domingo, 16 de outubro de 2005



24 HOUR PARTY PEOPLE
de Michael Winterbottom
(2002)


A LENDÁRIA MADCHESTER


Entre 1976, quando os Sex Pistols estavam prestes a explodir na Inglaterra, e 1992, quando a poeira levantada pelos Happy Mondays e pelos Stone Roses começou a baixar com a ascensão do grunge americano, a cena musical de Manchester teve como pivô um cara que fez muita coisa acontecer: Tony Wilson. É ele que vai servir como narrador e personagem principal de 24 Hour Party People, divertido e pedagógico passeio de Michael Winterbottom pela música pop inglesa em alguns de seus momentos mais brilhantes das últimas décadas.

A ação começa quando os Sex Pistols dão seu primeiro "show" em Manchester, em 1976, para uma "multidão ensandecida" de cerca de 40 pessoas, numa performance que depois será descrita por Tony Wilson como clássica, histórica, fenomenal... apesar do miudíssimo número de espectadores e da evidente falta de entusiasmo que a maioria deles demonstrava pela banda. Tony, o do filme, em um dos momentos mais hilários da história das piadas de rock no cinema (De Volta Pro Futuro e sua piada sobre o Van Halen perde.), justifica sua empolgação: sim, só tinham umas três dúzias de pessoas vendo os Pistols, "mas quantas pessoas tavam na porra da Santa Ceia? Só cinco pessoas viram o primeiro avião decolar! Arquimedes estava sozinho em sua banheira! Quanto menos gente está lá, mais histórico é!"...

A ação acaba quando Tony têm uma conversa com Deus e faz um balanço de sua existência frente ao Criador depois de ter fumado um baseado de Barbados arranjado por um decadente Shaun Ryder, que acabava de gastar os 200 mil dólares que tinha para gravar o novo disco dos Happy Mondays em drogas, festas e putas. Entre uma coisa e outra, Tony Wilson arranjou um jeito de enfiar seu nome na história do pop sem ter precisado jamais ter tocado um instrumento ou cantado uma nota - como fizeram também Malcolm McLaren e John Sinclair.

Formado em jornalismo, Wilson se tornou figurinha conhecida dos brits como apresentador de TV em alguns programas toscos tipo Roda da Fortuna e fazendo reportagens um tanto bizarras sobre discos voadores e vôos de asa delta. Mas foi seu amor pelo rock and roll que fez com que ele se mexesse para fazer a "cena" de Manchester pegar no tranco. Primeiro com um programa punk que apresentava na TV aberta chamado "So It Goes", que fazia hype pra cima de artistas punk então tidos como piada ou lixo social, e que chamava a juventude para frequentar os barzinhos onde rolava o bom som. E depois com a criação de um clube noturno meio tosqueira onde podia botar o pessoal pra tocar, inclusive seus protegidos (que nunca vingaram) A Certain Ratio e Vini Reilly (o vocalista do Durutti Column).

Os negócios logo foram expandidos: a Factory, que antes era somente um clube noturno onde tocavam figurinhas cult do rock de Manchester, virou a Factory Records, antológica gravadora que, nascida em 1978, na hora certa para registrar em fita a fase de ouro do pós-punk e a da new wave, revelou ao mundo o Joy Division, o New Order e os Happy Mondays. E que é até hoje um exemplo de indie label que respeita a liberdade artística das bandas contratadas ("all bands have the freedom to FUCK OFF!", dizia o "contrato"). E mais: foi ele, Tony Wilson, quem criou e chefiou uma das principais boates - a mundialmente famosa Hacienda - que serviu como palco para a explosão do dance-rock de Manchester naquela época do rock contemporâneo que a crítica apelidou de Madchester.

O filme de Winterbottom, viajando através dos anos, vai focar sua atenção principalmente em dois períodos e dois personagens: Ian Curtis e Shaun Ryder, símbolos do pós-punk e do groovy rock chapado madchesteriano.

Tony Wilson estava lá pra acompanhar de camarote a rápida ascensão e queda do Joy Division, banda que nasceu na esteira dos Pistols e dos Buzzcocks, fazendo um punk de batida mecânica, guitarras graves e vocais soturnos, e que foi cada vez mais se tornando a banda mais depressiva da história conhecida da música pop. Gravaram com a Factory dois álbuns hoje considerados clássicos - "Unkown Pleasures" de 1979 e "Closer" de 1980, ambos produzidos pelo malucão Martin Hannett (um dos personagens mais comédia do filme). Mas a banda estava fadada a acabar rápido. O vocalista esquisitão e maníaco-depressivo Ian Curtis, que costumava se entregar a estranhíssimas e constrangedoras dançinhas em cima do palco, parecendo um interno da APAE, e que tinha constantes ataques de epilepsia, deixava pelo caminho versos cheios de desolação e desespero. Hoje não surpreende nem um pouco que tenha escolhido o destino que escolheu: a corda.

