quinta-feira, 25 de outubro de 2007


:: KURT COBAIN E EU ::

Mesmo que eu retire meu Nevermind da plateleira só raramente e consiga passar meses longe do Nirvana (e sem sentir crises de abstinência!), mesmo que a figura de Kurt Cobain acabe, em certos períodos, sendo quase esquecida como um trampo velho em algum porão da minha mente, toda a minha velha cobainmania fatalmente retorna, cedo ou tarde – porque faz anos que eu vivo sob o signo de Kurt Cobain.

Ele sempre esteve lá, nos pôsteres colados à parede do quarto; no Mais Pesado Que O Céu todo grifado, exposto na prateleira de livros; no meio da coleção de DVDs, sob diferentes encarnações: Last Days, Kurt & Courtney, All Apologies; nos power-chords decorados e postos em prática toda vez que a guitarra vinha para o meu colo; nos calafrios na espinha que sinto até hoje ao ouvir "Smells Like Teen Spirit"; em todos os momentos em que eu, querendo gritar de raiva, achava mais fácil pôr In Utero no som e apertar play... Mais do que um cara que fez algumas das músicas mais estupendamente empolgantes que já ouvi, Kurt Cobain é um cara que ajudou a moldar quem eu sou como poucos outros seres humanos. Pois são realmente poucos os artistas da música com quem eu sinto uma conexão tão íntima a ponto de poder dizer que são meus amigos de infância que nunca me conheceram, meus irmãos de espírito que nunca vão saber que eu existo: além do Kurt, boto nessa lista o John Frusciante, o Jeff Tweedy, a Fiona Apple, o Jeff Buckley, e acho que só.

Quando eu tinha 16 anos, eu achava que queria uma vida igualzinha à de Kurt Cobain, sem tirar nem pôr. Era o meu sonho de consumo no supermercado dos destinos. Queria morrer jovem como ele (chegar aos trinta já era ser “traidor do movimento”!), de preferência suicidado, deixando na carta de despedida alguma frase do naipe de “It's better to burn out than to fade away”.
E tinha que ser suicídio chocante e cheio de sangue, para garantir ao mundo que eu não estava me indo embora por acidente ou acaso, mas por pura e simples incapacidade de suportar essa desgraça de vida onde tinham me metido sem que eu tivesse pedido. Um suicídio com o poder de um manifesto.

Mas antes disso queria chegar ao cume empunhando uma guitarra numa banda de punk rock adorada pela juventude, execrada pelos patrulheiros da moral e do bom gosto musical, que passa pelo céu do pop como um cometa e logo mergulha num buraco negro, desaparecendo do firmamento mas deixando nas memórias de quem o viu passar uma marca indelével... Queria uma esposa despirocada e talentosa feito a Courtney Love, companheiros de banda tão cool quanto Dave e Krist, amigos no mundo underground do rock americano tão cults quanto Mark Lanegan, Buzz Osbourne e Mark Arm... Queria viajar o mundo todo em tours regadas a rock and roll estupidamente agressivo e substâncias químicas ultra-nocivas e destrutivas... Queria até uma filhinha como a Frances, que criaria para se tornar a nova Patti Smith ou Debbie Harry.

Quando adolescente, segui o "velho" Kurt como um aluninho dedicado segue seu mestre... Fui ouvir Pixies, Vaselines, Meat Puppets, Leadbelly, Wipers, Scratch Acid, Butthole Surfers, Big Black, Mudhoney e Screaming Trees por causa dele. O que Kurt recomendava era subitamente posto na minha listinha de “must hear” e instantaneamente considerado com muito respeito, mesmo antes da audição. Fui ler Patrick Suskind, William Burroughs, J.G. Ballard e Samuel Beckett só porque fiquei sabendo que esses eram os escritores prediletos do meu ídolo – e quis fazê-los meus prediletos antes mesmo de descobrir se gostava deles de verdade ou não. Não vou dizer que foi o Nirvana quem me abriu as portas do punk rock, pois confesso que fui fã de Green Day um pouco antes (o Dookie é legal sim, pow!), mas que ajudou, ajudou. Meu amor pelo Nirvana veio antes do meu amor pelos Ramones, pelo Clash, pelos Stooges, pelo MC5, pelo Richard Hell... Sem o Nirvana, talvez eu nunca tivesse sentido tanta atração pelo punk rock e ele não teria se tornado meu estilo musical predileto (sim!).

