sábado, 29 de outubro de 2005



T I M Festival - Sampa
com Mundo Livre S/A - M.I.A. - Arcade Fire - Kings Of Leon - The Strokes
Arena Skol Anhembi
23 de Outubro de 2005


Um show de rock de grande porte, como foi o TIM Festival paulistano que bombou o Arena Skol (24 mil putos!), sempre comporta para os espectadores uma boa dose de desconforto e aporrinhações. Shit happens. Eu tava com medo (ui) de que as más sensações q tive q aguentar durante essas 7 ou 8 horas de festival (o cansaço, o calor, a fome, o aperto, a falta de ar, a dor nas pernas...) fossem ser tão mais numerosas do que as good vibes que a experiência acabaria no prejú. Mas não: os Strokes vieram para salvar a noite, o festival, o rock and roll e todas as nossas almas. Confesso: foi o único show que eu achei realmente foda. Mas bota foda nisso. Quando as últimas notas de "Reptilia" foram morrer no silêncio e os cinco Strokes saíram do palco depois do bis, eu pensei comigo: não sou mais um ser-humano, sou um amontoado de carne moída, com duas pernas que não me sustentam o corpo, com uma camiseta totalmente encharcada de suor, fedendo mais que queijo podre, com a coluna em frangalhos e morrendo de fome. E quer saber? I feel all right!

Não que tenha sido uma experiência toda feita de alegria e clarões. Tem sempre um monte de pés-no-saco em shows grandes. Por exemplo, tem o FATOR AMASSO: a MUVUCA, em quase todo show que bomba, não permite que a gente se mexa demais sem trombar com alguém, o que não é necessariamente uma má coisa (depende com quem se tromba, com que intenções e que consequências...). Afinal, um show não é lugar apropriado pra quem tem uma personalidade "não-me-toques!". O foda é que nesse dia preciso, no lugar preciso onde eu tava, o lance era muito mais trash do que um simples "amasso": era algo como ESMAGAMENTO. Dava pra se sentir dentro de uma cela superlotada de alguma penitenciária brasileira. Ou dentro do busão mais entupido de gente na hora do rush paulistano. Ou num daqueles pesadelos em que as paredes... you get the idea.

Tem também o DILEMA DA BREJA: quem quer ver a banda de perto não pode sair pra ir comprar bebida pois corre o risco de não conseguir voltar pra beira do palco. Mesmo que consiga ir comprar uma pá de brejas e ainda retornar até o lugar antigo, através de vários contorcionismos corporais e chegas-pra-lá mau-educados, ainda vai sofrer com o DILEMA DO MIJO. Quem bebe muito necessariamente faz inchar sua bexiga urinária, o que mais cedo ou mais tarde vai exigir que se tome uma atitude - ou se vai ao banheiro, com o risco de ter que ver o show lá de longe, ou se fecha o esfíncter com toda a força desse mundo e se assiste ao show inteiro com a terrível dor da retenção. Pode-se, claro, não beber nada (e a carteira agradece), mas aí ocorre outra coisa terrível: a sobriedade. O delicioso delírio alcóolico, que sempre faz com que a música penetre em nossos seres com muito mais fluidez e muito menos barreiras, não está lá para lubrificar as orelhas e o cérebro. Estar sóbrio é muito triste. É indubitavelmente uma das coisas mais tristes da vida.

E tem mais: a aglomeração humana faz a temperatura se erguer ao nosso redor de maneira incrível. Mesmo na noite fria e garoenta de São Paulo, o calor no meio do povo era o mesmo de uma sauna a vapor superlotada; eu rezava para que começasse a chover, gear, nevar... Barrado pela multidão de cabeças, o ar também tinha dificuldades em chegar às narinas. Não foram poucos os que acabaram por desmaiar. A música, portanto, teria que ser boa demais pra fazer a experiência toda valer a pena. E não era exatamente isso que estava acontecendo.

O Mundo Livre S/A fez o lance deles. Um tanto previsível, não muito empolgante. O que me preocupa é essa mania que Fred 04 começou a ter nos últimos tempos de fazer músicas-discurso; se os discursos fossem um pouco melhorzinhos, com umas rimas ou um tanto de musicalidade, tudo bem, mas me parecem cada vez mais como um amontoado de clichês esquerdistas. A ironia barata que ele usa para satirizar o consumismo naquela música nova ("Sol") me pareceu constrangedora. Em certos momentos, um show do Mundo Livre pára de ser música e passa a ser comício. E é uma banda sem energia em cima do palco. Definitivamente funciona melhor em disco.

A M.I.A., sinceramente, foi algo que eu assisti cuspindo xingamentos mentais e olhares de desprezo. Não sei se é porque sou um puto preconceituoso e só consigo gostar de "arte burguesa", mas esse tipo de música proletária me deixa com um pouco de nojo. Não entendo como pode tanta gente da crítica entendida falar bem desse negócio horrendo. Pra mim é puro funk carioca vulgarzérrimo e acerebral, que pode até servir como música para dança, mas que não se sustenta como música para os ouvidos: é um som totalmente sem melodia, sem harmonia, sem groove, sem nenhum talento vocal ou instrumental, onde tudo acaba se reduzindo às batidas eletrônicas quase POPERÔ e aquele rap tosco de atitude sexista. Pode até ser que as letras da mina digam algo que preste, o que eu não tô muito interessado em descobrir no futuro recente, mas nenhuma letra genial salvaria aquela música de ser ruim, ruim, ruim... Pra mim a M.I.A., me perdoem os fãs (que existem! juro que sim!), num passa de um odiável e simplório PANCADÃO com GEMIDINHOS. Eu vi uma pá de dedos médios se levantando na platéia e mirando a pequena rapper azulada no palco. E até dei razão...

O Arcade Fire também se mostrou um tanto decepcionante, o que talvez só tenha acontecido porque fui ao show com expectativas muito altas. Claro que a entrada da banda foi um considerável melhoramento em relação à atração anterior, o que não quer dizer muita coisa: até a Avril Lavigne seria um melhoramento depois da M.I.A. (e eu até curto a Avril Lavigne, sério mesmo). E claro que não há dúvida de que o Arcade Fire é uma das bandas mais promissoras que surgiram nos últimos anos e que "Funeral" é um baita dum discaço (um dos 25 melhores desta meia-década, com certeza). O que tenho a objetar é: a desgraça do som estava BAIXÉRRIMO, o que acabou por estragar tudo. Mancada da organização do TIM. Minha opinião é que show tem que ter um som ensurdecedor: se o máximo que o ouvido humano pode suportar são 90 decibéis, os organizadores tem a OBRIGAÇÃO de derramar sobre nós pelo menos uns 270! Não vou a shows para ter meus tímpanos respeitados. Quero sentir meus ouvidos pulsando e se tencionando até às beiras da explosão! Quero que o meu corpo inteiro esteja totalmente vibrando com o terremoto sonoro! E durante o show do Arcade Fire tudo estava tão lá em baixo que eu ouvia muito mais a voz do povo cantando do que a do vocalista. O violino, então, tava quase inaudível. O show dos canadenses só poderia realmente funcionar se eu me sentisse totalmente ENVOLTO EM SOM, capaz de ser hipnotizado pela música. Além do mais, a música do Arcade Fire, um tanto intimista e introspectiva, não combina tão bem com um showzão-estádio, nem muito menos seguindo a tecneira rasteira da M.I.A. Um show dos caras ficaria melhor num clubezinho pequeno e meio sombrio, com uns sofás e uns puffs espalhados pelo chão, umas luzes vermelhas de laboratório fotográfico e uns castiçais de vela iluminando, uns incensos queimando, todo mundo ouvindo de olhos fechados... Know what I mean?

Aí veio o Kings of Leon. Não sei se são as minhas pernas sedentárias que são fracotas demais, talvez porque nunca fui lá muito amigo dos exercícios físicos, ou se é algo que ocorre com quase todo mundo, mas eu simplesmente num me aguento em pé por um festival inteiro. Lembro que no TIM de 2003 o show dos White Stripes foi um tanto "estragado" pra mim por causa da imensa dor que eu tinha que suportar só pra permanecer de pé - e acabei curtindo bem mais o Super Furry Animals e o The Rapture. Algo parecido aconteceu neste TIM: quando o Kings of Leon estava no palco, minhas pernas já estavam mais cansadas do que as dum maratonista olímpico, e talvez isso tenha me levado a gostar tão pouco da performance da banda. Não me empolgou nada. Eu torcia para que aquela porcariada acabasse logo, que aquele vocalista de voz enjoada e cara de mau parasse de sujar o ar com sua cantoria, e que viessem logo os Strokes. No fundo, não consigo ver como se pode falar bem de uma bandinha tão meia-boca quando o KoL: dessa nova geração rocker surgida nesta década - e que inclui Strokes, White Stripes, Franz Ferdinand, Libertines, Black Rebel, Hot Hot Heat, Art Brut, Arcade Fire, Radio 4... - o Kings of Leon me parece ser de longe a mais medíocre e a que menos merece o hype. Um show apagado, sem diversão, sem tesão, de uma banda que, por mim, merece cair rapidinho no esquecimento.

Depois desse monte de rabugices e reclamações, pode ficar parecendo que odiei essa maldita noite. Mas não. Ainda teve Strokes. E isso merece mais palavras.

* * * * * * * * * * * * * *

THE S T R O K E S.



"even tough it was only one night
it was FUCKING STRANGE!"


Os Strokes têm essa capacidade incrível: são uma banda mó retrô e ao mesmo tempo conseguem chegar a um som que soa fresco e novo. De certa maneira, a música deles "só" revisita grandes bandas do passado num xerox por vezes descarado. Mais do que com o Velvet Underground, os Strokes sempre me pareceram mais conectados com aquelas ótimas, divertidas e pouco ambiciosas bandas de punk e new wave dos anos 70: os Buzzcocks, os Undertones, o Wire, os Stooges, os New York Dolls, o Television, os Heartbreakers de Johnny Thunders. Até dá pra notar um pouco de influência dos rockinhos anos 60, principalmente daquela geração de bandas garageiras que entraram na clássica caixinha da Nuggets (Seeds, Electric Prunes, Sonics, 13th Floor Elevators, Amboy Dukes, entre outras). O vocal de Julian Casablancas, uma mistura de Lou Reed jovemzinho, Jim Morrison e Iggy Pop, sempre foi a alma e o diferencial da banda. Eu costumava achar que a voz do cara devia certamente passar por algum filtro de distorção para que pudesse soar tão god damn cool, mas parece que ele canta naturalmente daquele jeitinho sujo sem precisar de auxílio de efeitos artificiais. Confesso: eu adoro a voz desse puto.

