segunda-feira, 21 de setembro de 2009

:: tenho uma cabeça com asas ::

:: DIGRESSÕES AÉREAS ::


"I've got a head with wings."
MORPHINE


"Quem é pobre", já dizia o Millôr, "só entra em avião se for pra varrer". Eu, que tive a má idéia de ser filósofo e não faxineiro, só tinha voado na vida uma vez, pra Porto Seguro, ainda moleque. Mas na época era pirralho demais para aproveitar a viagem e todas suas "potencialidades filosóficas". Desta vez, voando ao encontro da amada, era como se voasse pela primeira vez. Grudei-me à janelinha, com olhos famintos, desistindo do Joana D'Arc do Michelet que tinha trazido no pocket para me distrair na viagem, e entreguei-me à contemplação espantada das cambiantes paisagens, as externas e as internas (pois meu coração é também uma cambiante paisagem!). Descobri que tenho mais "sentimento cósmico" do que o pirralho de cabelo tigelinha que, no banco da frente, berrava com o pai querendo um pirulito, nem se surpreendendo com o fato de que estávamos cruzando os ares a 900 quilômetros por hora. Eu sou desse tipo besta de gente que acha avião um espanto. E pra mim é uma constante fonte de espanto, também, o quanto as pessoas conseguem achar tudo normal...

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Depois de Auschwitz e Hiroshima, acho um tantinho difícil admirar a raça humana e não desejar ter nascido um esquilo ou um girassol. We have not done well. O engraçado foi sentir dentro do meu coraçãozinho misantropo, quando posto a bordo de um grande avião, um sentimento quase inédito: uma espécie de orgulho pela humanidade e suas façanhas tecno-científicas. Sem essa lindeza que é o progresso da ciência e da tecnologia, apesar disso ter dado também na bomba atômica e na nazi-eugenia, eu não poderia ter atravessado as distâncias para chegar perto da minha amada. Por vezes a razão trabalha em prol do coração! Me entreti um pouco batendo palminhas imaginárias para os homens, que inventaram este deslumbre que é o avião, e fiquei pensando que Zweig podia ter aceito a missão de escrever a bio de Santos Dumont – certamente sairia um livraço, com o talento incrível que possuía ele, Zweig, na descrição dos Momentos Decisivos da Humanidade (um livro que adoro). Se ele não topou, foi porque o Getúlio, na época, pediu de modo indelicado, autoritário, como se o artista fosse pau-mandado das ôtoridades; e aí o autor de Brasil: País do Futuro deu pra trás, já que começava a descobrir que este país não era a lindeza e a maravilha que ele tinha julgado quando aqui aportou, judeu exilado da Europa infestada de nazis, encontrando nesta acolhedora terra tropical o paraíso da miscigenação pacífica e da convivência harmoniosa de todas as raças, cores e credos...

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Por mais viril que a gente queira ser, e por mais que nos garantam que não existe meio de transporte mais seguro, um medinho de catástrofe sempre dá. Fomos catequisados na paranóia por Hollywood, por Lost, pelo 11 de Setembro e... pela Lei de Murphy: algo sempre pode dar errado, sempre penso, e muito mais provavelmente no exato lugar onde estou. Tentei me consolar com as boas coisas que decorriam da minha morte num desastre aéreo: minha família faturaria 50 mil pila do seguro, o que certamente seria uma imensa alegria; muitos chorariam no meu funeral, lamentando um destino tão trágico, até mesmo aqueles que nunca me conheceram mas ficaram sensibilizados pela matéria do Fantástico; e podia até mesmo acontecer d'eu sobreviver roliudianamente ao crash: e aí uma Kate Austen, suja de fuligem, roupas aos frangalhos, numa ilha deserta australiana, estaria lá para me suturar os rasgos, oferecer um consolo... ai ai... olha que num é má idéia!