E não vou dizer que comecei a tocar guitarra só por causa do Nirvana, o que seria romancizar demais esse enredo, (na época eu também gostava imensamente de Pearl Jam, Alice in Chains, Soundgarden, Stone Temple Pilots, Days of the New...), mas o Nirvana foi certamente uma das principais bandas que enfiou em mim o desejo de aprender como é que se lidava com aquele tão adorado brinquedinho de seis cordas que tantas pessoas legais seguraram para fazer História. E vocês sabem a dura sina dos adolescentes que se metem a aprender guitarra: tentam tirar músicas de Jimi Hendrix e solos de Jimmy Page e se sentem como um pedacinho de lixo, com vontade de encostar o instrumento e pedir aposentadoria precoce... Que alegria e que sentimento de poder era descobrir que você conseguia tirar “Breed”, “Polly” ou “About a Girl” em cinco minutos, enquanto sentia que precisaria de pelo menos uns 15 anos de estudo para reproduzir “Voodoo Child”! O encanto de "tirar" dúzias de músicas do Nirvana sem muita dificuldade é uma das memórias mais bacanas de toda a minha adolescência.

Desde sempre, a identificação com ele foi muito grande. E eu disse "identificação" depois de pensar muito na palavra mais adequada – que realmente não é “admiração”, “adoração”, “idolatria” ou “fanatismo”. Você não necessariamente admira ou aprova aquele com quem você se identifica: você só tem aquela sensação instantânea de “eu também sou assim...” ou de “ele é parecido comigo...”. Não é que eu ache Kurt Cobain o sujeito mais sensacional do Universo, nem nada parecido com um "gênio" ou um artista pra lá de revolucionário - mas de certo modo é como se os nossos destinos corressem como dois rios paralelos. Certas frases que ele soltava em entrevistas eu ouvia e me dizia: eu podia ter dito igualzinho.

Quando o biógrafo Charles Cross escreveu: "mesmo aqueles que o conheciam melhor sentiam que mal o conheciam...", eu pensei comigo: isso podia ter sido dito igualzinho sobre mim. Quando Kurt dizia que oscilava sempre entre ser um incurável niilista e um carinha sincero e vulnerável, acontecia o mesmo: "isso sou eu!". E também é ele falando exatamente o que rola aqui quando descreve a sensação de estar todo o tempo com saudades de casa, mas de uma casa distante, inencontrável, que parece tão tão longe que nem parece fazer parte desse planeta - tanto que Kurt adorava brincar com a possibilidade de que ele era um alien que caiu na Terra e foi adotado por seus pais, sem jamais parar de desejar um retorno ao seu planeta de origem. Em About a Son ele diz a frase já clássica:
"I feel homesick all the time - and so do all the other aliens."

* * * * *




About a Son é o nome do mais recente documentário sobre Kurt Cobain. Estreiou no Brasil na 31a Mostra de Cinema de São Paulo, numa sessão de Domingo à meia-noite, com a sala absolutamente abarrotada, inclusive com gente esparramada no chão, prova de que (lá vem clichê!) Kurt Cobain não morreu, e seu fantasma continua entre nós, e a fascinação que ele causa ainda não se esvaiu etc. etc. etc.

No filme não rola nada parecido com multidões ensandecidas, manchetes sensacionalistas de jornais, entrevistados esmiuçando a importância histórica do Nirvana ou a personalidade de Cobain - nada: Cobain está praticamente sozinho no filme, falando por cima de várias imagens de Aberdeen, Olympia e Seattle (as cidades que mais marcaram sua vida), do jeito low-key e anti-espetacular que é característico do cara. Após uma filtragem em 25 horas de entrevistas gravadas, até então inéditas, o diretor AJ Shnack chegou a um filme de 1h30 em que Kurt descreve sua própria história de vida, da infância até mais ou menos 1993, sem a intromissão de nenhum depoimento "externo". Kurt Cobain por ele mesmo, de fato.

O título do filme pode parecer uma boba enunciação de uma obviedade (quem não sabe que ele era um filho, ora?! Filhos não somos todos nós?!), mas é um grifo bem dado num detalhe biográfico essencial para quem quer entender a alma atormentada do pequeno Kurt: sim, Kurt Cobain também era um filho, é claro, mas um filho que se sentia neglicenciado, não-cuidado, abandonado... um dos piores tipos de órfão: aquele que possui um pai vivo mas sente-se emocionalmente tão desamparado que é como se o tivesse morto.