Eu tinha até me esquecido do quanto eu cheguei a amar louca e incondicionalmente os Strokes anos atrás: quando "Is This It?" começou a ganhar uma fama enorme na Internet, num dos primeiros casos de NETHYPE MONSTRO da história do Pop, o tamanho da minha empolgação era imenso. Não só meu, como de grande parte da imprensa inglesa, NME à frente dela. Um crítico chegou até mesmo a comentar que os Strokes receberam uma quantidade de publicidade em 2001 pra fazer Osama Bin Laden invejoso. E dessa vez eu achava que sim, do believe the hype! Todo o falatório antes de lançarem o álbum propriamente dito, cujo lançamento seria atrasado por certos contratempos: a capa original, em primeiro lugar, foi considerada demasiado pornô em alguns países do mundo e teve que ser substuída por outra mais inofensiva; a música "New York City Cops", por sua vez, foi considerada inadequada para lançamento por conter o refrão "policiais de Nova York não são muito espertos!", algo não muito apropriado a virar hit popular nos tempos pós-11 de Setembro. Nos EUA, o disco saiu com a capa não-pornô e com o B-side "When It Started" no lugar de "NYC Cops"; no resto do mundo, saiu como a banda quis que saísse.

Se me perguntassem, em 2001, quais eram as 5 melhores bandas de todos os tempos, os Strokes estariam na lista - e os Beatles não. O "Is This It" era disco de cabeceira: ouvi até não poder mais, até saber cantar junto todas as músicas, até enjoar. Eu adorava berrar junto com o refrão de "NYC Cops" ou "Take It Or Leave It", brincar de gago no "g-g-g-g-g-g-gooooo" em "The Modern Age", balançar a cabeça ao som das guitarrinhas deliciosas de "Someday" ou "Soma"... "Is This It" era um dos meus discos prediletos naqueles momentos em que eu queria me fingir de rock star trancado dentro do quarto, pulando em cima da cama, segurando a guitarra invisível e agradecendo às multidões imaginárias! Ó doces delírios! O "Superunknow" do Soundgarden também era foda, mas eu nunca conseguia fazer minha cantoria parecer com a Chris Cornell; com o "Nevermind" eu não tinha o gás suficiente para berrar - em "Stay Away", por exemplo, o berralheiro era muito mais prolongado do que eu poderia acompanhar; com o Jeff Buckley era covardia: tentar acompanhar o cara no final de "Grace" era competir com um cara inalcansável...

Depois meio que me esqueci que gostei tanto dos caras. Os Strokes estavam um tanto relegados às sombras, no quintal da minha mente, depois da semi-decepção que foi o "Room on Fire". Não acho um disco mau, longe disso; é totalmente curtível. E tem "Reptilia", que é uma das músicas mais foda do mundo. O problema é que falta nele um pouco de ousadia e de originalidade. O segundo disco dos Strokes não surpreendeu nada; eles fizeram exatamente o que se esperava que fizessem, o que acabou tornando "Room On Fire" um disco um tanto previsível, como uma cópia do primeiro, que falhou em causar tanto impacto quanto a novidade em 2001. "NYC's finest have all but given birth to an identical twin", escreveu a Pitchfork. Até mesmo os Strokes parecem curtir mais o disco de estréia: tanto que o tocaram INTEIRAÇO, de cabo a rabo (mas não na ordem do álbum), enquanto que de "Room On Fire" só tocaram umas 5.

O show dos caras veio para fazê-los subir de novo para o pódio das minhas bandas prediletas. Eu que sempre sou meio PÓLIPO nos shows, ficando plantadão no chão e somente arriscando uns movimentos com a cabeça e umas batidinhas com os pés, finalmente saí voando nas asas sônicas de Julian Casablancas e companhia. Eu pulei e berrei nessa porra desse show como se tivesse endemoniado, como se essa fosse minha última noite na Terra, como se não existisse nenhum futuro... Esqueci completamente que as minhas pernas estavam fodidas de cansaço e simplesmente me entreguei à ridícula histeria de um fã endoidecido. Os detratores podem xingar o som dos Strokes de ser "pouco original", de ser "paga-pau do passado", ou dizer que eles não têm muita "presença de palco", já que mal se movimentam, e que o baixista parece pregado no chão por raízes, e que as músicas são todas muito parecidas, e que o hype é maior do que eles merecem, e que são uns playboyzinhos, e que as roupas do Julian fazem com que ele pareça um LORDE... no fundo eu só vou responder: I KNOW IT'S ONLY ROCK AND ROLL, BUT I LIKE IT. I FUCKING LOVE IT!

O Strokes é uma banda humilde. Não é culpa deles se a mídia inteira acabou os erguendo ao status de Salvadores do Rock. Não vejo neles nenhum sinal visível de messianismo ou de cuzãozice rock-star. Esses cinco moleques de Nova York só querem mesmo continuar fazendo esses seus rockinhos deliciosos e tornando nossas vidas mais divertidas e mais cheias de ritmo e excitação. Pra que existe a música pop, afinal? Certas músicas são tão boas que, durante aqueles três ou quatro minutos, nada no mundo existe além delas: nenhuma preocupação, nenhum medo, nenhuma esperança, nenhuma nostalgia, nenhum futuro, nenhum passado; nosso ser inteiro mergulha naquele som e a vida subitamente, pelo menos por esses instantes, passa a ser deliciosa, alegre, justificada, prazer puro. Mesmo que não faça sentido. Mesmo que seja finita. Mesmo que seja absurda. Mesmo que tudo tenha que acabar... A música pop talvez sirva principalmente para isso: para a celebração do momento. E os Strokes fizeram isso por mim: me fizeram "sair do tempo" e sentir a vida pulsando no presente, quando ela sempre pulsa, pra todos nós, em outros tempos, no tempo dos sonhos, no tempo das memórias, no tempo do tédio... a vida pulsando num presente todo feito de alegria, de despreocupação, de momento, de refrões e riffs e batidas fodidos. Saí purificado.

Valeu, caras. Valeu mesmo.

quinta-feira, 27 de outubro de 2005

vou fazer assim: primeiro o que veio depois e depois o que veio antes.



T E L E V I S I O N
Sesc Pompéia
25/10/2005

Uma onda de reuniões de bandas históricas do proto-punk começou a rolar nos últimos tempos, e o melhor: o Brasil tem sido praia obrigatória onde todas elas vieram ancorar. Antes eu lamentava, cheio de nostalgia pelo que não vivi, porque nunca mais iria poder ver à minha frente nenhuma daquelas bandas que fizeram de "Mate-me Por Favor!" um dos livros que eu mais curti ler na vida. Felizmente, esses monstros do passado resolveram ressuscitar: o MC5 reformado já veio pro Campari e matou a pau num show inesquecível; agora veio também o Television, com sua formação original; e logo mais São Paulo vai poder ver Iggy e os Stooges no Claro Que é Rock. Sequência nada má para um ano que foi um dos melhores da história deste país em termos de shows internacionais.

Nesta terceira-feira última, a formação original do quarteto americano Television aterrisou na choperia do SESC Pompéia (um lugarzim trim) para mostrar ao povo paulista o que já tinham visto os cariocas que foram ao TIM Festival: um guitar rock complexo e virtuosístico tocado com grande técnica e perícia, mas realizado por uns tiozões um tanto acabados e sem entusiasmo. Foi ótimo ver o show muito de perto, podendo prestar atenção em todos os mínimos detalhes: as veias na mão esquerda de Tom Verlaine; o setlist pregado com fita crepe no chão; a camiseta de Richard Lloyd posta ao avesso... Eu tava tão perto que poderia até ter acertado uma cusparada na cara de algum deles, se quisesse. Já pensou que história clássica pra contar pros netos? "Eu cuspi na cara do Tom Verlaine! Juro por Deus!"

"Não muita gente conhece o Television, mas eles estão em todo lugar. Estão nas guitarras desconstruídas do Sonic Youth, nas notas sincopadas e garageiras dos Strokes, nos solos improvisados do Queens of the Stone Age, na crueza de PJ Harvey...", escreveu bem o Tiago Ney na Folha de São Paulo. Pois é: eis aí mais um caso de banda que marcou mais por influência em outras bandas do que por sucesso popular. Hoje é um tanto difícil enxergar porque diabos o Television foi tacado no meio do balaio punk: parece fazer mais sentido dizer que aquilo que fazem é rock progressivo ou new wave ambiciosa. Nem chamá-los de precursores dá: já era 1977 quando foi lançado o "Marquee Moon" (leia resenha da Pitchfork), clássico primeiro disco de Verlaine e companhia, e o som ali registrado não tinha muito a ver com o dos Ramones, dos Pistols e do Clash (bandas que já estavam na ativa). Apostando num virtuosimo instrumental centrado em duelos guitarrísticos (que por vezes se estendiam em improvisos quilométricos) e nas letras poéticas e um tanto surreais de Tom Verlaine (que tem um sobrenome imponente para um pretendente a poeta...), o Television nunca teve a visceralidade e a barulheira que fizeram a fama do punk.

Sem dúvida que valeu a pena ter visto de perto essa entidade histórica do rock americano dos anos 70, mas, infelizmente, o Television deu amostras de cansaço e falta de vitalidade. Em cima do palco, todos os quatro músicos, todos já sessentões, parecem um tanto apáticos, soturnos e excessivamente sérios. Não se comunicam com o público nem entre si, e também não parecem estar se divertindo muito com a música que produzem. Tom Verlaine, magricela e altão, parece o pai de Thurston Moore ou Mark Arm, um tiozão do guitar rock que já nota a calvície tomando parte de seu crânio. Com voz débil e uma timidez imensa, Verlaine cantou baixinho e não teve coragem de berrar quando era a hora certa para isso (no "eeeeeevvvvvviillll!" de "See no Evil", por exemplo) e acabou fazendo uma performance vocal medíocre.

