(obs: criei uma nova seção chamada "Mestres", onde vou pôr alguns textos que eu realmente curto, o que vai servir tb pra que sempre haja material novo por aqui mesmo quando estou em uma fase não muito produtiva... o único inédito que coloquei por lá é o seguinte ensaio - irretocável... - do Bobbio sobre o Mal. Sei que é grande pacas, mas vale a pena.)
"OS DEUSES QUE FRACASSARAM"
(Algumas questões sobre o problema do Mal)
de Norberto Bobbio
trecho extraído do livro "Elogio da Serenidade" (Ed. Unesp).
(os grifos são meus.)
"OS DEUSES QUE FRACASSARAM"
(Algumas questões sobre o problema do Mal)
de Norberto Bobbio
trecho extraído do livro "Elogio da Serenidade" (Ed. Unesp).
(os grifos são meus.)
Os acontecimentos de Sarajevo superaram, de todos os pontos de vista - o histórico, o ético, o da oportunidade política ou o da própria conveniência econômica -, os limites do compreensível, para além dos quais nasce inevitavelmente a questão da presença invencível do Mal no mundo. Uma daquelas questões que não conseguimos responder com as luzes da razão e que costumamos chamar, com uma palavra sibilina, de "metafísicas".
O problema do Mal se impõe à nossa atenção com particular força no caso de eventos catastróficos, pouco importando se seus protagonistas são a Natureza ou a História. Em nossa memória mais recente, são dois os acontecimentos que mais discussão provocaram sobre o tema: Auschwitz e a queda do muro de Berlim. O primeiro representou um desafio sobretudo para o homem de fé; o segundo, sobretudo para o homem de razão. Ressoaram repetidamente, em nossos ouvidos, duas questões: a) "Por que Deus não só silenciou, mas permitiu que se consumasse o impressionante massacre, que não teve precedentes na história, seja pelo número de vítimas, seja pela ferocidade inerente aos meios empregados?"; b) "Por que o mais grandioso movimento que pretendera emancipar o homem do domínio, da exploração e da alienação transfigurou-se em seu contrário, ou seja, em um Estado politicamente despótico, economicamente ineficiente e moralmente ignóbil?". Os homens de razão ficaram tentados a falar em "derrota de Deus"; os homens de fé, em "suicídio da revolução".
Na realidade, não foram apenas os homens de fé que, diante do fim catastrófico da Revolução Comunista, falaram em "utopia invertida", e não foram apenas os homens de razão que falaram em "derrota de Deus". Quando li o livro de Sergio Quinzio, que tem precisamente esse título, fiquei impressionado. Como não crente, que não obstante tudo permanece na soleira da porta, eu jamais teria imaginado que o homem de fé pudesse falar com tanta liberdade do fracasso do cristianismo que não cumpriu suas promessas, do insucesso do Crucifixo. A história de Deus é, desde as primeiras páginas da Bíblia, "uma história de derrotas". Após dois mil anos, "os mortos não ressuscitaram e o espaço para a fé diminuiu monstruosamente"; "não podemos mais acreditar num Deus que exige um infinito preço de sangue e de lágrimas em troca de uma solução que até agora ninguém viu"; "o Deus que se ofereceu a nós, que espera de nós a salvação, é um Deus que devemos perfeitamente amar, mas que nos fez ficar cansados demais, desiludidos demais e infelizes demais para conseguir fazê-lo". Análogas deplorações entristecidas, amargas revisões e confissões autocríticas, não menos sinceras, sobre o homem novo que não nasceu e o velho que não só não morreu, mas que vive mais doente do que antes, pudemos ler milhares de vezes nestes últimos anos a respeito do outro grande fracasso, a Revolução Comunista, grandiosa pelo número de homens envolvidos e julgada grandiosa, em razão do fim a que se propôs, por milhões de homens de boa-fé.
Parece, portanto, que o fracasso de Deus para o crente andou lado a lado com o fracasso da razão para o não crente, e um e outro ajudam a que não se tenham muitas ilusões sobre a chegada da era do niilismo. Muitos de nós, que conheceram o fascismo e o comunismo, recordam, a respeito da Revolução de Outubro e das esperanças que ela fomentou e depois dissipou, uma coletânea de ensaios, organizada por Ignazio Silone, intitulada O Deus que fracassou. Hoje, porém, há quem pareça querer nos forçar a perguntar: "Qual Deus?"