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“Não existem ateus a bordo de aviões turbulentos”, diz a Erica Jong, autora do adorável Medo de Voar (livro que tem mais a ver com os vôos e quedas do coração do que com aviões...). É um comentário de uma percepção psicológica magistral: num momento desses (quando estamos numa aeronave que ameaça dar um piripaque), é tamanho o grau de impotência, ignorância e pavor que não resta muita solução, para aqueles que ainda possuem um fiapo de fé, senão apelar pro Papai do Céu. Mas é claro que o fato das pessoas rezarem ardorosamente quando o avião está despencando nada prova sobre a existência de Deus, e muito sugere sobre o quanto a religião é filha do medo, da impotência, da ignorância, da fraqueza, da inelutável proximidade da morte... Reza-se principalmente quando a coisa vai mal. E quando nada podemos fazer por nós mesmos, só nos resta pedir a outros, mais poderosos, que façam por nós – donde a submissão aos deuses, aos pais e aos tiranos, me parece, têm a mesma raiz psicológica.

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Outra das coisas que mais me surpreendeu, enquanto olhava fascinado as paisagens cambiantes lá embaixão, foi constatar que apesar de todo o papo sobre super-população no planeta, e a necessidade de controle de natalidade, ainda existem imensos vazios populacionais: por dezenas e dezenas de quilômetros, viaja-se por paisagens perfeitamente habitáveis, mas que não mostram muitos sinais da presença humana além daqueles riscos e rabiscos no terreno que, vistos de perto, chamamos de estradas.

E aí, de repente, meio que "do nada", aparece ali uma cidade humana, com milhares de casinhas e prédios amontoados num pontinho minúsculo da paisagem, e ali se aglomeram 100 mil, 500 mil ou 5 milhões de seres humanos, por vezes rodeados por espaço natural vasto. Questão: por que é que os homens não se espalham mais por aí, ao invés de ficarem todos colados uns nos outros, se cutucando com vara curta? É claro que é porque o homem é necessário ao homem, e nada há de mais valioso para o homem do que o homem, como Spinoza já dizia. Se cada um, sozinho, tivesse que ir atrás dos meios de sua subsistência, a sobrevivência seria de fato muito mais difícil; foi, pois, uma descoberta da espécie: a de que a solidariedade representa uma vantagem evolutiva.

Darwin dizia que os mais fracos perecem e deles só restam fósseis num museu, um verbete numa enciclopédia de história natural, às vezes nem isso. Mas muitas vezes nos esquecemos de que os fracos são fracos pois não se solidarizaram: muitos fracos, solidarizados, fariam uma força. E talvez sobrevivessem.

Pensando bem, homem é um bicho meio tosco: não temos a força física dos ursos ou dos leões; não temos o tamanho imponente dos dinossauros; não temos a velocidade da pantera nem a visão dos linces; nem a capacidade de voar ou nadar que têm tantas milhões de espécies... Se sobrevivemos, e nos tornamos, merecidamente ou não, soberanos no planeta, teve necessariamente que ser pela união de forças - impossível sem a linguagem, impossível sem as cidades.

Mas dizer que o homem é “naturalmente sociável”, o zoon politicon de Aristóteles, não significa que ele não seja egoísta: é sociável justamente pelos torpes motivos egocêntricos, pelo interesse privado. É como na famosa metáfora dos porcos-espinho ao redor da fogueira de Schopenhauer: precisam se aproximar uns dos outros para não passarem frio, e por isso se reúnem perto do fogo; mas se chegarem muito perto, começam a picar-se uns aos outros com seus espinhos, por isso mantêm sempre uma certa distância confortável...

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Sobrevooei Brasília pela primeira vez, iluminada por um belo lusco-fusco, e me espantei com o caráter todo geométrico e certinho da capital – nunca tinha visto cidade mais cartesiana. Nas proximidades do aeroporto, com o avião planando baixinho, como se quisesse roçar o topo dos prédios, também deu pra ver alguns quarteirões dos ricaços: incrível a imensa quantidade de casas com piscinas, dos mais variados tipos e formatos, que vê-se do avião como se fossem pequenas pocinhas ou baldinhos... Muitas delas, suspeito, construídas com dinheiro público, regalias decorrentes da corrupção.