Já o guitarrista Richard Lloyd, disparado o melhor músico da banda, permaneceu o show inteiro com aquele cara de diarréia dele, como se estivesse ansioso pra que o show acabasse logo pra poder ir no banheiro. Parece que aquela é a fisionomia natural dele, nada a ver com desarranjos intestinais. Mas bem que parecia careta de retenção anal...
A cara de poucos amigos de Lloyd e a aparente falta total de qualquer conexão afetiva entre os membros da banda me deu uma má impressão: parecia que ali em cima do palco estavam caras que, se concordaram em voltar aos palcos e lançar disco novo ano que vem, não foi certamente por amizade ou por gosto pela convivência. Não, aquilo estava longe de ser uma BANDA DE AMIGOS. O que não impediu que a música, muito bem ensaiada e tocada com imensa competência, agradasse aos ouvidos, especialmente as guitarrinhas interpenetrantes de Verlaine e Lloyd. Destaque para o "hit" "See No Evil" (cantado junto por grande parte do povo presente), o imenso guitarrismo viajante de "Marquee Moon" (que musiquinha foda!) e a versão para "Knocking On Heavens Door" de Bob Dylan.

Mas, sério: a perícia técnica dos caras é incrível, mas o tesão de tocar e a empatia com o público eram praticamente inexistentes, o que estragou um pouco o gosto do show. O Television inteiro me pareceu um tanto antipático, humanamente falando. Quem viu o MC5 no Campari sabe: Wayne Kramer, naquela ocasião, conseguiu fascinar o público e fazer daquela noite algo de extremamente especial para quase todo mundo ali dentro pois estava extremamente empolgado e radiante em cima do palco... O Television, por sua vez, voltou um tanto triste e apático, uma pálida sombra perto do vulcão que foi o Motor City Five irradiando energia e juventude...

terça-feira, 25 de outubro de 2005

coisinhas pra baixar



ARCADE FIRE - "Funeral" (2004)
FRANZ FERDINAND - "You Could Have It So Much Better With..." (2005)

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quinta-feira, 20 de outubro de 2005

Puta duma maratona de shows afudê nos próximos dias, o que vai fazer com que o blog fique paradão pelo menos até quinta feira que vem. Talvez na volta, se estiver vivo e não precisar ficar internado no hospital operando meus tímpanos estourados, eu diga algumas palavras sobre essa sequência mortífera que PROMETE: Funk Como Le Gusta - King Khan & The Shrines - Mundo Livre S/A - M.I.A. - Arcade Fire - Kings of Leon - Strokes - Cidadão Instigado - Television.

Já disse mas repito: SEM MÚSICA A VIDA SERIA UM ERRO.

mais no iscrínin:

TOMMY (de Ken Russell / The Who, 1975) - 3.0

HIROSHIMA MEU AMOR (de Alain Resnais) - 8.5
(FRANZ KAFKA'S) O PROCESSO (de Orson Welles) - 8.0
THE LAST WALTZ (de Martin Scorcese, 1976) - 6.2
A WOMAN UNDER THE INFLUENCE (de John Cassavetes, EUA, 1974) - 9.3
REPULSA AO SEXO (Repulsion, de Roman Polanski, 1965) - 6.0
VIRIDIANA (de Luis Buñuel, México, 1961) - 6.4
GLÓRIA FEITA DE SANGUE (Paths of Glory, de Stanley Kubrick) - 8.0
GABINETE DO DOUTOR CALIGARI (de Robert Weine, Ale, 1919) - 7.5
WAKING LIFE (de Richard Linklater) - 7.8

MEAN STREETS (de Martin Scorcese, 1973) - 5.5
OS 27 BEIJOS PERDIDOS (de Nana Djordjadze, Alemanha, 2000) - 6.6
QUANDO TUDO COMEÇA (de Bertrand Travernier, França, 1999) - 7.0
(ROBERT CRUMB'S) FRITZ THE CAT (de Ralph Bakshi, EUA, 1972) - 7.8
O PREÇO DA AMBIÇÃO (Swimming With Sharks) - 7.7
OS IRMÃOS GRIMM (de Terry Gilliam, EUA, 2005) - 6.0
O LIVRO DE CABECEIRA (The Pillow Book, de Peter Greenaway) - 6.5
TUDO O QUE VOCÊ SEMPRE QUIS SABER SOBRE SEXO (de Woody Allen) - 5.5
WONDERFUL DAYS (de Sunmin Park e Kim Mun-saeng) - 7.8
ESTRANHAS LIGAÇÕES (Carnages, de Delphine Gleize, França, 2002) - 9.0

NENHUM A MENOS (de Zhang Yimou, China, 1999) - 6.0
24-HOUR PARTY PEOPLE, (de Michael Winterbottom, U.K., 2002) - 8.5
ALPHAVILLE (de Jean Luc Godard, França, 196x) - 7.0

domingo, 16 de outubro de 2005



24 HOUR PARTY PEOPLE
de Michael Winterbottom
(2002)


A LENDÁRIA MADCHESTER


Entre 1976, quando os Sex Pistols estavam prestes a explodir na Inglaterra, e 1992, quando a poeira levantada pelos Happy Mondays e pelos Stone Roses começou a baixar com a ascensão do grunge americano, a cena musical de Manchester teve como pivô um cara que fez muita coisa acontecer: Tony Wilson. É ele que vai servir como narrador e personagem principal de 24 Hour Party People, divertido e pedagógico passeio de Michael Winterbottom pela música pop inglesa em alguns de seus momentos mais brilhantes das últimas décadas.

A ação começa quando os Sex Pistols dão seu primeiro "show" em Manchester, em 1976, para uma "multidão ensandecida" de cerca de 40 pessoas, numa performance que depois será descrita por Tony Wilson como clássica, histórica, fenomenal... apesar do miudíssimo número de espectadores e da evidente falta de entusiasmo que a maioria deles demonstrava pela banda. Tony, o do filme, em um dos momentos mais hilários da história das piadas de rock no cinema (De Volta Pro Futuro e sua piada sobre o Van Halen perde.), justifica sua empolgação: sim, só tinham umas três dúzias de pessoas vendo os Pistols, "mas quantas pessoas tavam na porra da Santa Ceia? Só cinco pessoas viram o primeiro avião decolar! Arquimedes estava sozinho em sua banheira! Quanto menos gente está lá, mais histórico é!"...

A ação acaba quando Tony têm uma conversa com Deus e faz um balanço de sua existência frente ao Criador depois de ter fumado um baseado de Barbados arranjado por um decadente Shaun Ryder, que acabava de gastar os 200 mil dólares que tinha para gravar o novo disco dos Happy Mondays em drogas, festas e putas. Entre uma coisa e outra, Tony Wilson arranjou um jeito de enfiar seu nome na história do pop sem ter precisado jamais ter tocado um instrumento ou cantado uma nota - como fizeram também Malcolm McLaren e John Sinclair.

Formado em jornalismo, Wilson se tornou figurinha conhecida dos brits como apresentador de TV em alguns programas toscos tipo Roda da Fortuna e fazendo reportagens um tanto bizarras sobre discos voadores e vôos de asa delta. Mas foi seu amor pelo rock and roll que fez com que ele se mexesse para fazer a "cena" de Manchester pegar no tranco. Primeiro com um programa punk que apresentava na TV aberta chamado "So It Goes", que fazia hype pra cima de artistas punk então tidos como piada ou lixo social, e que chamava a juventude para frequentar os barzinhos onde rolava o bom som. E depois com a criação de um clube noturno meio tosqueira onde podia botar o pessoal pra tocar, inclusive seus protegidos (que nunca vingaram) A Certain Ratio e Vini Reilly (o vocalista do Durutti Column).

Os negócios logo foram expandidos: a Factory, que antes era somente um clube noturno onde tocavam figurinhas cult do rock de Manchester, virou a Factory Records, antológica gravadora que, nascida em 1978, na hora certa para registrar em fita a fase de ouro do pós-punk e a da new wave, revelou ao mundo o Joy Division, o New Order e os Happy Mondays. E que é até hoje um exemplo de indie label que respeita a liberdade artística das bandas contratadas ("all bands have the freedom to FUCK OFF!", dizia o "contrato"). E mais: foi ele, Tony Wilson, quem criou e chefiou uma das principais boates - a mundialmente famosa Hacienda - que serviu como palco para a explosão do dance-rock de Manchester naquela época do rock contemporâneo que a crítica apelidou de Madchester.

O filme de Winterbottom, viajando através dos anos, vai focar sua atenção principalmente em dois períodos e dois personagens: Ian Curtis e Shaun Ryder, símbolos do pós-punk e do groovy rock chapado madchesteriano.

Tony Wilson estava lá pra acompanhar de camarote a rápida ascensão e queda do Joy Division, banda que nasceu na esteira dos Pistols e dos Buzzcocks, fazendo um punk de batida mecânica, guitarras graves e vocais soturnos, e que foi cada vez mais se tornando a banda mais depressiva da história conhecida da música pop. Gravaram com a Factory dois álbuns hoje considerados clássicos - "Unkown Pleasures" de 1979 e "Closer" de 1980, ambos produzidos pelo malucão Martin Hannett (um dos personagens mais comédia do filme). Mas a banda estava fadada a acabar rápido. O vocalista esquisitão e maníaco-depressivo Ian Curtis, que costumava se entregar a estranhíssimas e constrangedoras dançinhas em cima do palco, parecendo um interno da APAE, e que tinha constantes ataques de epilepsia, deixava pelo caminho versos cheios de desolação e desespero. Hoje não surpreende nem um pouco que tenha escolhido o destino que escolheu: a corda.

Quando Ian se enforcou em 1980, aos 23 anos de idade, deixando pra trás esposa e filho pequeno, num espetáculo que cerca de quinze anos depois veríamos de novo com Kurt Cobain, passou direto do status humano para o de mito. "Love Will Tear Us Apart" só viraria um hit - e uma espécie de hino-loser para os jovens perdidos dos anos 80 - quando Curtis já não era desse mundo. Essa história, que daria sozinha um ótimo filme, que se preocupasse mais em investigar a personalidade de Curtis e que retratasse com mais cuidado seu suicídio, já merecia faz tempo ser filmada. As coisas aqui são contadas com realismo, sem excesso de pagação de pau, e o ator que teve a difícil tarefa de interpretar Ian manda bem. Mas dá pra suspeitar que certas coisas foram retratadas de um jeito que faz a coisa parecer mais legal do que realmente foi. Fala sério: a galera conseguia mesmo DANÇAR com tanta animação ao som de Joy Division como se estivessem frente a uma banda de ska? É tão inacreditável quanto rebolar ao som da "Marcha Fúnebre" ou fazer cara de Mary Poppins no funeral da mãe. E Tony dizer que "Ian é a versão musical de Che Guevara" num é um puta dum absurdo exagerado?

