segunda-feira, 21 de novembro de 2005

MARCAS DA VIOLÊNCIA
(A History Of Violence, de David Cronenberg, 2005)

"We may be through with the past,
but the past ain't through with us."

de MAGNOLIA, de P.T. Anderson

"People you've been before
You don't want around anymore."

de ELLIOTT SMITH, em "Between Bars"


"Marcas da Violência", novo filme do cada-vez-melhor David Cronenberg (de "Spider", "A Mosca", "Crash - Estranhos Prazeres", "Gêmeos - Mórbida Semelhança", entre outros), não é um espécime do típico gênero americano de filmes sanguinolentos e brutais que glamourizam a violência e idealizam a brutalidade. As cenas fortes e sangrentas estão lá, mas nunca são diversão ou estilização (não estamos frente a um irmão de "Kill Bill" ou "Sin City"); a violência aqui é terror, não entretenimento. Algumas sinopses escritas para tentar atrair multidões para os cinemas vão dizer que se trata de um suspense a respeito de bandidões que passam a perseguir uma pobre família que, antes vivendo dentro do Sonho Americano, tem sua vida transtornada pela explosão da violência. Vão dizer que é um thriller sangrento sobre a vingança que os Caras do Mau vão tentar perpetrar contra o Cara do Bem pelos erros deste último no passado distante. Vão dizer que é uma reflexão sobre a violência na América. Vejo nele algo de diferente.

Prefiro ver o filme de Cronenberg, adaptado de uma novela gráfica de John Wagner e Vince Locke, como uma cuidadosa análise psicológica de um personagem em conflito com os demônios interiores - que ele pensou ter subjugado, mas que voltam a bater à sua porta. Mais ou menos à maneira do "Clube da Luta" e do "Psicopata Americano", "Marcas da Violência" faz um estudo cuidadoso de uma personalidade rachada. Dentro do mesmo homem, nos três casos, convivem duas personas: uma delas, reprimida e empurrada para o inconsciente, representa o lado violento, brutal, sedento por destruição; e a outra, que se exibe publicamente, pretende se adequar à normalidade e à moral social estabelecida. É claro que a repressão não funciona com perfeição e, vez ou outra, surge das profundezas desses homens aparentemente pacatos, ordeiros e sociáveis (Tom Stall, Patrick Bateman e o narrador do Clube...) um monstro de ódio e violência. Eles não são assim tão diferentes de todos nós, digamos a verdade. Quem de nós não sente se erguer das profundezas de nossos corações, vez ou outra, alguma fantasia sanguinária, algum desejo de destruição, algum ódio mortal contra alguém? E quem não se esforça por reprimir essas iras e manter-se sob controle? Confesso que eu, pessoalmente, muitas vezes não consegui resistir à tentação de decapitar, esfaquear e arracar fora as tripas de muito professor - mentalmente, é claro. Num curto muito a raça... ;-)

O personagem Tom Spall (interpretado por um ótimo Viggo Morttensen), atormentado por remorsos a respeito de seu obscuro passado, é um homem que, como tantos, veste uma máscara para fingir ser absolutamente pacífico e imune à crueldade. Quer dizer, talvez dizer "fingimento" ou "hipocrisia" seja exagerar: até daria para falar em uma "obstinada tentativa de auto-transformação". O fato é que ele se esforça para reprimir sua personalidade violenta por tantos anos seguidos, com um esforço tão constante, que a máscara da normalidade acaba por se colar ao rosto. Joey Cusack, sua versão particular de Tyler Durden ou do Psicopata Americano, parece estar definitivamente morto. E ninguém, nem sua esposa, nem seus filhos, nem seus colegas de trabalho, chega a suspeitar que, por trás da aparência amável e pacífica, pode haver nas profundezas daquele homem alguma besta adormecida. E é essa besta que será despertada na ocasião do assalto de que ele é vítima e que vai transtornar toda a vida de Tom, sua esposa e seus filhos.