Todavia, não podemos colocar os dois fracassos no mesmo plano, comparando-os entre si, nem extrair de um e de outro as mesmas consequências. Os homens de razão sempre suspeitaram - se é que não professaram abertamente - da possibilidade de erro, admitindo a insuficiência de seu saber despojado de ajuda divina e deixando aberta a porta para a contínua revisão de suas afirmações. Para os crentes, a derrota de Deus não seria um evento mais perturbador e, sobretudo, mais catastrófico? A confiança na razão jamais foi tão absoluta quanto a confiança na Providência divina. Jamais tivemos qualquer dificuldade em admitir que a razão não é, mas se torna. Agora aprendemos que também Deus não é, mas se torna, projetado na História. Qual a diferença, então, entre este Deus que se torna na História e a Razão dos filósofos, ou o Espírito de Hegel? Deus, ainda se lê, "sofre". Deus não é onipotente, e por isso sofre. Se fosse onipotente, não teria permitido Auschwitz. Não seria mais Deus quem nos salva, mas nós é que devemos salvar a Deus? Não estaríamos nos aproximando do horizonte de uma sociedade que se debate em dificuldades, numa espécie de teologia fraca, que estranhamente vai se colocando ao lado da assim chamada "fraqueza" filosófica? Com que rapidez chegaremos a radical substituição da visão tradicional do universo, segundo o qual Deus é o criador e o homem a criatura, pela visão humanista igualmente radical segundo a qual Deus é uma criação do homem? Não mais o homem da Bíblia feito à imagem e semelhança de Deus, mas este novo Deus, que não é mas se torna, não mais onipotente mas impotente e falível, feito à imagem e semelhança do homem?
Colocando-me do ponto de vista analítico, pretendo apresentar algumas reflexões com a única intenção de propor certas questões que formulo a mim mesmo, e dar continuidade à discussão. A partir desse ponto de vista, creio ser possível estabelecer uma distinção fundamental: o Mal tem dois aspectos que, por mais que sejam vinculados frequentemente e nem sempre com razão, devem ser mantidos separados. Estes são o Mal ativo e o Mal passivo. O primeiro é aquele que se faz, o segundo aquele que se sofre. O Mal infligido e o Mal sofrido. No conceito geral do mal, compreendemos duas realidades humanas opostas: a maldade e o sofrimento. Duas figuras paradigmáticas destes dois rostos do Mal, Caim e Jó. Quando nos colocamos, como neste momento, o problema do mal em geral, nossa mente corre indiferentemente para um episódio de violência ou para um de dor: podemos nos deparar tanto com a imagem de um feroz assassino quando com a de uma mãe que chora. Evocando Sarajevo, passam diante de nós as imagens de soldados que disparam e de homens e mulheres que fogem tomados pelo pânico, de cruéis torturadores e de vítimas. Essas imagens se alternam, se superpõem e continuamente se confundem entre si.
Sinto-me imediatamente obrigado a observar que, no senso comum, o significado passivo prevalece sobre o ativo. Na linguagem cotidiana, expressões como "me sinto mal", "isto me faz muito mal", "estou mal da cabeça", "por que me fazes mal?" referem-se todas ao mal passivo. Não seria o nosso modo de falar uma prova do fato de que a nossa experiência do sofrimento é mais ampla que a da maldade? Eu estaria inclinado a responder que sim. O mal ativo, sob a forma de vontade de domínio, de prepotência, de violência em todas as suas formas, do assassinato individual ao massacre coletivo, é objeto particular de reflexão sobretudo do historiador, do teólogo, do filósofo, em suma, de quem se põe o problema do "Mal no mundo". O sofrimento, em vez disso, é de todos, esta mais escondido mas é mais difuso, e é menos visível precisamente porque é mais profundo. A pena de viver subtrai-se à História, e no cenário histórico aparecem em primeiro plano os poderosos, os conquistadores, mais os violentos que os violentados, mais os senhores que os escravos.