Depois da morte súbita de Ian Curtis, as coisas poderiam ter ficado pretas para a Factory. E de fato ninguém acreditava que o New Order, a banda formada pelos três remanescentes do Joy Division e chefiada pelo guitarrista e agora vocalista Bernard Summer, fosse realmente vingar. Quando "Blue Monday" se tornou um dos singles mais vendidos da história da música pop, Tony Wilson percebeu que nem tudo estava perdido. A grana arrecada pelo mega-sucesso foi quase toda investida na estilosa e moderna Hacienda. Lá algo de histórico aconteceria, mais para o fim dos anos 80.

A mais nova banda que a Factory estava tentando emplacar, os Happy Mondays, chegavam à cena com uma mistura picante e divertida de rock e dance music, algo de barulhento e colorido, estranho e groovoso, definitivamente novo. Numa Manchester que via os comprimidos de ecstasy se multiplicando aos milhares e as gangues de traficantes guerreando nas ruas, nasceram dois discos clássicos - "Pills, Thrills and Bellyaches" e "Stone Roses" - que marcaram a história do rock inglês e puxaram todos os holofotes do mundo para a louca Manchester. Ela se tornou o centro do universo: as melhores drogas, as melhores boates, as melhores bandas, as melhores festas, as minas mais gatas, as modas mais bizarras, estavam todas ali. Ao mesmo tempo, percebeu-se que colocar uma banda pra tocar não era tão importante: um D.J. soltando a tecneira era o que bastava. Tony Wilson se gaba para as câmeras de que foi dentro da Hacienda que aconteceu o momento histórico: o nascimento da cultura rave, a beatificação da batida, o endeusamento do ecstasy e das festas que duram dias. Shaun Ryder, líder dos Happy Mondays, se tornou uma espécie de profeta da nova Era, vivendo até o limite na base do excesso nas drogas e no esquema do festa-24-horas-por-dia. A coisa, claro, não podia durar por muito tempo. Os Mondays só deixaram um disco realmente fodão, os Stone Roses só dois, e toda a cena Madchester virou história.

Apesar de totalmente baseado em fatos reais, 24 Hour party People não é um documentário, mas uma reconstrução ficcional de uma época do rock que merecia ser retratada no cinema. Hilário vezes sem conta e munido de uma trilha sonora muito adequada ao espírito do filme, 24 Hour... é um dos melhores filmes de rock que eu já vi, talvez mais foda do que os muito mais renomados e conhecidos Quase Famosos, Velvet Goldmine e Escola de Rock. Se bem que decapite o realismo em certos momentos e se entregue à construção de mitos, o filme de Winterbottom empolga, instrui, diverte e deixa para a posteridade um retrato fiel desses cerca de vinte anos históricos da música pop na Louca Manchester.

* * * * * * LEIA MAIS: * * * * * * * *
WIKIPEDIA - - - SALON - - - - HISTÓRIA DA FACTORY - - - -
ROLLING STONE - - - - CINEDIE - - - - ROTTEN TOMATOES

sábado, 15 de outubro de 2005

mais gracinhas.

PÉROLAS DE INTELIGÊNCIA
...as mais clássicas das burrices da negada no vestibular...

* Lavoisier foi guilhotinado por ter inventado o oxigênio.
* O nervo ótico transmite idéias luminosas ao cérebro.
* O vento é uma imensa quantidade de ar.
* Os egípcios antigos desenvolveram a arte funerária para que os mortos pudessem viver melhor.
* A principal função da raiz é se enterrar.
* As aves têm na boca um dente chamado bico.
* Os ruminantes se distinguem dos outros animais porque o que comem, comem por duas vezes.
* A arquitetura gótica se notabilizou por fazer edifícios verticais.
* O Chile é um país muito alto e magro.
* As múmias tinham um profundo conhecimento de anatomia.
* As plantas se distinguem dos animais por só respirarem à noite.
* As glândulas salivares só trabalham quando a gente tem vontade de cuspir.
* A capital de Portugal é Luiz Boa.
* Na América Central há países como a República do Minicana.
* A Terra é um dos planetas mais conhecidos no mundo.
* Ecologia é o estudo dos ecos, isto é, da ida e vinda dos sons.
* Resposta à pergunta: "Em quantas partes se divide a cabeça?" Resposta: "Depende da força da cacetada".
* Evaporação é quando a água que colocamos num copo aplica o verbo reflexivo "se mandar".
* Batuta é aquela varinha que os maestros usam para ameaçar os músicos, caso estes toquem errado. (respota de um candidato ao curso de Música)
* Parêntesis é o grau da família que existe entre os pais e filhos, tios e sobrinhos, avós e netos, primos e primas, etc.
* Pergunta: Qual a sua opinião sobre a importância do Vale do Paraíba?
Resposta: O Vale do Paraíba é de suma importância, pois não podemos discriminar esses importantes cidadãos. Se existem o vale-transporte e o vale-idoso, por que não o vale-do-paraíba?

sexta-feira, 14 de outubro de 2005

ó só a capa da cult...

terça-feira, 11 de outubro de 2005



ETTY HILLESUM

"Uma Vida Interrompida - Diários 1941-1943"
(ed. Record.; tradução de Antônio C. G. Penna)


O Holocausto foi certamente uma das manchas mais vergonhosas da história humana (que não tem poucas), algo tão monstruoso e demoníaco que é capaz de abalar para sempre, no coração de quem o reconhece de frente, uma série da crenças, que caem em efeito dominó: a fé na humanidade, no progresso da história, na vitória certa do Bem, na existência de um Criador justo e bondoso que fica sentado em sua nuvemzinha a zelar pelos destinos de suas criaturas... Mas é evidente que não é por isso que devemos esquecê-lo, fingir que não existiu, apagá-lo da memória. Não: é importante se lembrar desse gigantesco erro para que não se volte a repeti-lo nunca mais, para que ele permaneça frente à nossos olhos como um exemplo supremo do Mal, como um souvenir do horror que deve sempre estar lá para nos deixar enojados e nos fazer repelir qualquer coisa que se assemelhe a ele... Suspeito que quase todo mundo quer mais é fechar os olhos para as merdas do mundo e crer que as coisas são mais de acordo com o que gostaríamos que fossem. Mas fingir que o mundo é um conto de fadas nunca serviu para torná-lo mais vivível: melhor reconhecê-lo como é, por mais horrendo que seja.

O problema, penso eu, é que não podemos e não conseguimos saber de verdade o que foi o Holocausto. Me lembro das primeiras aulas de história em que fiquei sabendo da existência dessa "coisa": claro que o professor nos transmitiu os "fatos" estabelecidos, com as explicações "corretas", os números "precisos". Sim, ficamos sabendo que "durante a Segunda Guerra Mundial, a Alemanha nazista assassinou 6 milhões de judeus", anotamos a informação no caderno, decoramos tudo pra poder passar na prova, fingimos uma piedade um tanto artifical... Mas não era algo que mexia visivelmente com a vida e a paz de espírito de ninguém. Certamente que surpreendia pela grandiosidade do número, pelo tamanho descomunal do crime, mas não era algo que transtornava a vida ou que nos fazia arder de compaixão. Afinal de contas, somos todos, e mais ainda quando crianças, imensamente egocêntricos, e o sofrimento dos outros é pra nós muitas vezes completamente indiferente. Lembro que uma aula sobre o Holocausto não impedia ninguém de bocejar, de continuar com as conversinhas fúteis de sempre, inclusive com risadinhas, de sair pra ir ao banheiro ou de desejar ir pra casa pois estava quase na hora do Chaves e do Chapolim.

Acho que só começamos a ter uma idéia verdadeira do horror quando começamos a ver as fotos das sepulturas de massa, com aquele amontoado de esqueletos e crânios empilhados, ou quando vemos algum dos inúmeros filmes que o cinema produziu sobre o assunto (A Lista de Schindler, A Vida é Bela, O Pianista, Amém, A Escolha de Sofia, entre muitos outros). É que a coisa é tão monstruosa que se torna difícil de imaginar. Até hoje não consigo fabricar uma imagem mental de 6 milhões de pessoas... tenho que usar artifícios como "são 60 Maracanãs lotados". Mas nem isso consigo imaginar direito...

E mais: a coisa não nos abala quando é só um número, uma estatística, uma massa humana anônima. São 6 milhões que não conhecemos, que não amamos, que não são nossos amigos, nem mesmo conhecidos... enfim, são gente com quem não temos nenhum laço mais forte (além daquele muito frágil que é o pertencimento à mesma espécie biológica), gente por quem não sentimos muita coisa. Como pedir que sintamos piedade desses judeus sem rosto, sem história, sem vida, que se amontoam para formar uma estatística? Não nos compadecemos de números, mas sim de destinos humanos. É somente quando alguns desses rostos assassinados começam a ganhar rosto, e seus rostos a ganhar uma história, que a dimensão da tragédia começa a ser notada de verdade. Saber da história de vida de Olga Benário, por exemplo, é fazer um desses judeus massacrados ganhar um rosto e um passado. A piedade que então somos capazes de sentir por uma pessoa individualizada nos dá a dimensão da piedade monstruosa - e seguramente fatal - que nos tomaria se a sentíssemos por todos que pereceram.

Mais um rosto e mais uma história, pois.


DIÁRIO DE UMA VIDA INTERROMPIDA

Em 30 de Novembro de 1943, aos 29 anos de idade, Etty Hillesum foi assassinada no campo de concentração de Auschwitz junto com seu pai, sua mãe, seu irmão e mais algumas centenas de judeus, todos esmagados como se fossem moscas, baratas, amebas...

Foi somente nos anos 80 que finalmente se publicou na Holanda pela primeira vez uma edição dos Diários que Etty escreveu entre 1941 e 1943, fato que serviu para elevar dos subterrâneos da história uma voz lírica, profunda e sábia que descrevia os horrores nazistas que sentiu na pele, até o fim, até o ponto em que teve a voz rasgada e silenciada subitamente pela máquina de genocídio alemã...

