quarta-feira, 9 de novembro de 2005



MARIA CHEIA DE GRAÇA
(Maria Full Of Grace, escrito e dirigido por Joshua Marston,
Colômbia / EUA, 2004)


Primeiro uma confissão do meu preconceito: já tinha visto esse filme repousando nas locadoras uma pá de vezes, mas sempre passava reto, cheio de desprezo, achando que certamente era algum filme de propaganda cristã igual a muitos que viraram moda ultimamente, desde aquele horroroso circo dos horrores do Mel Gibson até aquelas porcarias que a Globo produziu para o nosso padre-pop Marcelo Rossi protagonizar – e é claro que não assisti às empreitadas globais no cinema cristão, nem acho que seja preciso ter assistido pra falar mal; eis um caso de "não assisti, não gostei, e ainda por cima estou convencido de que estou certo por não ter gostado". A verdade é que eu sou um ateu muito fanático. E um filme chamado “Maria Cheia de Graça” só podia mesmo ser um nojento produto ideológico feito para “catequisar as criancinhas” ou “deter o avanço das seitas evangélicas”, né?

Quando finalmente tive coragem para ler uma sinopse sobre o filme num jornal, mais pra dar risada do que pra qualquer outra coisa, percebi que eu tinha sido um escrotão por ter desdenhado um filme só por causa de seu título. De fato, “Maria Cheia de Graça” é um filme que não tem absolutamente nada a ver com religião, nem mesmo uma relação “satírica”. A única imagem que faz um link com a simbologia cristã é aquela que está estampada no cartaz e na capa do filme: Maria, com a face erguida para cima e a boca entreaberta, parece receber uma hóstia. Quem viu sabe que é uma ilusão: o que está prestes a entrar no organismo de Maria não é o corpo do Cristo, mas sim um pacotinho de cocaína a ser provisoriamente estocado no estômago dela para uma viagem até a América.

O primeiro filme do diretor e roteirista americano Joshua Marston, com um realismo cru que o deixa com um jeitão quase documentário, é uma história que ilustra bem a situação sócio-política extremamente conturbada lá na Colômbia, um país, como tantos, aparentemente abandonado por Deus. Numa nação onde o narcotráfico é super-poderoso, não devem ser poucos os trabalhadores que se sentem tentados a arranjar um emprego como ajudantes no esquemão das drogas. Afinal, pra quê trabalhar como um condenado num trampo “honesto” que paga uma miséria quando se pode faturar o dobro, o triplo, o quádruplo, entrando para o mundo do tráfico? Maria é uma dessas garotas colombianas que, frente a dificuldades financeiras, aceitam se transformar em “mulas”, levando através das fronteiras, na barriga superlotada, a droga que será vendida nos Estados Unidos. "Baseado em 1.000 histórias reais", diz o cartaz do filme, e provavelmente não é mentira.

O filme nem perde tempo nos apresentando ao significado da gíria “mula”, por exemplo, o que o Pablo Vilaça soube interpretar bem: “o diretor-roteirista estreante Joshua Marston demonstra inteligência ao compreender que, no universo da moça, todos sabem o que uma 'mula' faz”. De fato, é algo já encorporado ao dia-a-dia daquelas pessoas, cercadas por todos os lados pela presença de drug-dealers e seus dialetos próprios. Dá também pra notar, no mesmo caminho, que Maria nunca chega a realmente SE SURPREENDER ao saber que tal processo de transporte de narcóticos existia, o que também sugere que os colombianos estão em contato tão cotidiano com o tráfico que não deve vir como uma surpresa, para nenhum deles, o fato de que existe algo como mandar um sedex cheio de cocaína usando como pacote uma série de estômagos humanos. No resto do mundo, principalmente nos países ricos, a audiência vai certamente se pasmar ao saber dessa astúcia diabólica dos traficantes.