Esta primeira observação ajuda-me a corrigir um erro, talvez mais que um erro, um hábito mental que consiste em ligar o mal infligido ao mal sofrido, como se eles estivessem em relação de interdependência. Um hábito mental que deriva da aceitação irrefletida de um dos argumentos clássicos - tão difundidos que se tornaram populares - adotados para justificar, e simultaneamente aliviar, o sofrimento: o sofrimento é consequência de uma culpa. O modelo desta interpretação deve ser buscado na vida cotidiana de qualquer sociedade humana, na qual a idéia de que o castigo deve se seguir ao delito é uma das regras fundamentais, que devem ser observadas para que uma convivência pacífica seja possível. Quem matar deve ser morto. Quem fizer alguém sofrer deve sofrer. Desse ponto de vista, o sofrimento é sempre uma pena, no sentido que tem o termo "pena" numa concepção retributiva de justiça. Se há sofrimento é porque houve uma culpa. Mal ativo e mal passivo formam uma unidade inseparável, mas primeiro vem o mal ativo e depois o mal passivo. Não haveria o segundo, se não tivesse havido antes o primeiro. Recordo que o termo "pena" tem dois significados fundamentais, o de sanção a um ato violento e o de sofrimento, que se pode sofrer independentemente da prática de um ato maldoso. Esse segundo significado também é uma prova da exsitência daquele vasto campo da experiência humana no qual o mal passivo existe sem que seja necessário fazê-lo depender do mal ativo. Que uma pena faça alguém penar não quer dizer que o estado do penar também seja uma pena como sanção a um crime. O verbo "penar", assim como, de resto, o adjetivo "penoso", não tem qualquer relação com a pena entendida como sanção. A punição pode ser penosa, mas a penosidade não está necessariamente relacionada a uma punição.
Da realidade cotidiana, o princípio da justiça retributiva - ou da necessária relação entre o mal que se faz e o mal que se sofre - foi transferido, nas sociedades arcaicas, para a interpretação de todo o universo. Refiro-me ao que foi chamado de "modelo sociomórfico", ou seja, àquela operação mental mediante a qual todo o sistema do universo é representado como uma reprodução do sistema social e das regras que o governam. O mal passivo do universo, o espantoso sofrimento da espécie humana ao longo de toda a sua história, outra coisa não seria que a consequência inevitável, obrigatória, de um mal ativo originário, do qual não se sabe o início, mas que se enraizaria em um passado mítico e cuja memória seria transmitida de geração em geração. Do mesmo modo que na pequena sociedade em que vivemos, também no universo inteiro, que compreende todos os homens que viveram, todos os viventes atuais e todos aqueles que viverão nos séculos e séculos ainda vindouros, o mal ativo precederia o passivo, ainda uma vez o delito viria primeiro que o castigo, o pecado antes da pena. Os homens não sofreriam, se o primeiro hmem não tivesse pecado. Também o universo inteiro em todo o seu espaço e em todo o seu tempo seria governado desde sempre e se governaria para sempre segundo o princípio fundamental da justiça retributiva. Já se disse - mas este é um tema sobre o qual não posso me deter agora - que uma das características da mentalidade pré-científica é a de se fazer, diante do evento ignorado, a pergunta: "De quem é a culpa?", em vez de "Qual é a causa?".
Ainda hoje, na visão de uma religião popular, mas não apenas nesta, prevalece a interpretação do universo segundo o princípio da justiça retributiva. A idéia de que o sofrimento (qualquer sofrimento) é de algum modo uma forma de obter a absolvição de uma dívida vale não só como explicação, a mais fácil das explicações, mas também como justificação, a mais tranquilizadora das justificações. O prevalecimento deste interpretação apóia-se numa contribuição direta da teodicéia tradicional, segundo a qual um dos argumentos principais, e mais insistentemente repetidos, para justificar o evento que gera sofrimento, e desse modo absolver a potência divina, é atribuir tal evento a alguma presumível culpa humana. Não importa que o culpado permaneça desconhecido. Que haja um culpado é a dedução lógica do princípio da justiça retributiva, posto axiomaticamente como princípio regulador do universo. Podem ser feitas as mais diversas e extravagantes hipóteses sobre a natureza da culpa e do culpado. A única coisa que não parece ser possível discutir é que, repito mais uma vez, se há uma pena é porque deve ter havido uma culpa.
