"Sofremos por ter tão pouca fome, embora nossa pequena fome já dê para sentirmos uma profunda falta do prazer que teríamos se fôssemos de fome maior. O leite a gente só bebe o quanto basta ao corpo, e da flor só vemos até onde vão os olhos e a sua saciedade rasa. (...) Ah, meu amor, não tenhas medo da carência: ela é o nosso destino maior. O amor é tão mais fatal do que eu havia pensado, o amor é tão inerente quanto a própria carência, e nós somos garantidos por uma necessidade que se renovará continuamente.” (...) “Para termos, falta-nos apenas precisar. Precisar é sempre o momento supremo. Assim como a mais arriscada alegria entre um homem e uma mulher vem quando a grandeza de precisar é tanta que se sente em agonia e espanto: sem ti eu não poderia viver. A revelação do amor é uma revelação da carência – bem-aventurados os pobres de espírito porque deles é o dilacerante reino da vida.” CLARICE LISPECTOR. A Paixão Segundo G.H.
(DDD. Maio de 2007. UNEDITED.)
Viver é carecer, amigos. Sem vergonha. Não nos choquemos com a intensidade de nosso precisar, com o tamanho do nosso penar, pois é só isso que nos leva a nos ligar. Viver é carecer com a fome, e lançar-se ao seio da mãe, ao assalto à geladeira, ao fruto no pomar, ao restaurante distante, à panela da vó cozinhando no fogão. Viver é carecer com a sede e ir atrás de bebedouro, correr até a garrafa de coca-cola, abrir a boca para o céu para sorver a chuva, molhar as mágoas no boteco. Viver é carecer de sentido e lançar-se a construir igrejas e divindades, utopias de mundos melhores e amores redentores, contos-de-fada onde vencem os bons e perecem os maus. Viver é carecer de calor e ir tiritando se esconder dentro da barraca, debaixo das cobertas, à frente da lareira ou no abraço do amigo – ou de qualquer um capaz de doar calor humano sem cobrar. Viver é carecer de memória e apelar para agendas, post-its, recados escritos na mão; é bater o click da máquina fotográfica para ter pra sempre cada momento, podendo revivê-lo muito depois de passado, e escrever e contar para manter vivo o que já morreu. Viver é carecer com a solidão e correr o mundo em busca de doces companhias, de uma roda onde conversar, de um ombro onde chorar, de um ouvido para quem confessar, de um rosto para contemplar, de um ninho onde repousar. Viver é carecer com a ânsia de expressar e ir correndo buscar refúgio, quando tudo entala na goela, no telefonema pra mãe ou no divã do analista, na conversa em turbilhão com o amigo ou no desabafo lançado ao papel. Viver é carecer de amor e sair por aí, a perambular, à procura da metade que nos vai completar, da pessoa que vai nossos peitos plenificar, da presença que todo penar estancará... Viver é carecer de vida e não querer render-se a ser somente um bicho que come, bebe, defeca, dorme e morre - e loucamente aspirar por uma Vida que seja com V maiúsculo, aventureira e intensa, imprevisível e plena, cheia de loopings e mergulhos no abismo, que dá tantos frios-na-barriga e vertigens quanto um passeio de montanha-russa. Viver é carecer daquilo que nos cure as feridas, dos band-aids que cicatrizem pequenos cortes, das pomadas que sarem grandes pancadas, dos gessos que endireitem ossos quebrados, dos beijos que nos colem os pedaços do coração partido. Viver é carecer daquilo que nos resigne a morrer e se agarrar assim a tantos e tantos sucedâneos da imortalidade, a obra imorredoura, o filho continuador, as gerações vindouras, a espécie sobrevivente, o paraíso no além-túmulo, na cotidiana reza para que continuemos tendo fé e que nada surja que nos desengane.