Em 1941, quando o domínio nazista na Holanda começava a se intensificar, Etty Hillesum começou a escrever seu diário (a poucos quilômetros de distância de onde a pequena Anne Frank também escrevia o seu), talvez não imaginando que acabaria por deixar para a posteridade um dos mais tocantes relatos sobre aqueles anos terríveis. Mas não devemos reduzir o livro de Etty a uma obra com interesse unicamente histórico. Ela, aliás, está longe de ser um historiadora ou alguém com grandes conhecimentos de sociologia e ciência política... É apenas uma garota judia talentosa, sensível, doce e inteligente tentando prosseguir com sua vida em meio a uma situação exterior que vai gradualmente esmagando seu povo, seus amigos, sua família, sua vida.

A princípio, os Diários não parecem se ocupar muito com a guerra, o nazismo e o holocausto. Etty Hillesum, garota de tendência introspectiva, fã de poesia (especialmente de Rilke) e interessada em psicologia, se preocupa muito mais em se voltar para dentro de si mesma em uma jornada de auto-conhecimento. Em sua viagem em direção ao mundo interior, vai sondando seu íntimo em busca de respostas para dúvidas sobre o amor, a sexualidade, a conduta na vida, e sempre com um esforço muito estimável em tentar se manter o mais sincera possível, vencendo todas as suas inibições e todo desejo de glória... "Este é um passo doloroso e quase impossível para mim: confiar tanta coisa que esteve escondida a uma folha de papel...", começa ela em sua primeira entrada, confessando que tem em si muito "medo de desabafar e de permitir que as coisas extravasem" . "É como aquele grito final e libertador que sempre fica timidamente preso na garganta quando se faz amor... no mais profundo de meu âmago algo ainda está aprisionado... no mais profundo do meu ser, algo como uma bola de fios de lã bem apertados amarra-me, sem me dar alívio..." (17)

O principal objetivo que Etty se coloca, pois, é escrever sobre sua vida íntima e seus sentimentos confusos a fim de adquirir um pouco de clareza e de lucidez. Nada por aqui é muito grandiloquente ou literário: ela até pode ter tido a ambição de publicar esses diários algum dia, mas a leitura nos faz notar uma espontaneidade e um ausência de artifício que só se encontram nos textos escritos na solidão. O objetivo do Diário, aliás, não é de modo algum registrar o momento histórico; o Diário de Etty Hillesum, como todo diário verdadeiro, é uma tentativa dela pensar sua própria vida e seus próprios problemas - em suma, algo muito mais voltado para o individual do que para o social. "Talvez meu propósito na vida seja preocupar-me comigo, viver às turras comigo, com tudo que me incomoda e me tortura e que clama por soluções internas e por uma organização. Pois esses problemas não são apenas meus. E se ao fim de uma longa vida eu for capaz de dar alguma forma ao meu caos interior, terei cumprido meu pequeno propósito na vida" (47), diz.

E, apesar da preocupante situação política, ela parece atingir nesse momento de sua vida um alto grau de sabedoria e uma de suas fases mais felizes, como mostra um trecho como esse: "Antes eu vivia sempre por antecipação; tinha a sensação de que nada que fazia era a coisa 'real', que tudo era uma preparação para alguma outra coisa, algo 'maior', mais 'autêntico'. Mas esse sentimento desapareceu de mim completamente. Agora eu vivo a hora e a ocasião, este minuto, este dia, integralmente, e a vida vale a pena ser vivida. E se soubesse que iria morrer amanhã, eu diria: é uma grande lástima, mas valeu a pena enquanto durou" (32). Além do mais, "a morte é apenas um suave desaparecimento..."

Pouco a pouco, as medidas dos alemães intensificam a segregação e a humilhação dos judeus holandeses: primeiro eles são proibidos de usar bicicletas; depois não podem mais entrar em nenhum meio de transporte coletivo; são impedidos de circular em bosques, praças e outros locais públicos; são obrigados a ostentar a famosa Estrela de Davi colada ao peito... e não tardam as deportações para campos de trabalhos forçados, que muitas vezes rasgam famílias ao meio... e crescem os rumores a respeito das gigantescas e impiedosas matanças que os nazistas estão infligindo ao povo judeu em dezenas de campos de extermínio. Tudo atinge um ponto em Etty não tem mais condições de se enganar: "...o que está em jogo é nossa iminente destruição e aniquilamento, não podemos ter mais ilusões sobre isso. Eles estão em campo para nos destruírem completamente..." (156).



NAS GARRAS DO NAZISMO

E então o Diário de Etty, antes voltado quase que exclusivamente para problemas pessoais e afetivos, se transforma gradualmente num retrato da situação histórica desesperadora para o povo judeu. E o que acho mais bonito em Etty Hillesum é que ela, em nenhum momento, se deixa tomar pelo ódio, pelo rancor, pela selvageria, pela ferocidade. Frente ao ódio nazista, ela se esforça para não pagar na mesma moeda, como se perguntasse: de que serviria aumentar a quantidade de ódio nesse mundo já transbordante de fúria? Por que nos tornaríamos tão horríveis e tão brutais quanto nossos inimigos? Sobretudo é preciso se salvaguardar contra o grande erro que seria se tornar parecido com os nazistas... "Se permitirmos que nosso ódio nos transforme em animais selvagens como eles, então não haverá mais esperança para ninguém", diz, notando que um dos principais problemas que nota em seus concidadãos é que "o ódio aos alemães envenena a cabeça de todo mundo...". E continua: "Se houvesse apenas um alemão decente, então ele deveria ser admirado, apesar de toda aquela quadrilha de bárbaros, e por causa daquele único alemão decente está errado derramar ódio sobre um povo inteiro... o ódio indiscriminado é a pior coisa que existe; é uma doença da alma" (24-25).

O Diário inteiro persiste, obstinado, nessa recusa do ódio. É evidente que Etty não consegue evitar sentir "uma profunda indignação moral por um regime que trata seres humanos de tal forma", mas essa indignação não se permite nunca utilizar meios brutais e raivosos para se manifestar. Ela recusa até mesmo qualquer tipo de rebeldia e qualquer tentativa mais forte de escapar das garras dos carrascos. Etty, antes de ser mandada para Auschwitz, vai voluntariamente para o campo de Westerbork... Alguns podem até criticar a atitude de Etty Hillesum como "muito fatalista" ou "muito resignada", como se ela tivesse aceitado muito facilmente ser conduzida ao matadouro, como uma ovelinha que pouco reclama... De fato, Etty não se deixa nunca tomar pela histeria, pelo desespero, por qualquer atitude mais enérgica no sentido de salvar-se, como se tivesse aceitado completamente seu destino. E se explica da seguinte forma, num trecho magistral que merece ser citado na íntegra:

"Não é como se eu desejasse cair nos braços da destruição com um sorriso resignado - longe disso. Estou apenas curvando a cabeça ao inevitável, e ao fazê-lo sou amparada pela certeza de que afinal de contas eles não podem roubar-nos aquilo que realmente importa. Mas não acho que me sentiria feliz se fosse excluída daquilo que tantos outros têm que sofrer. As pessoas insistem em dizer-me que alguém como eu tem o dever de esconder-se, porque tenho muitas coisas a fazer na vida, muito para dar. Mas sei que qualquer coisa que eu tenha para dar aos outros, posso dá-la não importa onde eu esteja, aqui no círculo de meus amigos, ou lá, num campo de concentração. E é pura arrogância uma pessoa imaginar-se boa demais para não compartilhar do destino das massas. E se o próprio Deus sentir que eu ainda tenho muita coisa a fazer, então muito bem, eu o farei, após ter sofrido o que todos os outros têm que sofrer. E se eu sou ou não um valioso ser humano, isso só ficará claro a partir de meu comportamento em circunstâncias as mais árduas." (178)

Claro que a resignação de Etty ao seu destino terrível só podia mesmo se sustentar sobre uma crença religiosa que parece crescer em sua mente na mesma proporção em que cresce o perigo e a iminência da morte. Quanto mais difícil se torna a situação, mais ela se ajoelha para orar a seu Deus... Sintomático. Quando estamos impotentes, quando não há nada que possamos fazer para resolver uma situação, quando estamos nessa situação de radical dependência em relação a uma força externa, é aí que a religião se ergue nos corações humanos... E, por mais incrível que pareça, o fato de esse Deus (suposto como bom e onipotente) não ter movimentado um dedo para ajudar quem quer que fosse não parece razão nenhuma para Etty duvidar de sua existência... E ela prossegue tentando crer que "o mundo é belo e a vida é cheia de significação". Pena que eu, frente aos relatos desse horror, não possa dizer o mesmo...

Longe de mim julgar se ela esteve certa ou errada a agir dessa maneira. Como saber o que é certo a se fazer numa situação extrema desse tipo? Deve-se aceitar com estoicismo as pancadas que o destino resolve nos infligir, ou então deve-se espernear, gritar, se revoltar e descer ao túmulo largando palavras do mais puro ódio contra os carrascos? Não sei. O fato é que a atitude de Etty me parece sábia, serena, doce: uma indignação que não descamba para a violência, uma luta que não degenera em ódio, uma recusa em somar raiva à raiva, fúria à fúria. É uma mensagem cristã, se quiserem: mostrar a outra face, recusar o combate, não se deixar arrebatar pelo ódio... Mas é também, antes de mais nada, a atitude de uma garota que se conhece bem demais para acusar os outros de todo mal e se fingir de santinha...

Etty sabe muito bem que no coração e na mente de todos nós repousam vários vícios em potência, várias sementes malignas que podem germinar e crescer se solicitadas pelas circunstâncias e pelas histórias de vida de cada um... Etty Hillesum se exime de condenar os outros pois ela mesma sabe que culpados somos todos, que a capacidade para fazer o mal existe em potência em cada um, apesar de só se manifestar em ato em alguns. "A podridão dos outros está também em nós... Não vejo outra solução a não ser voltar-nos para dentro e erradicar toda a podridão que ali existe. Eu não acredito mais que nós possamos mudar qualquer coisa no mundo antes que tenhamos mudado primeiro a nós mesmos. E esta parece para mim a única lição a ser aprendida desta guerra: que devemos olhar para dentro de nós mesmos e para mais lugar nenhum." (92)

A medicina moral que Etty sugere, pois, é introspectiva: não se deve sair apontando o dedo para os males e vícios alheios antes de erradicar todo o mal pessoal (e ele é muito numeroso, em quantidade suficiente para que se leve uma vida inteira na faxina...). "Acredito que nunca serei capaz de odiar qualquer ser humano por sua suposta 'maldade', que só odiarei o mal que está dentro de mim..." (103). "A verdadeira paz só chegará quando cada indivíduo encontrar sua paz interior; quando tivermos todos dominado e transformado algum dia nosso ódio pelos nossos semelhantes, de qualquer raça, até mesmo em amor - embora isso talvez seja pedir demais. É no entanto a única solução." (148) "...cada um de nós deve voltar-se para dentro e destruir no seu interior tudo o que pensa que deveria destruir nos outros", diz lindamente, antes de concluir: "Lembre-se que cada átomo de ódio que acrescentamos a este mundo o faz ainda mais inóspito" (210)...

sexta-feira, 7 de outubro de 2005

(obs: criei uma nova seção chamada "Mestres", onde vou pôr alguns textos que eu realmente curto, o que vai servir tb pra que sempre haja material novo por aqui mesmo quando estou em uma fase não muito produtiva... o único inédito que coloquei por lá é o seguinte ensaio - irretocável... - do Bobbio sobre o Mal. Sei que é grande pacas, mas vale a pena.)