Me surpreendeu também notar os imensos vazios populacionais e paisagens naturais intermináveis que circundam a cidade, e que deixam a impressão de que a decisão de ali construir o centro do poder federal teve um pouco de elucubração política satanicamente espertinha: quiseram contruir NO MEIO DO NADA a capital do Brasil, distante das grandes massas, tornando dificílimos os levantes populares, os protestos, as marchas. Imaginem se a capital fosse ainda no Rio de Janeiro, que problemão não seria! Com os 2 milhões de favelados, a guerra civil entre polícia e traficantes nos morros, o imenso caudal de deserdados irados, que não cessariam de tentar atentados contra senadores ou tacar uns ovos no terno engomadinho do presidente, ainda que ele um dia tenha sido um operário...

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Viajei carregando meu violãozinho, que recentemente sofreu o duro baque de uma fratura exposta. Vinha ainda molhado de verniz, e o luthier me tinha recomendado que o deixasse sossegado num cantinho, mas eu desobedeci. Tinha curtido a sensação de andar por aí com instrumento nas costas; fiquei imaginando que as pessoas me julgariam importante, um músico pegando avião, e que talvez se sentissem quase impelidas a saber mais sobre quem eu era, para verem se valia a pena uma abordagem e um pedido de autógrafo, que depois pudesse ser gabado ou revendido. Claro que tal fantasia megalomaníaca não se concretizou e nenhum fã ensandecido veio tirar uma casquinha do celebérrimo guitarrista da Liga das Senhoras Católicas, que tava dando bobeira em Congonhas, em Brasília, em Goiânia, facinho de interpelar e tietar...

Como Marlon Brando, em The Fugitive Kind, fiz pose de quem vê na sua viola uma companheirona de vida, my life's companion, que é preciso carregar pra cima e pra baixo como um filho dileto, que me segue como uma sombra, formada pelo sol escaldante do rock and roll... E lembrei-me da fábula que Snakeskin, no filme do Lumet, conta sobre o bluebird, o pássaro azulado que não tem pernas, e que, dado sua impossibilidade de pousar, passa a vida inteirinha voando... Sempre achei lindamente poética e hippie a idéia desta ave que vive nas alturas, que dorme no vento, que quando se cansa e precisa dormir continua planando com as brisas, e cujo único pouso é o despencamento da morte...

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E em vários momentos da viagem, dada minha falta de iPOD ou MP3, ia cantarolando mentalmente algumas de minhas músicas prediletas - principalmente o clássico do Marvin Gaye: "there ain't no mountain high enough / there ain't no valley low enough / there ain't no river wide enough / to keep me from gettin' to you, babe!". E ia pensando, feliz, que não este era somente um soul fodástico, ainda que piegas, cuja melodia e entusiasmo sempre tinham me enganchado, mas uma canção que eu estava encarnando, que tinha se tornado minha própria vida, cujas palavras eu poderia dizer sem tirar nem pôr. E é um privilégio vivermos o que expressa uma linda canção.

Me lembrei do memorável dia em que você perdeu o avião pra Goiânia. Nós, correndo por Cumbina como loucos, pensando que a mesma lógica regia os busões e os aviões, e que essa coisa de check-in antecipado era uma bobagem, e em caso de atraso bastava dar um berrão pro motorista, "peraê, porra, que eu quero subir!" Foi neste dia que você me deu Tânia Catherina, a leoa russa que sabia até dançar Tchaikovsky (“O Lago dos Cisnes”, no primeiro “showzito” que o bichano me exibiu, numa mesa do Viena, um charme!). Num é pra qualquer um. Conheço dos que possuem leões e leoas, sem serem donos de simba safári, mas nenhum que, como eu, tenha um desses magnos felinos capazes de pogar ao som de “Pet Cemetery”, dos Ramones, cuja letra soa especialmente conveniente para ser berrada por um animal: “i don't wanna be buried in a pet cemetery!”