Quando Ian se enforcou em 1980, aos 23 anos de idade, deixando pra trás esposa e filho pequeno, num espetáculo que cerca de quinze anos depois veríamos de novo com Kurt Cobain, passou direto do status humano para o de mito. "Love Will Tear Us Apart" só viraria um hit - e uma espécie de hino-loser para os jovens perdidos dos anos 80 - quando Curtis já não era desse mundo. Essa história, que daria sozinha um ótimo filme, que se preocupasse mais em investigar a personalidade de Curtis e que retratasse com mais cuidado seu suicídio, já merecia faz tempo ser filmada. As coisas aqui são contadas com realismo, sem excesso de pagação de pau, e o ator que teve a difícil tarefa de interpretar Ian manda bem. Mas dá pra suspeitar que certas coisas foram retratadas de um jeito que faz a coisa parecer mais legal do que realmente foi. Fala sério: a galera conseguia mesmo DANÇAR com tanta animação ao som de Joy Division como se estivessem frente a uma banda de ska? É tão inacreditável quanto rebolar ao som da "Marcha Fúnebre" ou fazer cara de Mary Poppins no funeral da mãe. E Tony dizer que "Ian é a versão musical de Che Guevara" num é um puta dum absurdo exagerado?

Depois da morte súbita de Ian Curtis, as coisas poderiam ter ficado pretas para a Factory. E de fato ninguém acreditava que o New Order, a banda formada pelos três remanescentes do Joy Division e chefiada pelo guitarrista e agora vocalista Bernard Summer, fosse realmente vingar. Quando "Blue Monday" se tornou um dos singles mais vendidos da história da música pop, Tony Wilson percebeu que nem tudo estava perdido. A grana arrecada pelo mega-sucesso foi quase toda investida na estilosa e moderna Hacienda. Lá algo de histórico aconteceria, mais para o fim dos anos 80.

A mais nova banda que a Factory estava tentando emplacar, os Happy Mondays, chegavam à cena com uma mistura picante e divertida de rock e dance music, algo de barulhento e colorido, estranho e groovoso, definitivamente novo. Numa Manchester que via os comprimidos de ecstasy se multiplicando aos milhares e as gangues de traficantes guerreando nas ruas, nasceram dois discos clássicos - "Pills, Thrills and Bellyaches" e "Stone Roses" - que marcaram a história do rock inglês e puxaram todos os holofotes do mundo para a louca Manchester. Ela se tornou o centro do universo: as melhores drogas, as melhores boates, as melhores bandas, as melhores festas, as minas mais gatas, as modas mais bizarras, estavam todas ali. Ao mesmo tempo, percebeu-se que colocar uma banda pra tocar não era tão importante: um D.J. soltando a tecneira era o que bastava. Tony Wilson se gaba para as câmeras de que foi dentro da Hacienda que aconteceu o momento histórico: o nascimento da cultura rave, a beatificação da batida, o endeusamento do ecstasy e das festas que duram dias. Shaun Ryder, líder dos Happy Mondays, se tornou uma espécie de profeta da nova Era, vivendo até o limite na base do excesso nas drogas e no esquema do festa-24-horas-por-dia. A coisa, claro, não podia durar por muito tempo. Os Mondays só deixaram um disco realmente fodão, os Stone Roses só dois, e toda a cena Madchester virou história.

Apesar de totalmente baseado em fatos reais, 24 Hour party People não é um documentário, mas uma reconstrução ficcional de uma época do rock que merecia ser retratada no cinema. Hilário vezes sem conta e munido de uma trilha sonora muito adequada ao espírito do filme, 24 Hour... é um dos melhores filmes de rock que eu já vi, talvez mais foda do que os muito mais renomados e conhecidos Quase Famosos, Velvet Goldmine e Escola de Rock. Se bem que decapite o realismo em certos momentos e se entregue à construção de mitos, o filme de Winterbottom empolga, instrui, diverte e deixa para a posteridade um retrato fiel desses cerca de vinte anos históricos da música pop na Louca Manchester.

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