Não importa nem mesmo que a pena golpeie o presumível culpado segundo a regra da responsabilidade individual. O princípio da justiça retributiva, aplicado não à pena por um delito singular, mas a uma pena que afeta um conjunto de homens em um determinado momento histórico e uma determinada sociedade, prescinde completamente da regra da responsabilidade individual: para dar os exemplos costumeiros, serie este o caso de uma nova doença - como foi a peste ao longo dos séculos, ou a sífilis no final do século XV, ou a Aids hoje -, ainda que com menor convicção após o avanço do processo de secularização. Onde vigora o princípio da culpa coletiva, não tem qualquer importância conhecer o culpado individual. Em uma concepção primitiva da justiça, não há nenhuma razão para que a pena atinja apenas o culpado e o culpado seja o único a sofrer a pena. Em uma visão global da justiça e do universo, é absolutamente irrelevante que um indivíduo singular, um grupo de indivíduos ou um povo inteiro sofram por uma culpa que não seja deles.
Desde que existe um nexo entre o mal e o agir humano, como nos casos mencionados até agora, pode-se mesmo sustentar, ainda que de modo grosseiro, a causa da justiça retributiva: o homem em geral é responsável por todas as suas obras. A humanidade pode ser concebida como uma totalidade indiferenciada, na qual cada parte do todo é responsável por aquilo que faz com respeito às outras. Mas aquilo que faz que o homem sofra depende unicamente de causas humanas? No início deste texto, afirmei que a esfera do mal passivo é incomparavelmente mais ampla que a esfera do mal ativo. É evidente que o sofrimento humano pode depender de infinitas outras causas que não derivam de nossa ação, seja ela voluntária ou involuntária. Mais ainda: a grande maioria dos estados de sofrimento não podem ser imputados a uma culpa nossa, a começar da razão por excelência da dor, a morte das pessoas queridas. No que diz respeito a nós mesmos, mais do que o pensar em nossa própria morte, a maior causa de sofrimento são as doenças, tanto as físicas quanto as psíquicas, e a maioria delas não deriva de nossos erros e culpas. De onde vem o longo e quase sempre atroz sofrimento de um doente de câncer? Existiria por acaso alguém ou alguma coisa que poderia ser responsabilizada por isso? E das doenças hereditárias, o que devemos dizer? Que sentido teria regredir, posto que seja possível, até ao primeiro progenitor? Perguntas absurdas para problemas malpostos. Absurdas, precisamente porque são perguntas malpostas.
As catástrofes naturais são o maior desafio para a confortável solução que vê um nexo entre sofrimento e culpa, e que portanto acredita poder resolver o problema no interior do mundo humano. Sabem disso muito bem os teólogos, que não podem renunciar à idéia da Providência divina. Sabem bem os filósofos da história, que substituem a Providência divina pela astúcia da razão. Não há grande catástrofe natural que não tenha suscitado o problema do seu porquê - refiro-me ao porquê teleológico, já que o porquê causal também pode ter uma resposta -, mas este é um problema que, do ponto de vista de qualquer teodicéia ou logodicéia, é insolúvel, não obstante a sutileza dos argumentos com que foi enfrentado e a engenhosidade com que se buscou resolvê-los. No entanto, são as catástrofes naturais, como terremotos, dilúvios, ciclones e furacões, que geram a maior quantidade de sofrimentos no curto prazo, um número de mortos, feridos e danos materiais que o flagelo da guerra gera em prazos muito mais longos. Se se leva em conta, não apenas o tamanho do mal, mas também o tempo em que o mal se manifesta, então as catástrofes naturais são a manifestação mais terrificante do Mal como sofrimento. E se trata de um mal que não se pode submeter às justificações, cômodas e confortáveis, da relação necessária entre culpa e castigo.
Ninguém tem tanta capacidade de compaixão a ponto de sofrer junto com todas as vítimas do evento, de acolher em si a soma das dores que sentem os sobreviventes de uma família sepultada sob os escombros, os sem-teto, aqueles que viram o fruto de seu trabalho ser destruído em uma fração de minuto. A justificação do sofrimento mediante a culpa está tão radicada em nossa mentalidade que, até mesmo no caso de um terremoto, jamais faltam os ataques, muitas vezes compreensíveis, contra os responsáveis pela ineficiente política ambiental. A busca do bode expiatório é um modo de dar livre curso à própria dor e à própria indignação. Se há um responsável, isso quer dizer que há alguém que se pode escolher como alvo de vingança, e que se pode fazer sofrer como nós sofremos. Mas o primeiro elo da cadeia continua sendo um evento natural, cujas consequências desastrosas podem ser aumentadas, mas não consideradas efeitos exclusivo da incúria dos homens. Qualquer investigação que se faça sobre a responsabilidade das administrações públicas permanecerá sempre uma imensa desproporção, com respieto aos danos produzidos pela catástrofe, entre a causa primeira e as causas segundas, uma desproporção que nenhum raciocínio de justificação, nem sequer o mais sofisticado, poderá eliminar.