Por isso é que prefiro ver o filme não tanto como um "thriller" ou um "policial", mas muito mais como um drama familiar centrado num problema muito comum: o mútuo desconhecimento enfim tornado evidente. Penso assim: não importa que as pessoas compartilhem a mesma casa, a mesma mesa, a mesma cama, por anos e anos a fio; elas ainda assim parecem não conseguir ler umas às outras como livros abertos. A surpresa com que a esposa (Maria Bello) recebe a verdade sobre o passado de seu marido é um bom indicativo de quão superficialmente aqueles dois se conheciam. Atormentados pela morte de suas ilusões, a esposa e o filho modificam de modo radical o modo com que tratam o papai, antes considerado como "o melhor homem do mundo", agora enfiado na imagem de um serial killer. Cronenberg sublinha o contraste com força: no inicío do filme, o tom excessivamente adocicado e idealista da descrição feita da família nos indica que há algo de errado ali; as coisas funcionam tão bem que não dá pra evitar pensar: "é bom demais pra ser verdade". A gente sabe que algo vai vir pra fazer a terra tremer debaixo dos pés desse casal tão impossivelmente perfeitinho.

Pouco a pouco Cronenberg vai nos conduzindo em direção aos mistérios de Tom Stall e cada vez se evidencia mais que seu passado está recheado de atos sanguinários que ele desejou esquecer e apagar. Os mafiosos chefiados por Fogarty (Ed Harris, sempre competente), e que vêm para atormentar a vida de Tom, aparentemente o confundindo com um certo Joey Cusack, são o fator que vai fazer com que a família, pela primeira vez, se choque com o dilema: será que nós realmente nos conhecemos? Estamos realmente conscientes de quem é o nosso papai em suas profundezas mais insondáveis?

O mistério sobre a vida pregressa do personagem principal vai lentamente começando a instigar o espectador, num processo que me lembrou um pouco aquele de "Paris, Texas", de Win Wenders, que só com muita lentidão nos explica as causas do silêncio pesado e da tristeza desolada do protagonista. Tom Stall, em "Marcas da Violência", é um mistério parecido. Tanto que, o principal suspense que Cronenberg cria por aqui nem é tanto um "será que eles vão conseguir se safar?", mas um "quem diabos é esse cara, na verdade?" A certo ponto, todos ao redor de Tom - o policial, a esposa, o filho, seu irmão, seus perseguidores - pedem que ele embarque numa "viagem no trilho da memória" e retorne ao passado - para concertá-lo, para revelá-lo, ou mesmo para redimi-lo, pagando por seus crimes. Uma viagem na qual ele não deseja embarcar, é claro, já que esteve, por tantos anos, engajado na tarefa de se auto-modificar. Ele está querendo deixar o passado para trás, mas o passado não vai deixar-se cair inerte na passividade. A pessoa que ele foi no passado, e que não quer mais ser, será novamente chamada a erguer-se por esses espectros do passado.

"Marcas da Violência", talvez o mais maduro e profundo dos filmes da carreira de Cronenberg, acaba por ser uma fábula de redenção que fotografa a obstinada tentativa de transformação e auto-superação de um homem que, cansado de seus vícios e de seu ódio, parte num combate contra si mesmo. Um processo de auto-pacificação, auto-controle, auto-domesticação. Envergonhado por seu passado pouco elogiável, esconde de todas as pessoas ao seu redor seu lado mais sombrio e suas escorregadas mais graves, até que um dia o esconderijo é quebrado e as verdades obscuras saem à luz do dia. Um filme sobre como escondemos uns dos outros nossos sentimentos menos nobres, por medo de que não gostem de nós se souberem que os sentimos, e sobre como, mais cedo ou mais tarde, os demônios interiores acham um meio de se manifestarem no mundo exterior. Que nos resta? A compreensão, a admissão, o auto e o mútuo conhecimento.

Na belíssima cena final, inteirinha silenciosa, o diretor não dá nenhuma pista mais explícita sobre qual será o futuro dessa família após ser chaqualhada por essa onda de derramamento de sangue. Mas eu fico com a impressão de que, afinal de contas, o que está em jogo ali é o reacolhimento do papai, uma espécie de reconciliação feita toda através de pequenos atos e olhares, um certo perdão terno e compreensivo. Admitido de volta, aceito no ninho mesmo com seu passado sombrio e seus abundantes erros cometidos, Tom, enfim desmascarado, é recebido de braços abertos. A família, após fazer o sepultamento das ilusões que tinha sobre aquele homem, novamente o aceita, o acolhe, o admite. As lágrimas são inevitáveis, como também o é o clima melancólico, que contrasta de forma radical com o ambiente American Dream do inicío da história. É que todos estão de luto após o funeral das ilusões. E agora poderão reiniciar a batalha de cara limpa: dessa vez, as máscaras estão todas largadas pelo chão.