E estavámos ali como crianças, tão absorvidas na brincadeira que esquecem-se que os adultos criaram relógios e despertadores, calendários e cronogramas, horários e rigores, pontualidades e cronômetros! Deslizamos afora do tempo que para nós programaram, o tempo culturalmente inculcado, e que nos tranca em sua jaula, quando temos vocação para algo maior: a eternidade. E falo, não de imortalidade, nem de vitória sobre a morte, nem de viver para sempre. Falo da eternidade como a verdadeira experiência concreta do tempo: pousar no absoluto presente, e notar que ele é eterno. E eternamente renovável, sempre rebrilhando de novo, já que a eternidade não exclue a mudança nem a “eterna novidade do mundo” de que nos fala Pessoa. Ali, perdemos todas as preocupações - e há sensação mais doce, enquanto dura? O deleite era tão absorvente que literalmente perdemos a noção da hora. Há nisso estupidez, de quem tropeça nas pedras que os homens práticos tão fácil evitam e pulam, ou há a sabedoria de quem sabe escapar da jaula e viver na terra alguns pequenos êxtases?

E se um dia nos perguntarem de que tipo era o nosso amor, podemos dizer: “desses que nos faz perder o avião”...



quinta-feira, 10 de setembro de 2009

:: presidiários da ternura ::


"Quem coleciona selos para o sobrinho; quem acorda de madrugada e estremece no desgosto de si mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu a quem amava; quem chora no cinema ao ver o reencontro de pai e filho; quem segura sem temor uma lagartixa e lhe faz com os dedos uma carícia; quem se detém no caminho para contemplar a flor silvestre; quem se ri das próprias rugas ou de já não aguentar subir uma escada como antigamente; quem decide aplicar-se ao estudo de uma língua morta depois de um fracasso amoroso; quem procura numa cidade os traços da cidade que passou, quando o que é velho era frescor e novidade; quem se deixa tocar pelo símbolo da porta fechada; quem costura roupas para os lázaros; quem envia bonecas às filhas dos lázaros; quem diz a uma visita pouco familiar, já quebrando a cerimônia com um início de sentimento: “Meu pai só gostava de sentar-se nessa cadeira”; quem manda livros para os presidiários; quem ajuda a fundar um asilo de órfãos; quem se comove ao ver passar de cabeça branca aquele ou aquela, mestre ou mestra, que foi a fera do colégio; quem compra na venda verdura fresca para o canário; quem se lembra todos os dias de um amigo morto; quem jamais neglicencia os ritos da amizade; quem guarda, se lhe derem de presente, a caneta e o isqueiro que não mais funcionam; quem, não tendo o hábito de beber, liga o telefone internacional no segundo uísque para brincar com amigo ou amiga distante; quem coleciona pedras, garrafas e folhas ressequidas; quem passa mais de quinze minutos a fazer mágicas para as crianças; quem guarda as cartas do noivado com uma fita; quem sabe construir uma boa fogueira; quem entra em ligeiro e misterioso transe diante dos velhos troncos, dos musgos e dos liquens; quem procura decifrar no desenho da madeira o hieróglifo da existência; quem não se envergonha da beleza do pôr-do-sol ou da perfeição de uma concha; quem se desata em riso à visão de uma cascata; quem não se fecha à flor que se abriu de manhã; quem se impressiona com as águas nascentes, com os transatlânticos que passam, com os olhos dos animais ferozes; quem se perturba com o crepúsculo; quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz ou infeliz; quem de repente liberta os pássaros do viveiro; quem sente pena da pessoa amada e não sabe explicar o motivo; quem julga perceber o 'pensamento' do boi e do cavalo; todos eles são presidiários da ternura, e, mesmo aparentemente livres como os outros, andarão por toda parte acorrentados, atados aos pequenos amores da grande armadilha terrestre.” --- PAULO MENDES CAMPOS