pescoço e das noites mal-dormidas. Eu não acreditava que o meu corpo tinha tamanha capacidade de resistência, ainda mais estando assim, tão mau acostumado a maratonas do tipo... Passado o medo inicial de que eu fosse desmaiar no meio da mata e que não conseguiria completar a jornada, tendo que ser resgatado por helicóptero ou por maca de ambulância, às beiras da morte, comecei a me sentir quase orgulhoso de mim mesmo pela minha audácia e resistência.

Entrei na onda dos meus companheiros sociólogos e fiquei amaldiçoando as férias burguesas cheias de conforto e segurança, achando que não havia nada mais imbecil do que pagar um hotelzinho e ficar ali, na beira da piscina, tostando feito frango assado, sendo servido por garçonetes submissas, tudo seguro e garantido... Muito mais legal era fazer como fizemos: botar um mochilão nas costas e sair andando por aí, desbravando as matas, sujando a roupa e os tênis de lama, conhecendo a gente comum do lugar (e descobrindo figuras humanas inesquecíveis entre a “ralé”), banhando cada centímetro do corpo com suor, tomando tombos violentos e descendo as ladeiras de bunda no chão, feito escorregador...

Teve horas que eu me senti carregando uma cruz e achando que Jesus Cristo era fichinha – afinal, o cara só carregou o lance lá por algumas horas, enquanto que nós, mártires muito melhores!, fizemos por vários dias. Outras horas me senti na Guerra do Vietnã, penetrando em matas selvagens onde poderiam muito bem estar escondidos uns vietcongues sanguinários. Também me senti como um personagem de Lost perdido na selva, em busca do caminho de volta pra praia...

Deu até pra filosofar e tirar lições legais da experiência... :) Por exemplo: pode parecer a coisa mais imbecil e sem sentido do mundo se expor voluntariamente a uma quantidade tão imensa de sofrimento físico, aparentemente sem recompensa visivel. Será que somos masoquistas? Se fosse alguma competição ou esporte, tudo bem: a busca pela glória explicaria a nossa entrega ao martírio... Mas não era. Então como entender que cinco pirados resolvam fazer sofridíssimas caminhadas selvagens, sem nenhum prêmio esperando no fim, sem salvas de palmas esperando na linha de chegada? Mas tem vários fatores que fazem uma viagem desse tipo valer muito a pena, apesar de toda a dor física envolvida.

Por exemplo: os prazeres físicos são muitíssimo mais intensos depois de um prolongado período de privação. Nunca entrei no mar com tanto prazer e me sentindo tão deliciado quanto depois de ter andado na mata por umas três horas, suado, imundo e exausto. Nunca comi um prato-feito com tanta voracidade e achando tão delicioso o arroz-e-feijão mais fuleiro do que no fim de um dia de martírio. Nunca me senti tão bem por não ter nada pendurado nas costas como me sentia depois de soltar o mochilão depois de horas e horas carregando o troço no lombo.

Enfim: vale muito a pena suportar esses sofrimentos todos porque o prazer, depois, é muito maior e melhor, muito mais puro e inesquecível. É o óbvio: você nunca come com tanto prazer quanto como está esfomeado, de modo que suportar o sofrimento de ver a fome crescer é uma boa idéia para ter o prazer imenso de extinguir esse enorme desejo. É a mesma coisa quando a gente fica segurando o xixi ou o cocô, só pra depois sentir um prazer maior ao se aliviar. E isso não é piada não. Titio Freud mesmo dizia que uma das primeiras experiências auto-eróticas das criancinhas é justamente segurar o cocô para gozar mais depois com o prazeroso ato de cagar. E na vida é assim: se você não quer o sofrimento, também não vai ter o prazer. "The pleasure is not the same without the pain..." Você tem que aceitar e abraças as duas coisas - uma não existe sem a outra.

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Depois da caminhada monstro até Mataris, todo mundo meio que desencanou do projeto louco de cruzar a ilha a pé e se abandonou ao cansaço. No dia seguinte, nos rendemos e pegamos um barco direto pra Açaratiba, o lugar onde passaríamos o Reveillon, a mais legal das praias de todas as que conheci em Ilha Grande...

O Sol não deu muito as caras durante a viagem toda e voltei pra Santo André tão branquelo quanto era. No 31 de Dezembro, aliás, choveu o dia inteiro: uma garoinha enjoada, interminável, de horas e horas, que nos obrigou a passar o dia inteiro num barzinho de beira de praia, bebendo cerveja desde as 11 da manhã e jogando meia-dúzia de jogos de baralho – truco, buraco, piff-paff, detetive, duvido... Mais à noite, a última garrafa de pinga, guardada para a ocasião, foi devidamente esvaziada para a virada – que se passou debaixo de garoa, nas areias de Araçatiba, quase sem fogos. Foi massa. Mas eu tava tão bêbado e tão com sono e tão com medo de pegar pneumonia depois de tomar tanta chuva na praia, que fugi logo pra barraca e lá pela uma da manhã do ano novo já tava roncando.

No dia seguinte, era hora de vazar. E é claro que aconteceu o previsível: num rolava busão de Angra dos Reis pra São Paulo no primeiro dia de 2007: tudo esgotado. Então tive que ir até Barra Mansa, esperar horas e horas na rodô de lá, para só então subir no Cometa pra Sampa. Resultado: um dia inteiro viajando. Saí de Iha Grande às 6h30 da manhã e cheguei em Santo André às 10 da noite. Querendo dormir umas 30 horas seguidas.