Uma catástrofe natural é um fato, e como fato somente pode ser explicado com os mesmos procedimentos mentais com que se explica um fato qualquer. Em uma concepção teológica ou moral do mundo, não estamos em condições de dizer absolutamente nada sobre o significado de um fato como este, já que não temos nenhuma certeza acerca da existência de um sujeito que possa ser imputado. Comparemos um terremoto a uma guerra. A comparação é possível porque um e outra são dois eventos que criam uma soma extraordinária de sofrimentos. Mas a comparação se interrompe aqui. Tentemos estender o confronto ao plano do juízo moral. Ao passo que tem sentido falar, como se fez durante séculos, de guerra justa e injusta, não haveria qualquer sentido em falar de um terremoto justo ou injusto. Compreende-se, porém, que a afirmação é plausível em uma teodicéia ou em uma logodicéia, quer dizer, em um tipo de discurso no qual se pressupõe que exista um sujeito a que se possa atribuir o Bem e o Mal.
Para aumentar a dificuldade, para não dizer a impossibilidade, de se converter uma catástrofe natural em um evento a ser justificado com base em um critério moral, deve-se incluir também a constatação de que algumas destas catástrofes, como terremotos, dilúvios, em particular erupções vulcânicas, ocorrem sempre ou frequentemente nos mesmos lugares, ao passo que outros lugares estão completamente imunes a elas. Da época de Aristóteles em diante, as formas de justiça são essencialmente duas: comutativa e distributiva. O Mal-castigo, como remédio para o Mal-culpa, é um clássico exemplo de justiça comutativa, que acaba por ser violada quando o sofrimento não pode ser culpável, como nas catástrofes naturais. Onde há um bem ou um mal sem mérito e sem culpa, deveria intervir o princípio da justiça distributiva, segundo o qual Bem e Mal devem ser equanimemente distribuídos. Mas não há teodicéia ou logodicéia que possa justificar a repetitividade de eventos catastróficos nas mesmas partes do mundo. De resto, mesmo no caso em que o evento se revele pela primeira vez numa certa localidade, repõe-se a questão: "Mas por que exatamente ali, e não em outro lugar?". Portanto, se um discurso de justificação não pode se remeter nem a uma nem a outra das duas formas de justificação, então é preciso concluir que não temos como evocar nenhum argumento decisivo para justificar aqueles eventos, que, por sua gravidade, precisariam, mais que qualquer outro, ser justificados.
Não pretendo abrir o discurso sobre a crueldade, e correspondentemente sobre o sofrimento, no mundo animal, no qual prevalece a mais impiedosa luta pela sobrevivência, e o peixe grande, segundo o famoso exemplo de Espinosa, devora o peixe pequeno, e o peixe pequeno parece não ter outra razão de existir que não a de se deixar devorar e, assim, de permitir que o peixe grande não morra de fome. Quem quer que tenha assistido àquelas frequentes transmissões televisivas em que uma serpente engole lentamente sua própria vítima destinada a morrer depois de um longo sofrimento, um leão com o focinho sujo de sangue que despedaça uma gazela, uma matilha de lobos esfomeados que persegue uma manada de bisões e que, ao conseguir derrubar um deles, devora-no sem piedade, não pode deixar de perguntar: "Quem desejou um mundo tão atroz?" Não seria este um mundo em que, se há uma evolução, esta não se referiria ao progresso moral, de que falamos quando nos interrogamos a respeito do sentido que se deve atribuir ao curso histórico da humanidade? O pensamento laico renuncia a dar uma resposta a estas últimas questões, e tenta a vida da explicação por causas, por exemplo, mediante a teoria da luta pela sobrevivência, boa ou má seja essa explicação. O pensamento laico pode aceitar o mundo dos fatos tal qual é, mas o pensamento religioso não pode fazer o mesmo. E como poderia fazê-lo, se o esquema tradicional de justificação, a relação entre culpa e castigo, é inaplicável fora do mundo humano, no qual se pressupõe que o homem esteja livre de escolher entre o bem e o mal? Um dos argumentos fortes do pensamento religioso diz que entre Deus e o Mal está o homem, com sua liberdade, com sua inclinação para o mal, com suas paixões. Como poderia esse argumento ser empregado para compreender o mundo não humano, no qual aquilo que acontece não é obra do homem ou influenciada pelo homem, senão numa parte mínima?