Vendo o filme parei para pensar pela 1a vez em certos versos que ele largou por aí, principalmente em "Serve The Servants", a estupenda primeira música do In Utero, quando o Kurt diz: "só quero que você saiba que não te odeio mais". Já pensaram nisso: não é curioso que esse "está perdoado!" tenha sido dito através de uma canção? Kurt e seu pai não se falavam havia anos e anos - se se falassem, Kurt não precisaria ter colocado num disco do Nirvana uma mensagem, ouvida por milhões, que poderia ter dito direto para o pai, num quarto fechado, numa cena que poderia acabar, talvez, num abraço e numa reconciliação. Mas não: ele mandou para o pai um mísero versinho, não exatamente parecido com um "eu te amo" ou um "obrigado por tudo", e ficou por isso mesmo. "Não te odeio mais". Essa foi, talvez, a coisa mais afetuosa que Kurt jamais disse para seu velho. Acho isso de uma tristeza de dar vontade de chorar.

About a Son não tem nada de idealização do "retratado", até porque se parece mais com um auto-retrato do que uma pintura feita por alguém de fora - e Kurt Cobain não se pinta como se fosse a pessoa mais sensacional, incrível e genial desse mundo, muito pelo contrário. Existe até mesmo uma chance grande de que muitos fãs extremistas do cara acabem por perder um pouco desse excesso de idolatria ao ver um filme que o mostra tão humano e tão cheio de defeitos... Um amigo meu, depois de ver o filme, fez esse comentário curioso: "se eu tivesse conhecido ele, talvez nem curtiria o cara...".

Pois é: o ser humano Kurt Cobain era tão fascinante e flamejante quanto o artista e o músico Kurt Cobain? Muitos diriam que não e que ele, na vida privada, em meio às pessoas próximas a ele, não tinha nada de muito admirável ou elogiável. O biógrafo Charles Cross chegou a dar uma alfinetada até cruel no seu biografado em Mais Pesado Que O Céu, dizendo que estar por perto de Kurt Cobain era "entrar num mundo de escapismo saturado de opiatos".

É por isso que eu até entendo quando, por exemplo, um dos entrevistados do doc All Apologies dá a opinião de que Kurt Cobain era um “ser humano desprezível”. Não acho que o seja (o que há de "desprezível" em ser infeliz e excessivamente angustiado? É por acaso uma "calamidade moral" não conseguir ser feliz? E o que era Kurt Cobain além de um menino perdido, confuso e que experimentava a vida como algo extremamente doloroso?), mas compreendo quem ache. Em muitos aspectos o Kurt me parece sim um sujeito antipático, uma pessoa de quem é quase difícil de gostar, um cara que, imagino, tinha o poder de “baixo-astralizar” qualquer ambiente. Imagino Kurt como uma estrela negra irradiando angústia e mau-estar por todos os poros. Imagino que estar por perto daquele homem poderia ser uma experiência intensa, fascinante, perturbadora, constrangedora, comovente, mas dificilmente seria “agradável”, "divertido" ou “encantadora”.

Nas entrevistas que ele dá, ele mantêm quase sempre o mesmo tom de voz monótono e apático, o volume jamais variando, como se ele fosse uma máquina programada para nunca transmitir a mínima emoção. Na expressão facial, a não ser nos momentos em que o rosto se contorce com os berros, a imobilidade constante parece uma máscara em louvor à apatia. Kurt Cobain parecia ter uma incapacidade generalizada e incurável para se entusiasmar com qualquer coisa que fosse – poderíamos estourar champanhes e convocar uma festa se o víssemos empolgado e radiante em relação a qualquer coisa desse mundo. Quando ele berrava, já no comecinho do Nirvana, "i'm a negative creep and I'm stoned!", estava dando uma perfeita descrição auto-derrisória de si mesmo: ele era mesmo um negativista extremo que passou grande parte da vida chapado, como quem diz: "tudo é uma merda e eu quero mais é me afogar na heroína e ver se morro o mais rápido possível...". Nem preciso dizer que esse niilismo levado ao cume não tem nada de cool ou admirável.