"OS DEUSES QUE FRACASSARAM"
(Algumas questões sobre o problema do Mal)
de Norberto Bobbio
trecho extraído do livro "Elogio da Serenidade" (Ed. Unesp).
(os grifos são meus.)

Os acontecimentos de Sarajevo superaram, de todos os pontos de vista - o histórico, o ético, o da oportunidade política ou o da própria conveniência econômica -, os limites do compreensível, para além dos quais nasce inevitavelmente a questão da presença invencível do Mal no mundo. Uma daquelas questões que não conseguimos responder com as luzes da razão e que costumamos chamar, com uma palavra sibilina, de "metafísicas".

O problema do Mal se impõe à nossa atenção com particular força no caso de eventos catastróficos, pouco importando se seus protagonistas são a Natureza ou a História. Em nossa memória mais recente, são dois os acontecimentos que mais discussão provocaram sobre o tema: Auschwitz e a queda do muro de Berlim. O primeiro representou um desafio sobretudo para o homem de fé; o segundo, sobretudo para o homem de razão. Ressoaram repetidamente, em nossos ouvidos, duas questões: a) "Por que Deus não só silenciou, mas permitiu que se consumasse o impressionante massacre, que não teve precedentes na história, seja pelo número de vítimas, seja pela ferocidade inerente aos meios empregados?"; b) "Por que o mais grandioso movimento que pretendera emancipar o homem do domínio, da exploração e da alienação transfigurou-se em seu contrário, ou seja, em um Estado politicamente despótico, economicamente ineficiente e moralmente ignóbil?". Os homens de razão ficaram tentados a falar em "derrota de Deus"; os homens de fé, em "suicídio da revolução".

Na realidade, não foram apenas os homens de fé que, diante do fim catastrófico da Revolução Comunista, falaram em "utopia invertida", e não foram apenas os homens de razão que falaram em "derrota de Deus". Quando li o livro de Sergio Quinzio, que tem precisamente esse título, fiquei impressionado. Como não crente, que não obstante tudo permanece na soleira da porta, eu jamais teria imaginado que o homem de fé pudesse falar com tanta liberdade do fracasso do cristianismo que não cumpriu suas promessas, do insucesso do Crucifixo. A história de Deus é, desde as primeiras páginas da Bíblia, "uma história de derrotas". Após dois mil anos, "os mortos não ressuscitaram e o espaço para a fé diminuiu monstruosamente"; "não podemos mais acreditar num Deus que exige um infinito preço de sangue e de lágrimas em troca de uma solução que até agora ninguém viu"; "o Deus que se ofereceu a nós, que espera de nós a salvação, é um Deus que devemos perfeitamente amar, mas que nos fez ficar cansados demais, desiludidos demais e infelizes demais para conseguir fazê-lo". Análogas deplorações entristecidas, amargas revisões e confissões autocríticas, não menos sinceras, sobre o homem novo que não nasceu e o velho que não só não morreu, mas que vive mais doente do que antes, pudemos ler milhares de vezes nestes últimos anos a respeito do outro grande fracasso, a Revolução Comunista, grandiosa pelo número de homens envolvidos e julgada grandiosa, em razão do fim a que se propôs, por milhões de homens de boa-fé.

Parece, portanto, que o fracasso de Deus para o crente andou lado a lado com o fracasso da razão para o não crente, e um e outro ajudam a que não se tenham muitas ilusões sobre a chegada da era do niilismo. Muitos de nós, que conheceram o fascismo e o comunismo, recordam, a respeito da Revolução de Outubro e das esperanças que ela fomentou e depois dissipou, uma coletânea de ensaios, organizada por Ignazio Silone, intitulada O Deus que fracassou. Hoje, porém, há quem pareça querer nos forçar a perguntar: "Qual Deus?"

Todavia, não podemos colocar os dois fracassos no mesmo plano, comparando-os entre si, nem extrair de um e de outro as mesmas consequências. Os homens de razão sempre suspeitaram - se é que não professaram abertamente - da possibilidade de erro, admitindo a insuficiência de seu saber despojado de ajuda divina e deixando aberta a porta para a contínua revisão de suas afirmações. Para os crentes, a derrota de Deus não seria um evento mais perturbador e, sobretudo, mais catastrófico? A confiança na razão jamais foi tão absoluta quanto a confiança na Providência divina. Jamais tivemos qualquer dificuldade em admitir que a razão não é, mas se torna. Agora aprendemos que também Deus não é, mas se torna, projetado na História. Qual a diferença, então, entre este Deus que se torna na História e a Razão dos filósofos, ou o Espírito de Hegel? Deus, ainda se lê, "sofre". Deus não é onipotente, e por isso sofre. Se fosse onipotente, não teria permitido Auschwitz. Não seria mais Deus quem nos salva, mas nós é que devemos salvar a Deus? Não estaríamos nos aproximando do horizonte de uma sociedade que se debate em dificuldades, numa espécie de teologia fraca, que estranhamente vai se colocando ao lado da assim chamada "fraqueza" filosófica? Com que rapidez chegaremos a radical substituição da visão tradicional do universo, segundo o qual Deus é o criador e o homem a criatura, pela visão humanista igualmente radical segundo a qual Deus é uma criação do homem? Não mais o homem da Bíblia feito à imagem e semelhança de Deus, mas este novo Deus, que não é mas se torna, não mais onipotente mas impotente e falível, feito à imagem e semelhança do homem?

Colocando-me do ponto de vista analítico, pretendo apresentar algumas reflexões com a única intenção de propor certas questões que formulo a mim mesmo, e dar continuidade à discussão. A partir desse ponto de vista, creio ser possível estabelecer uma distinção fundamental: o Mal tem dois aspectos que, por mais que sejam vinculados frequentemente e nem sempre com razão, devem ser mantidos separados. Estes são o Mal ativo e o Mal passivo. O primeiro é aquele que se faz, o segundo aquele que se sofre. O Mal infligido e o Mal sofrido. No conceito geral do mal, compreendemos duas realidades humanas opostas: a maldade e o sofrimento. Duas figuras paradigmáticas destes dois rostos do Mal, Caim e Jó. Quando nos colocamos, como neste momento, o problema do mal em geral, nossa mente corre indiferentemente para um episódio de violência ou para um de dor: podemos nos deparar tanto com a imagem de um feroz assassino quando com a de uma mãe que chora. Evocando Sarajevo, passam diante de nós as imagens de soldados que disparam e de homens e mulheres que fogem tomados pelo pânico, de cruéis torturadores e de vítimas. Essas imagens se alternam, se superpõem e continuamente se confundem entre si.

Sinto-me imediatamente obrigado a observar que, no senso comum, o significado passivo prevalece sobre o ativo. Na linguagem cotidiana, expressões como "me sinto mal", "isto me faz muito mal", "estou mal da cabeça", "por que me fazes mal?" referem-se todas ao mal passivo. Não seria o nosso modo de falar uma prova do fato de que a nossa experiência do sofrimento é mais ampla que a da maldade? Eu estaria inclinado a responder que sim. O mal ativo, sob a forma de vontade de domínio, de prepotência, de violência em todas as suas formas, do assassinato individual ao massacre coletivo, é objeto particular de reflexão sobretudo do historiador, do teólogo, do filósofo, em suma, de quem se põe o problema do "Mal no mundo". O sofrimento, em vez disso, é de todos, esta mais escondido mas é mais difuso, e é menos visível precisamente porque é mais profundo. A pena de viver subtrai-se à História, e no cenário histórico aparecem em primeiro plano os poderosos, os conquistadores, mais os violentos que os violentados, mais os senhores que os escravos.

Esta primeira observação ajuda-me a corrigir um erro, talvez mais que um erro, um hábito mental que consiste em ligar o mal infligido ao mal sofrido, como se eles estivessem em relação de interdependência. Um hábito mental que deriva da aceitação irrefletida de um dos argumentos clássicos - tão difundidos que se tornaram populares - adotados para justificar, e simultaneamente aliviar, o sofrimento: o sofrimento é consequência de uma culpa. O modelo desta interpretação deve ser buscado na vida cotidiana de qualquer sociedade humana, na qual a idéia de que o castigo deve se seguir ao delito é uma das regras fundamentais, que devem ser observadas para que uma convivência pacífica seja possível. Quem matar deve ser morto. Quem fizer alguém sofrer deve sofrer. Desse ponto de vista, o sofrimento é sempre uma pena, no sentido que tem o termo "pena" numa concepção retributiva de justiça. Se há sofrimento é porque houve uma culpa. Mal ativo e mal passivo formam uma unidade inseparável, mas primeiro vem o mal ativo e depois o mal passivo. Não haveria o segundo, se não tivesse havido antes o primeiro. Recordo que o termo "pena" tem dois significados fundamentais, o de sanção a um ato violento e o de sofrimento, que se pode sofrer independentemente da prática de um ato maldoso. Esse segundo significado também é uma prova da exsitência daquele vasto campo da experiência humana no qual o mal passivo existe sem que seja necessário fazê-lo depender do mal ativo. Que uma pena faça alguém penar não quer dizer que o estado do penar também seja uma pena como sanção a um crime. O verbo "penar", assim como, de resto, o adjetivo "penoso", não tem qualquer relação com a pena entendida como sanção. A punição pode ser penosa, mas a penosidade não está necessariamente relacionada a uma punição.