Não se acanhem de carecer, amigos, nem se orgulhem de poderem se auto-sustentar! Ninguém consegue não precisar. Viver é carecer e nossa vida é o zigue-zague que a carência traça no canvas do mundo, deixando no quadro um retrato das nossas mil faltas e do constante ir adiante da nossa busca. De encontro em desencontro, de rua sem saída em horizonte, através de suas mil formas, nos movemos sempre na direção que nos é indicada pela carência, pelo impulso do desejo, pela alavanca das necessidades. É a carência que traça o nosso destino, que constrói nossos amores, que nos impele a todos comes e bebes, que nos move para todas as lareiras e todos os abraços.
Bem-aventurados os pobres de espírito e de carne, pois deles é o dilacerante reino da vida!
(DDD. Maio de 2007. UNEDITED.)
Viver é carecer, amigos. Sem vergonha. Não nos choquemos com a intensidade de nosso precisar, com o tamanho do nosso penar, pois é só isso que nos leva a nos ligar. Viver é carecer com a fome, e lançar-se ao seio da mãe, ao assalto à geladeira, ao fruto no pomar, ao restaurante distante, à panela da vó cozinhando no fogão. Viver é carecer com a sede e ir atrás de bebedouro, correr até a garrafa de coca-cola, abrir a boca para o céu para sorver a chuva, molhar as mágoas no boteco. Viver é carecer de sentido e lançar-se a construir igrejas e divindades, utopias de mundos melhores e amores redentores, contos-de-fada onde vencem os bons e perecem os maus. Viver é carecer de calor e ir tiritando se esconder dentro da barraca, debaixo das cobertas, à frente da lareira ou no abraço do amigo – ou de qualquer um capaz de doar calor humano sem cobrar. Viver é carecer de memória e apelar para agendas, post-its, recados escritos na mão; é bater o click da máquina fotográfica para ter pra sempre cada momento, podendo revivê-lo muito depois de passado, e escrever e contar para manter vivo o que já morreu. Viver é carecer com a solidão e correr o mundo em busca de doces companhias, de uma roda onde conversar, de um ombro onde chorar, de um ouvido para quem confessar, de um rosto para contemplar, de um ninho onde repousar. Viver é carecer com a ânsia de expressar e ir correndo buscar refúgio, quando tudo entala na goela, no telefonema pra mãe ou no divã do analista, na conversa em turbilhão com o amigo ou no desabafo lançado ao papel. Viver é carecer de amor e sair por aí, a perambular, à procura da metade que nos vai completar, da pessoa que vai nossos peitos plenificar, da presença que todo penar estancará... Viver é carecer de vida e não querer render-se a ser somente um bicho que come, bebe, defeca, dorme e morre - e loucamente aspirar por uma Vida que seja com V maiúsculo, aventureira e intensa, imprevisível e plena, cheia de loopings e mergulhos no abismo, que dá tantos frios-na-barriga e vertigens quanto um passeio de montanha-russa. Viver é carecer daquilo que nos cure as feridas, dos band-aids que cicatrizem pequenos cortes, das pomadas que sarem grandes pancadas, dos gessos que endireitem ossos quebrados, dos beijos que nos colem os pedaços do coração partido. Viver é carecer daquilo que nos resigne a morrer e se agarrar assim a tantos e tantos sucedâneos da imortalidade, a obra imorredoura, o filho continuador, as gerações vindouras, a espécie sobrevivente, o paraíso no além-túmulo, na cotidiana reza para que continuemos tendo fé e que nada surja que nos desengane.
Não se acanhem de carecer, amigos, nem se orgulhem de poderem se auto-sustentar! Ninguém consegue não precisar. Viver é carecer e nossa vida é o zigue-zague que a carência traça no canvas do mundo, deixando no quadro um retrato das nossas mil faltas e do constante ir adiante da nossa busca. De encontro em desencontro, de rua sem saída em horizonte, através de suas mil formas, nos movemos sempre na direção que nos é indicada pela carência, pelo impulso do desejo, pela alavanca das necessidades. É a carência que traça o nosso destino, que constrói nossos amores, que nos impele a todos comes e bebes, que nos move para todas as lareiras e todos os abraços.
Bem-aventurados os pobres de espírito e de carne, pois deles é o dilacerante reino da vida!
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