quarta-feira, 26 de setembro de 2007

:: um trecho do mestre... ::


“O Bispo de Digne, para acrescentarmos um pormenor que os jornais omitiram, quando morreu estava cego há já alguns anos, e assim mesmo contente em sua cegueira, tendo a irmã a seu lado.

Digamos de passagem que ser cego e ser amado é, com efeito, sobre esta terra, onde nada é completo, uma das formas mais excepcionalmente estranhas de felicidade. Ter continuamente ao nosso lado uma mulher, uma filha, uma irmã, um ser encantador, que está ali porque temos necessidade dele e porque ele não nos pode abandonar, ter a certeza de que somos indispensáveis a quem nos é necessário, podermos medir-lhe incessantemente o afeto pelo tempo maior ou menos que passa ao nosso lado, e podermos dizer: - Se ele me dedica todo o seu tempo, é sinal de que tenho todo o seu coração -; ver o pensamento que se oculta naquele rosto, comprovar a fidelidade de um ser nesse eclipse total do mundo, perceber o roçagar de um vestido como se fora um bater de asas, ouvi-lo ir, vir, sair, voltar, falar, cantar e sonhar que somos um centro para onde convergem seus passos, suas palavras, suas canções, manifestar a cada instante a própria paixão, sentirmo-nos tanto mais fortes quanto mais doentes estamos, tornar-se, na escuridão e pela escuridão, o astro em torno do qual gravita esse anjo, muito poucas formas de felicidade podem igualar-se a essa. A suprema felicidade dessa existência é ter-se a certeza de ser amado; amado por si mesmo, ou melhor, a despeito de si mesmo; essa convicção tem-na o cego. Em tal angústia, ser atendido é ser acariciado. Falta-lhe alguma coisa? Não. Perder a vista e ter o amor não é o mesmo que estar cego. E qual amor! Amor inteiramente feito de virtude! Não existe cegueira onde existe certeza. A alma, às apalpadelas, procura outra e a encontra. E essa alma, encontrada e provada, é uma mulher. Uma mão nos sustenta: é a sua mão; uma boca roça de leve a nossa fronte: é a sua boca; ouvimos bem perto de nós uma respiração: é ela que está a nosso lado. Depender completamente dela, ser o objeto de seu culto até a mais sincera piedade, jamais sermos abandonados, ter tão doce fragilidade a nos socorrer, apoiarmo-nos a esse bordão seguro, tocar com nossas mãos a Providência e como que tomar em nossos braços esse Deus palpável, que êxtase! O coração, celeste flor obscura, sente-se possuído de um arrebatamento misterioso. Ninguém trocaria essa sombra por toda a claridade do mundo! (...) Sentimo-nos acariciados por uma alma. Não vemos nada, mas nos sentimos adorados. É um paraíso de trevas.”
(Os Miseráveis, Vol. 1, Cosac & Naify, pgs. 168-169)

(Ainda faltam umas 800 pagininhas pr'eu acabar o treco todo, mas meu queixo já bateu tão forte lá no chão de tanta admiração que já coloco esse monstro desse livro entre os 10 melhores que eu já li. O Victor Hugo é o máximo, povo! Desliguem esse computador aí JÁ! Tão fazendo o quê longe da biblioteca? =)