Da realidade cotidiana, o princípio da justiça retributiva - ou da necessária relação entre o mal que se faz e o mal que se sofre - foi transferido, nas sociedades arcaicas, para a interpretação de todo o universo. Refiro-me ao que foi chamado de "modelo sociomórfico", ou seja, àquela operação mental mediante a qual todo o sistema do universo é representado como uma reprodução do sistema social e das regras que o governam. O mal passivo do universo, o espantoso sofrimento da espécie humana ao longo de toda a sua história, outra coisa não seria que a consequência inevitável, obrigatória, de um mal ativo originário, do qual não se sabe o início, mas que se enraizaria em um passado mítico e cuja memória seria transmitida de geração em geração. Do mesmo modo que na pequena sociedade em que vivemos, também no universo inteiro, que compreende todos os homens que viveram, todos os viventes atuais e todos aqueles que viverão nos séculos e séculos ainda vindouros, o mal ativo precederia o passivo, ainda uma vez o delito viria primeiro que o castigo, o pecado antes da pena. Os homens não sofreriam, se o primeiro hmem não tivesse pecado. Também o universo inteiro em todo o seu espaço e em todo o seu tempo seria governado desde sempre e se governaria para sempre segundo o princípio fundamental da justiça retributiva. Já se disse - mas este é um tema sobre o qual não posso me deter agora - que uma das características da mentalidade pré-científica é a de se fazer, diante do evento ignorado, a pergunta: "De quem é a culpa?", em vez de "Qual é a causa?".

Ainda hoje, na visão de uma religião popular, mas não apenas nesta, prevalece a interpretação do universo segundo o princípio da justiça retributiva. A idéia de que o sofrimento (qualquer sofrimento) é de algum modo uma forma de obter a absolvição de uma dívida vale não só como explicação, a mais fácil das explicações, mas também como justificação, a mais tranquilizadora das justificações. O prevalecimento deste interpretação apóia-se numa contribuição direta da teodicéia tradicional, segundo a qual um dos argumentos principais, e mais insistentemente repetidos, para justificar o evento que gera sofrimento, e desse modo absolver a potência divina, é atribuir tal evento a alguma presumível culpa humana. Não importa que o culpado permaneça desconhecido. Que haja um culpado é a dedução lógica do princípio da justiça retributiva, posto axiomaticamente como princípio regulador do universo. Podem ser feitas as mais diversas e extravagantes hipóteses sobre a natureza da culpa e do culpado. A única coisa que não parece ser possível discutir é que, repito mais uma vez, se há uma pena é porque deve ter havido uma culpa.

Não importa nem mesmo que a pena golpeie o presumível culpado segundo a regra da responsabilidade individual. O princípio da justiça retributiva, aplicado não à pena por um delito singular, mas a uma pena que afeta um conjunto de homens em um determinado momento histórico e uma determinada sociedade, prescinde completamente da regra da responsabilidade individual: para dar os exemplos costumeiros, serie este o caso de uma nova doença - como foi a peste ao longo dos séculos, ou a sífilis no final do século XV, ou a Aids hoje -, ainda que com menor convicção após o avanço do processo de secularização. Onde vigora o princípio da culpa coletiva, não tem qualquer importância conhecer o culpado individual. Em uma concepção primitiva da justiça, não há nenhuma razão para que a pena atinja apenas o culpado e o culpado seja o único a sofrer a pena. Em uma visão global da justiça e do universo, é absolutamente irrelevante que um indivíduo singular, um grupo de indivíduos ou um povo inteiro sofram por uma culpa que não seja deles.

Desde que existe um nexo entre o mal e o agir humano, como nos casos mencionados até agora, pode-se mesmo sustentar, ainda que de modo grosseiro, a causa da justiça retributiva: o homem em geral é responsável por todas as suas obras. A humanidade pode ser concebida como uma totalidade indiferenciada, na qual cada parte do todo é responsável por aquilo que faz com respeito às outras. Mas aquilo que faz que o homem sofra depende unicamente de causas humanas? No início deste texto, afirmei que a esfera do mal passivo é incomparavelmente mais ampla que a esfera do mal ativo. É evidente que o sofrimento humano pode depender de infinitas outras causas que não derivam de nossa ação, seja ela voluntária ou involuntária. Mais ainda: a grande maioria dos estados de sofrimento não podem ser imputados a uma culpa nossa, a começar da razão por excelência da dor, a morte das pessoas queridas. No que diz respeito a nós mesmos, mais do que o pensar em nossa própria morte, a maior causa de sofrimento são as doenças, tanto as físicas quanto as psíquicas, e a maioria delas não deriva de nossos erros e culpas. De onde vem o longo e quase sempre atroz sofrimento de um doente de câncer? Existiria por acaso alguém ou alguma coisa que poderia ser responsabilizada por isso? E das doenças hereditárias, o que devemos dizer? Que sentido teria regredir, posto que seja possível, até ao primeiro progenitor? Perguntas absurdas para problemas malpostos. Absurdas, precisamente porque são perguntas malpostas.

As catástrofes naturais são o maior desafio para a confortável solução que vê um nexo entre sofrimento e culpa, e que portanto acredita poder resolver o problema no interior do mundo humano. Sabem disso muito bem os teólogos, que não podem renunciar à idéia da Providência divina. Sabem bem os filósofos da história, que substituem a Providência divina pela astúcia da razão. Não há grande catástrofe natural que não tenha suscitado o problema do seu porquê - refiro-me ao porquê teleológico, já que o porquê causal também pode ter uma resposta -, mas este é um problema que, do ponto de vista de qualquer teodicéia ou logodicéia, é insolúvel, não obstante a sutileza dos argumentos com que foi enfrentado e a engenhosidade com que se buscou resolvê-los. No entanto, são as catástrofes naturais, como terremotos, dilúvios, ciclones e furacões, que geram a maior quantidade de sofrimentos no curto prazo, um número de mortos, feridos e danos materiais que o flagelo da guerra gera em prazos muito mais longos. Se se leva em conta, não apenas o tamanho do mal, mas também o tempo em que o mal se manifesta, então as catástrofes naturais são a manifestação mais terrificante do Mal como sofrimento. E se trata de um mal que não se pode submeter às justificações, cômodas e confortáveis, da relação necessária entre culpa e castigo.

Ninguém tem tanta capacidade de compaixão a ponto de sofrer junto com todas as vítimas do evento, de acolher em si a soma das dores que sentem os sobreviventes de uma família sepultada sob os escombros, os sem-teto, aqueles que viram o fruto de seu trabalho ser destruído em uma fração de minuto. A justificação do sofrimento mediante a culpa está tão radicada em nossa mentalidade que, até mesmo no caso de um terremoto, jamais faltam os ataques, muitas vezes compreensíveis, contra os responsáveis pela ineficiente política ambiental. A busca do bode expiatório é um modo de dar livre curso à própria dor e à própria indignação. Se há um responsável, isso quer dizer que há alguém que se pode escolher como alvo de vingança, e que se pode fazer sofrer como nós sofremos. Mas o primeiro elo da cadeia continua sendo um evento natural, cujas consequências desastrosas podem ser aumentadas, mas não consideradas efeitos exclusivo da incúria dos homens. Qualquer investigação que se faça sobre a responsabilidade das administrações públicas permanecerá sempre uma imensa desproporção, com respieto aos danos produzidos pela catástrofe, entre a causa primeira e as causas segundas, uma desproporção que nenhum raciocínio de justificação, nem sequer o mais sofisticado, poderá eliminar.

Uma catástrofe natural é um fato, e como fato somente pode ser explicado com os mesmos procedimentos mentais com que se explica um fato qualquer. Em uma concepção teológica ou moral do mundo, não estamos em condições de dizer absolutamente nada sobre o significado de um fato como este, já que não temos nenhuma certeza acerca da existência de um sujeito que possa ser imputado. Comparemos um terremoto a uma guerra. A comparação é possível porque um e outra são dois eventos que criam uma soma extraordinária de sofrimentos. Mas a comparação se interrompe aqui. Tentemos estender o confronto ao plano do juízo moral. Ao passo que tem sentido falar, como se fez durante séculos, de guerra justa e injusta, não haveria qualquer sentido em falar de um terremoto justo ou injusto. Compreende-se, porém, que a afirmação é plausível em uma teodicéia ou em uma logodicéia, quer dizer, em um tipo de discurso no qual se pressupõe que exista um sujeito a que se possa atribuir o Bem e o Mal.

Para aumentar a dificuldade, para não dizer a impossibilidade, de se converter uma catástrofe natural em um evento a ser justificado com base em um critério moral, deve-se incluir também a constatação de que algumas destas catástrofes, como terremotos, dilúvios, em particular erupções vulcânicas, ocorrem sempre ou frequentemente nos mesmos lugares, ao passo que outros lugares estão completamente imunes a elas. Da época de Aristóteles em diante, as formas de justiça são essencialmente duas: comutativa e distributiva. O Mal-castigo, como remédio para o Mal-culpa, é um clássico exemplo de justiça comutativa, que acaba por ser violada quando o sofrimento não pode ser culpável, como nas catástrofes naturais. Onde há um bem ou um mal sem mérito e sem culpa, deveria intervir o princípio da justiça distributiva, segundo o qual Bem e Mal devem ser equanimemente distribuídos. Mas não há teodicéia ou logodicéia que possa justificar a repetitividade de eventos catastróficos nas mesmas partes do mundo. De resto, mesmo no caso em que o evento se revele pela primeira vez numa certa localidade, repõe-se a questão: "Mas por que exatamente ali, e não em outro lugar?". Portanto, se um discurso de justificação não pode se remeter nem a uma nem a outra das duas formas de justificação, então é preciso concluir que não temos como evocar nenhum argumento decisivo para justificar aqueles eventos, que, por sua gravidade, precisariam, mais que qualquer outro, ser justificados.