Ele tinha, parece, um certo mau-humor crônico que fazia com que quase todos que o conheciam o julgassem sempre emburrado, irado e pronto a saltar com uma faca sobre o primeiro ser humano que mexesse com ele... Ele fala tanto sobre a experiência infernal de passar pelo colegial sempre impregnado pelo sentimento de solidão por sentir que não pertence de verdade a nenhuma turminha, nenhuma panelinha, nenhum clubinho, nenhuma tribo... O desinteresse por tudo, o “tanto faz...”, o “tudo dá na mesma...”, aquela apatia de semi-morto que não tem paciência para o straight world, para a engrenagem de produtividade capitalista, para o "mundo normal" em que nos convidam a entrar e tomar nosso lugar... Não são poucas as vezes em que ele confessa: "estou cansado de ODIAR TODO MUNDO...". As tentativas que eles faz para tratar com sarcasmo seus próprios defeitos nem chegam a melhorar o quadro. Sabe o que eu acho? Kurt Cobain foi o primeiro niilista que foi alçado ao status de maior ícone cultural da juventude mundial. Sinal dos tempos.

E niilista até o fim: porque o suicídio é o coroamento necessário de todo niilismo levado a sério.

O suicídio de Kurt Cobain... sobre isso daria para escrever um livro. Um livro que teria análises psicológicas do falecido, remetendo a traumas de infância, enumerando antecedentes familiares para o comportamento auto-destrutivo tão continuamente demonstrado, diagnosticando nele mil e uma psicopatologias parecidas com a depressão, a esquizofrenia e o transtorno bipolar... Um livro com análises sociológicas, mostrando o quanto a engrenagem cruel da mídia, dos papparazzi e do star system sufoca certos artistas ao ponto do esmagamento - holofotes que assassinam como metralhadoras... Um livro com análises existenciais e filosóficas meditando sobre o fato trágico de que a fama mundial, o reconhecimento artístico e a fortuna material pouco podem fazer por algumas pobres almas, condenadas à perpétua angústia, e que, mesmo que aparentemente tenham tudo o que um ser humano parece precisar para ser feliz, vão e dão um tiro na própria cabeça... Um livro que clarificasse um pouco um dos atos mais fascinantemente incompreensíveis da história do rock. O homem tinha tudo. E não foi o bastante. Preferiu o nada.

O que sempre me deixou absolutamente chocado no suicídio de Kurt Cobain, foi, em primeiro lugar, o fato de ter sido o primeiro caso na história do rock em que uma das maiores estrelas do planeta tirou a própria vida (Ian Curtis ainda era um joão-ninguém no underground de Manchester, muito distante do status cult que adquiriria depois de seu auto-enforcamento na lavanderia; o Elliott Smith não passava de um ícone indie não muito conhecido pelas massas; outros suicidas são raros!). Mas foi também, em segundo lugar, o seguinte: esse suicídio foi anunciado, prometido, ameaçado por anos e anos a fio. Esse caso é uma prova de que é uma imensa bobagem achar que "quem ameaça se matar, nunca se mata", como pensam alguns. Em incontáveis entrevistas o Kurt fez referência explícita, direta e inequívoca a isso – e não estava de brincadeira. Ele era pródigo em frases como “i wanna kill myself half the time” e chegou até mesmo a cogitar a insana idéia de entitular o sucessor de Nevermind como I Hate Myself And I Want To Die – o que equivaleria a berrar para uma audiência de milhões de pessoas uma ameaça de suicídio direta. E não é preciso ser nenhum gênio da psicologia para saber que quase todos os suicidas não querem de fato se matar – o ato é um agoniado pedido por ajuda, por atenção, por consolo... A cry for help.

Acho essa uma das histórias mais tristes que o mundo real já me contou: o menino Kurt Cobain, por anos e anos e anos, ficou choramingando, em privado e em público, berrando suas dores num microfone para milhões ouvirem, confessando seu desconforto e seu mal-estar para que todos soubessem, ameaçando partir desse mundo para que alguém o convencesse de que valia a pena ficar, e ainda assim... Ainda assim ninguém quis, ninguém pôde, ninguém soube como salvá-lo. Com 27 anos de idade ele se vai, cansado de pedir por uma ajuda que não vinha, cansado de viver num mundo de que não gostava, cansado de estar cansado...

Disse ele, recusando a coroa (considerada por ele de espinhos) que a juventude mundial quis botar sobre sua cabeça: "não suporto ser descrito como o porta-voz da minha geração, até porque não tenho nada a expressar senão meu profundo mal-estar...". Por mais que ele não quisesse essa missão, foi isso que ele acabou por se tornar: o porta-voz do desconforto, da angústia, da raiva e do mal-estar de milhões e milhões ao redor do mundo que se filiaram ao culto do Nirvana e fizeram desta uma das maiores bandas da história do rock, aquela que fedia a espírito adolescente e estourava nos amplificadores algum do melhor punk rock já feito no planeta Terra...
E esse fantasma ainda vai nos atormentar por muito, muito tempo...