Para Maria, a coisa nem chega a constituir um dilema moral. Ela não tem tempo para ficar decidindo se “é certo ou errado” fazer o que fará: suas necessidades são urgentes demais, e sua família passa um aperto ferrado demais, para que lhe reste espaço para escrúpulos. Abandonando seu emprego como retiradora de espinhos de flores (ocupação monótona e absolutamente não gratificante, tanto no sentido financeiro como no “humano” mesmo), ela embarca, junto com duas amigas, nessa perigosa jornada até Nova Yorke. As pedras no caminho são muitas: não só a polícia americana já está fechando o cerco nos aeroportos, como qualquer rompimento de um dos papelotes dentro do ventre da garota causará certamente sua morte por overdose.

Decerto que “Maria Cheia de Graça” não tem muito a ver com as táticas dos thrillers americanos comerciais, mas o suspense está lá presente, em vários momentos, de uma maneira muito mais sutil, mas que não deixa de ser cativante: na tensa cena dentro do avião, por exemplo, ou durante o interrogatório a que é submetida Maria assim que pisa nos EUA, ficamos presos na cadeira, só torcendo - pelo menos foi o que ocorreu comigo - para que a droga não seja descoberta. O que não deixa de dar o que pensar. Porque parece mais natural que a gente deseje que o bandido-traficante se ferre, não? Me explico melhor: se a gente fica sabendo, ao ler num jornal, que uma garota colombiana foi presa tentando atravessar uma certa fronteira com drogas escondidas no corpo, é até normal que a gente pense: “ora, bem feito! Essa traficante safada tem mais é que se ferrar mesmo!” Mas o filme nos coloca frente a uma personagem que fatalmente acaba por nos parecer simpática, e seus atos totalmente desculpáveis, fazendo-nos até mesmo torcer para que ela engane a polícia e não se dê mal – mesmo sabendo que ela está fazendo algo em prol do narco-tráfico organizado... Não é algo de tão incomum assim que o cinema consiga fazer erguer em nós uma simpatia por um personagem que está cometendo certos “atos moralmente reprováveis”, o que sempre nos ajuda a aprender a tolerância e a compreensão. Vejam “Ônibus 174”, por exemplo.

E muito desse efeito de empatia para com o personagem é certamente causado pela belíssima e talentosa atriz colombiana Catalina Sandino Moreno, indicada ao Oscar por esse papel (foi a primeira vez que a Colômbia teve um ator nomeado para o prêmio). A moça é de uma lindeza magnética que sempre chama os olhos em sua direção. Eu fiquei tão apaixonado que acho que ela podia ser indicada, não só para o Oscar, como também para o Miss Universo. Com altas chances de vencer. Através de uma performance contida e realista, Catalina dá um show não de beleza e de atuação. “Maria Cheia de Graça” é um daqueles filmes que, se não tivessem encontrado uma atriz esplêndida para o papel principal, poderiam ter se tornado algo um tanto medíocre, a exemplo de “Monster” (de Patty Jenkins) e “Meninos Não Choram” (de Kimberly Pierce), outros projetos que, no meu ver, poderiam não ter engrenado se não tivessem contado com performances inspiradas de Charlize Theron e Hilary Swank.

Tudo bem que o filme não aprofunda de modo algum na discussão geo-política: as FARCs nem são citadas e as políticas do governo americano em relação à Questão Colômbia são completamente omitidas. Dá até pra sentir um certo gosto – um tanto desagradável, para alguns – de “idealização da América”. Sem entregar o final do filme, digo somente que, por fim, a gente fica com a impressão de que o diretor-roteirista, aliás um americano, tenta passar a idéia de que emigrar da Colômbia, esse país terrível, e ir em direção à terra muito mais próspera e perfeitinha de Tio Sam, é algo de inteligente a fazer. Falsa solução, pois todos sabem quão mal vivem os imigrantes latinos nos EUA, por vezes caindo num estado até mais miserável do que aquele que tinham no país de origem. Descontando esses defeitos, “Maria Cheia de Graça”, além de nos apresentar a um diretor promissor e a uma atriz esplendorosa (em todos os sentidos), não deixa de ser um belo painel de como o narco-tráfico se insere nas vidas cotidianas dos colombianos, servindo às vezes como maldição, às vezes como salvação.