sábado, 24 de novembro de 2007

:: eu e a minha turma ::



"A lifetime is so short
A new one can't be bought
But what you got
Means such a lot
To me..."

GEORGE HARRISON


Nem lembro mais quem me disse, um dia desses, essa gracinha de frase genial: "Eu não sou uma pessoa, eu sou toda uma turma!" Pois é. Acho mesmo que cada um de nós é uma multidão e "cada ser humano é uma colméia de seres", como diz o Bachelard. Essa aparente bobagem do "sou toda uma turma!" me parece bem mais profunda do que aparenta e pode até dar uma mão para que se entenda uma daquelas "verdades boas pra ficar zen" . =)

Porque em quase todos os livros de filosofia oriental que eu já li, encontro sempre a mesma idéia saindo da boca de todos os sábios, todos os santos, todos os iluminados: "o eu é uma ilusão". Demorei para entender que diabos eles queriam dizer com isso. Não tinha idéia de como realizar a tal da "dissolução do eu" que supostamente causaria o Nirvana, a Iluminação, a Beatitude Terrena Completa, a Felicidade Perfeita. Até porque, como todo mundo sabe, não existe uma "receita para chegar ao Nirvana" que se pareça minimamente com uma receita culinária ou um guia de livro de auto-ajuda... Os caras adoram falar de um jeito misterioso, hermético e esquisitíssimo sobre os caminhos para a Iluminação. Hoje acho que entendo melhor o que os caras queriam dizer - ou pelo menos criei metáforas próprias para me explicar a tal da "ilusão da individualidade".

Acho que os "caras" - os gurus iluminados que estão tentando nos conduzir à Luz... - estão constantemente chamando a atenção para o caráter fluido de tudo, inclusive de nós mesmos, como se fossem discípulos de Heráclito e dissessem algo como: "tudo flui, nunca se banha duas vezes no mesmo rio, nunca se testemunha duas vezes o mesmo pôr-do-sol, nunca se permanece a mesma pessoa em dois pontos diferentes do tempo, sempre se é uma pessoa diferente a cada segundo...".

Claro que todo mundo sabe que não somos estáticos, que em nós vão se sucedendo sempre novos pensamentos e sensações, que os nossos sentidos estão sempre recebendo "dados" diferentes "lá de fora" (e eu acho que existe um lá fora, apesar de não conseguir provar!), sempre novos estados de ânimo e de humor, sempre novas representações e imaginações, sempre novos sonhos e novos temores... Isso todo mundo sabe. Somos um rio que corre, sempre em sentido único, always downhill, e que vai desaguar sei lá onde... no Paraíso, para os crentes; na Volta ao Todo ou ao Grande Útero da Natureza, para os panteístas ou para alguns ateus; no Nada, para os niilistas...

O grande problema, acho eu, é que a gente sente a tentação de considerar que existe um "eu" imutável, fixo e permanente que resiste a toda essa imensa onda de mudança; um "eu" que esteve sempre lá, desde o primeiro berro do recém-nascido, e que continuará lá, até o último gemido de agonia do moribundo; um "eu" que perpassa, de algum jeito misterioso e difícil de explicar, toda a nossa existência, sem nunca se transformar... E acho que aí é que está a "ilusão": acreditar que exista qualquer coisa de permanente dentro de nós. Quando não há! Nada.

Por isso as pessoas não são fáceis de conhecer: por essa instabilidade do "eu" no comando, sempre diferente, apesar de sempre semelhante. Por isso o "eu" é uma ilusão: pois cada um de nós não é um eu, é um NÓS. "Sou toda uma turma...". Se querem me conhecer, se preparem pois para a árdua tarefa de conhecerem toda uma multidão! E nessa multidão há de tudo, de tolos a sábios, de chatos a simpáticos, de generosos/bondosos a canalhas egoístas. E se preparem para recomeçar o serviço a cada novo dia, pois uma pessoa nunca se conhece de uma vez para sempre - é um objeto de estudo que se transforma continuamente; os conhecimentos que temos sobre ele precisam de um constante update. Mudo tanto que é burrice de qualquer um querer colar em mim uma placa, uma etiqueta, uma categorização abstrata. George Harrison, o beatle mais zen, no disco dos Fab Four que eu considero o mais genial e revolucionário de todos, dizia assim: "You don't get time to hang a sign on me...". Muito bem dito.

(aliás: acho que eu não sou uma pessoa lá muito fácil de se conhecer... Não é pra me gabar, mas acho que sou um serzinho complexo. Me abro com poucos. Tenho a mania ancestral de gostar de ficar na minha e cultivar uma boa dose de reserva. Não sou o tipo de cara que costuma sair tagarelando sobre si mesmo e prodigalizando histórias de vida numa mesa de bar para pessoas que talvez não estejam interessadas em ouvir. Preciso sentir no outro o interesse, a curiosidade, a vontade de me desvelar, me descobrir, entrar nas minhas tocas com uma lanterna para ver tudo o que há rabiscado e desenhado nas paredes... Preciso sentir que o outro me olha com uma certa voracidade, como o explorador ganancioso olha o baú de tesouros que encontra mas não sabe como abrir. Poucas vezes na vida encontrei alguém que me tratasse como se eu fosse um baú de tesouros e quisesse ver tudo o que está dentro. A essa pessoa eu entregaria a chave.)

Gosto de pensar na minha mente como uma espécie de nave espacial, daquelas dos seriados antigões tipo Perdidos no Espaço, que carrega no bagageiro um monte de co-pilotos congelados em cápsulas. E conforme a viagem progride, os co-pilotos vão sucessivamente despertando: um a um vai até o manche da minha mente e comanda a jornada por um tempo, até que morre e é substituído pelo novo piloto recém-desperto. No comando da minha mente, rola essa sucessão ininterrupta de pilotos diferentes, alguns extremamente hábeis na condução sutil do meu corpo através dos asteróides e buracos-negros do universo (smooth sailing all the way...), outros muito mais desastrados e desengonçados nesse serviço. Todos os pilotos são parecidos uns com os outros; mas cada um deles é ao menos um pouco diferente do que era o anterior e do que será o sucessor. No fim de tudo, terão se sucedido dúzias e dúzias de pilotos na condução dessa carroça inter-estelar que passeia pelo Cosmos e que eu chamo de minha vida...

E é bem provável que, quando o último piloto estiver no comando, quando ele chegar a seu último suspiro, minha pobre e humilde navinha vai explodir em pleno espaço sideral, se fazendo em mil destroços, numa orgia de desintegração, e os poucos espectadores que testemunharão esse pequeno e insignificante desaparecimento vão se perguntar com espanto: "mas para onde ia esse UFO? Pra que planeta estava direcionado? Que missão tinha nesse Universo?" ...

E vocês, também pensam sobre o sentido da vida?