terça-feira, 30 de janeiro de 2007

Ó que biito:

"Somos pobres do outro; como se o sangue das veias não nos bastasse e fosse urgente trocá-lo, numa transfusão quente e viva, de coração para coração. Precisamos do outro, para o fazer comum, a obra, sem dúvida alguma; mas muito mais para o uso comum da palavra e do trigo. Precisamos do outro, para construir cidades e para ouvir um disco. Para ler livros escritos, e para ter leitores dos livros que escrevemos. Para tudo; e para nada. Para andar no mesmo caminho, à toa; para estar ao nosso lado em silêncio. Pelo calor da proximidade, pelo conforto da compreensão. Precisamos da esmola do outro; da esmola viva, dele mesmo, como é, outro e próximo.


Quando vamos andando nas ruas, no meio da acabrunhante solidão das ruas, e vemos surgir de repente entre ombros e cabeças alheias a velha face conhecida, a boa face amiga, o tempo pára e nosso sangue se aquece. É bom ver o rosto do amigo; já não estamos sós. O antigo susto que desde a infância nos persegue, medo de escuro e de solidão, se desfaz quando encontramos o amigo.

Somos pobres, fundamentalmente pobres, de carne e de espírito. Pobres como as criancinhas que morreriam de fome e de medo, se o mundo não fosse para elas um jardim cheio de mãos.

O adolescente, o antiinfantil, por ter crescido um palmo em um ano, se gloria de ser um obelisco solitário perambulando num deserto. Sua grandeza e sua virilidade consistem em andar só, em aprumar-se, em bastar-se. Repugnam-lhe as mãos que o amparam porque se completa com sua própria mão. Muita gente fica a vida inteira nessa idade, encanece numa adolescência orgulhosa, falando alto que não precisa de muletas e baixo, dentro do peito, carregando a obsessão do suicídio. Esse não precisa do outro, de ninguém, porque todo o cosmos obedecerá à dose de lisol ou ao nó de corda preparado na solidão. É o mais livre dos homens, o mais independente, autor de seus próprios dias, tutor de todo o universo.


Bendita seja a nossa pobreza, e benditos os ombros que encontramos para nos servir de muleta!"

(GUSTAVO CORÇÃO, A Descoberta do Outro)