Perante o problema do Mal, o pensamento teológico tem uma obrigação que o pensamento laico não tem: conciliar a presença do Mal com a existência de Deus, e com a imagem de Deus não só como Potência Infinita mas também como Bondade Infinita, da qual o Mal é a negação.
A propósito deste ponto, mostra-se apropriada a conhecida passagem do ensaio O conceito de Deus depois de Auschwitz, no qual Hans Jordan afirma que os três atributos de Deus - a Bondade absoluta, a Potência absoluta e a Compreensibilidade - não podem ser concebidos em conjunto, na medida em que "estão de tal modo relacionados entre si que toda relação entre dois deles exclui o terceiro". Em seu juízo, a onipotência de Deus só pode coexistir com a absoluta bondade divina ao preço da total incompreensibilidade de Deus, isto é, da concepção de Deus como mistério absoluto. "Somente de um Deus totalmente incompreensível se pode dizer que é absolutamente bom e desde a origem absolutamente onipotente e, não obstante isso, suporta o mundo como é". Diante dessa aporia, Jonas propõe que, tendo que renunciar a um dos três atributos, este seja a onipotência, já que a Bondade é inseparável do nosso conceito de Deus e não pode sofrer nenhuma limitação, e o conhecimento de Deus é um elemento essencial do hebraísmo, para o qual é inadmissível o conceito de um Deus totalmente oculto.
Pergunto-me se uma solução como essa não torna plausível, ao menos como experimento mental, uma solução alternativa. Já que o atributo da Bondade absoluta faz que Deus se torne compreensível, mas suscita o problema da jsutificação do Mal, deve-se tentar negar o atributo da Bondade absoluta e salvar o atributo da Potência absoluta. Neste caso, a compreensibilidade de Deus seria salva ao preço de sua Bondade. Mas não é esta uma das possíveis respostas do humanismo laico, segundo o qual, como Potência absoluta, Deus seria indifente ao Bem e ao Mal, estaria além do Bem e do Mal, assim como além do Belo e do Feio? Desse ponto de vista, o Bem e o Mal nada mais seriam que criações humanas. De resto, precisamente o fato de serem criações humanas explciaria que não têm um valor absoluto. Por um lado, não se dá um ateímo tão radical a ponto de negar o Deus-potência. Por outro, dá-se um humanismo igualmente radical a ponto de fazer com que os valores sejam exclusivamente um produto da história.
Uma última questão. Detive-me até agora principalmente na aporia que se contrapõe à justificação do Mal do ponto de vista de uma concepção que vê o universo como sendo dirigido por um princípio de justiça retributiva. Mas esta não é a única aporia que o problema do Mal propõe à nossa razão. Há uma outra ainda mais perturbadora, e por isso mesmo mais escandalosa. Como vimos, não só não é de modo algum demonstrável que por trás de uma pena haja uma culpa, mas também não é demonstrável que, na economia geral do universo, quem mais sofre seja o malvado. Para quem consegue ver sem preconceitos, os eventos da história humana demonstram exatamente o contrário: o tirano Stalin morreu em seu leito, ao passo que Anna Frank, imagem da inocência, morreu num campo de extermínio. Dos aflitos sempre subiu aos céus a pergunta formulada por Jó: "Por quê?" Há uma razão para que o malvado se salve e o inocente se perca?
Faz sentido formular a questão? Por que, no último momento, um oficial do séquito de Hitler deslocou inconscientemente a maleta que continha a bomba armada pelo coronel Von Stauffenberg para atentar contra a vida de Hitler, e Hitler se salvou e não só não morreu como pôde completar sua monstruosa vingança?
Não, não faz nenhum sentido. Também esta é uma questão sem resposta. Mas desde sempre o homem simples concebeu sua resposta: "Não há justiça neste mundo".
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