Não pretendo abrir o discurso sobre a crueldade, e correspondentemente sobre o sofrimento, no mundo animal, no qual prevalece a mais impiedosa luta pela sobrevivência, e o peixe grande, segundo o famoso exemplo de Espinosa, devora o peixe pequeno, e o peixe pequeno parece não ter outra razão de existir que não a de se deixar devorar e, assim, de permitir que o peixe grande não morra de fome. Quem quer que tenha assistido àquelas frequentes transmissões televisivas em que uma serpente engole lentamente sua própria vítima destinada a morrer depois de um longo sofrimento, um leão com o focinho sujo de sangue que despedaça uma gazela, uma matilha de lobos esfomeados que persegue uma manada de bisões e que, ao conseguir derrubar um deles, devora-no sem piedade, não pode deixar de perguntar: "Quem desejou um mundo tão atroz?" Não seria este um mundo em que, se há uma evolução, esta não se referiria ao progresso moral, de que falamos quando nos interrogamos a respeito do sentido que se deve atribuir ao curso histórico da humanidade? O pensamento laico renuncia a dar uma resposta a estas últimas questões, e tenta a vida da explicação por causas, por exemplo, mediante a teoria da luta pela sobrevivência, boa ou má seja essa explicação. O pensamento laico pode aceitar o mundo dos fatos tal qual é, mas o pensamento religioso não pode fazer o mesmo. E como poderia fazê-lo, se o esquema tradicional de justificação, a relação entre culpa e castigo, é inaplicável fora do mundo humano, no qual se pressupõe que o homem esteja livre de escolher entre o bem e o mal? Um dos argumentos fortes do pensamento religioso diz que entre Deus e o Mal está o homem, com sua liberdade, com sua inclinação para o mal, com suas paixões. Como poderia esse argumento ser empregado para compreender o mundo não humano, no qual aquilo que acontece não é obra do homem ou influenciada pelo homem, senão numa parte mínima?

Perante o problema do Mal, o pensamento teológico tem uma obrigação que o pensamento laico não tem: conciliar a presença do Mal com a existência de Deus, e com a imagem de Deus não só como Potência Infinita mas também como Bondade Infinita, da qual o Mal é a negação.

A propósito deste ponto, mostra-se apropriada a conhecida passagem do ensaio O conceito de Deus depois de Auschwitz, no qual Hans Jordan afirma que os três atributos de Deus - a Bondade absoluta, a Potência absoluta e a Compreensibilidade - não podem ser concebidos em conjunto, na medida em que "estão de tal modo relacionados entre si que toda relação entre dois deles exclui o terceiro". Em seu juízo, a onipotência de Deus só pode coexistir com a absoluta bondade divina ao preço da total incompreensibilidade de Deus, isto é, da concepção de Deus como mistério absoluto. "Somente de um Deus totalmente incompreensível se pode dizer que é absolutamente bom e desde a origem absolutamente onipotente e, não obstante isso, suporta o mundo como é". Diante dessa aporia, Jonas propõe que, tendo que renunciar a um dos três atributos, este seja a onipotência, já que a Bondade é inseparável do nosso conceito de Deus e não pode sofrer nenhuma limitação, e o conhecimento de Deus é um elemento essencial do hebraísmo, para o qual é inadmissível o conceito de um Deus totalmente oculto.

Pergunto-me se uma solução como essa não torna plausível, ao menos como experimento mental, uma solução alternativa. Já que o atributo da Bondade absoluta faz que Deus se torne compreensível, mas suscita o problema da jsutificação do Mal, deve-se tentar negar o atributo da Bondade absoluta e salvar o atributo da Potência absoluta. Neste caso, a compreensibilidade de Deus seria salva ao preço de sua Bondade. Mas não é esta uma das possíveis respostas do humanismo laico, segundo o qual, como Potência absoluta, Deus seria indifente ao Bem e ao Mal, estaria além do Bem e do Mal, assim como além do Belo e do Feio? Desse ponto de vista, o Bem e o Mal nada mais seriam que criações humanas. De resto, precisamente o fato de serem criações humanas explciaria que não têm um valor absoluto. Por um lado, não se dá um ateímo tão radical a ponto de negar o Deus-potência. Por outro, dá-se um humanismo igualmente radical a ponto de fazer com que os valores sejam exclusivamente um produto da história.

Uma última questão. Detive-me até agora principalmente na aporia que se contrapõe à justificação do Mal do ponto de vista de uma concepção que vê o universo como sendo dirigido por um princípio de justiça retributiva. Mas esta não é a única aporia que o problema do Mal propõe à nossa razão. Há uma outra ainda mais perturbadora, e por isso mesmo mais escandalosa. Como vimos, não só não é de modo algum demonstrável que por trás de uma pena haja uma culpa, mas também não é demonstrável que, na economia geral do universo, quem mais sofre seja o malvado. Para quem consegue ver sem preconceitos, os eventos da história humana demonstram exatamente o contrário: o tirano Stalin morreu em seu leito, ao passo que Anna Frank, imagem da inocência, morreu num campo de extermínio. Dos aflitos sempre subiu aos céus a pergunta formulada por Jó: "Por quê?" Há uma razão para que o malvado se salve e o inocente se perca?

Faz sentido formular a questão? Por que, no último momento, um oficial do séquito de Hitler deslocou inconscientemente a maleta que continha a bomba armada pelo coronel Von Stauffenberg para atentar contra a vida de Hitler, e Hitler se salvou e não só não morreu como pôde completar sua monstruosa vingança?

Não, não faz nenhum sentido. Também esta é uma questão sem resposta. Mas desde sempre o homem simples concebeu sua resposta: "Não há justiça neste mundo".

quarta-feira, 5 de outubro de 2005

gracinhas.


por que o frango cruzou a estrada?


Professora de primário: Porque queria chegar do outro lado da estrada.

Fazendeiro: Por causa que argúem deixou a porta do galinheiro aberta.

Platão: Porque buscava alcançar o bem.

Aristóteles: Está na natureza dos frangos cruzar a estrada.

Nelson Rodrigues: Porque viu uma galinha sedutora do outro lado.

Marx: Era uma inevitabilidade histórica.

Moisés: E Deus desceu dos céus e disse ao frango: cruza a estrada. E o frango cruzou a estrada e todos se regozijaram.

Capitão Kirk: Para ir onde nenhum frango jamais esteve.

Hipócrates: Devido a um excesso de humores em seu pâncreas.

Martin Luther King: Vejo um mundo no qual todos os frangos serão livres para cruzar a estrada sem que sejam questionados seus motivos.

Maquiavel: O frango cruzou a estrada. A quem importa o por quê? O fim de cruzar a estrada justifica qualquer ato.

Freud: O fato de que estejas preocupado porque o frango cruzou ou não a estrada revela tua insegurança sexual.

Darwin: Ao longo de grandes períodos de tempo, os frangos têm sido selecionados naturalmente, de modo que agora têm uma predisposição genética a cruzar estradas.

Einstein: Se o frango cruzou a estrada ou a estrada se moveu sob o frango depende do ponto de vista.

Hemingway: "To die. Alone. In the rain."

FHC: Porque ele atravessou a estrada, não vem ao caso. O importante é que o povo está comendo mais frango.

Kant: O frango seguiu apenas o imperativo categórico próprio dos frangos. É uma questão de razão prática.

George Orwell: Para fugir da ditadura dos porcos.

Sartre: Trata-se de mera faticidade.

Pinochet: Ele se fue, pero tengo muchos penachos de el en mi mano!

ACM: Estava tentando fugir, mas já tenho um dossiê pronto comprovando que aquele frango pertence a Jorge Amado. Quem o pegar vai ter que se ver comigo.

Feministas: Para humilhar a franga, tentando convencê-la da falta de habilidade para tomar a iniciativa de cruzar a estrada, enquanto mulher.

Fausto Faucett: Porque ouviu metralhadora lá do morro samba funk geral, e do outro lado da estrada estava uma insofismável franga loura de calcinha de rendinha bordadinha.

Funcionário Público: Não sei, mas para ter um certificado preencha estes 5 formulários, pague esse valor no banco do Brasil e retorne em 2 meses.

PDT: Para protestar contra o governo e apoiar a renúncia de FHC já!

Maluf: Não tenho nada a ver com isso. Pergunte ao Pitta.

Nietzsche: Ele deseja superar a sua condição de frango para tornar-se um superfrango.

Che Guevara: Hay que cruzar la carretera, pero sin jamás perder la ternura.

Blaise Pascal: Quem sabe? O coração do frango tem razões que a própria razão desconhece.

Sócrates: Tudo que sei é que nada sei.

Parmênides: O frango não atravessou a estrada porque não podia mover-se. O movimento não existe.

Estóicos: O frango atravessou a estrada porque esse é um acontecimento necessário. É o destino. Já estava previsto pela ordem universal do cosmos.

Epicuristas: É prazeroso ao frango atravessar estradas. O que você acha, amigo?

Gilberto Gil: Essa coisa do frango que atravessa algo nos remete à questão do almoço dominical que mainha preparava na minha infância. Tem algo a ver com a baianidade da menina malemolente atrás do frango. Por outro lado essa coisa da estrada é de uma anterioridade que se firmou numa canção que fiz com o Caetano, na época tropicalista.

Caetano Veloso: O frango é amaro, é lindo, uma coisa assim amara. Ele atravessou, atravessa e atravessará a estrada porque Narciso, filho de Cant, quisera comê-lo, ...ou não!

Dorival Caymmi: Eu acho (pausa)... - Amália, vai lá ver pra onde vai esse frango pra mim, minha filha, que o moço tá aqui querendo saber.

Jô Soares: Sem querer te interromper e já te interrompendo, você não acha um frango ao molho pardo uma delícia que engorda?

Ziraldo: Era um frango maluquinho e feliz. Por isso ele vivia atravessando as estradas de sua pequena cidade.

Lula: O frango estava fugindo porque o governo deixa o povo passar fome. Nossos companheiros fizeram fazer valer o direito que todo cidadão tem de ir atrás da comida!

João Gilberto: Ah, insensatez...

Filósofos da Escola de Frankfurt: É uma questão medíocre imposta pelos mentores de uma arte de massas que transformou a imagem de um frango em mais um produto da indústria cultural.

Filósofos Medievais: Para responder a tal questão, devemos primeiro deliberar se a expressão "frango" é puro termo esvaziado de sentido ou se a palavra que expressa a idéia genérica e universal de frango, ou ainda se se trata de um frango concreto em particular.

Surfista: O bicho atravessou, cara. Bicho maneiro, aí. Demaaaaais... Só...

Clarice Lispector: A essência do frango está nas suas patas. As patas têm o frango. Quem vê as patas, vê o frango. A essência das patas é o correr, o correr abstrato. A estrada é a essência do correr. Quem vê o correr vê a estrada.

Guimarães Rosa: O coraçãodomemdosertão é frangorrendostrada!!

Maconheiro: Frango... que viagem... hehehehe...

Porta-Voz da OTAN: Era um frango??! Iiiihhhh..

Silvio Santos: O frango atravessou a estraaaada Lombardi... a-aiiii hi hi...

Gugu: E olha só a brincadeira que nós fizemos com o Frango no nosso taxi... ele não sabia de nada... Nos dirigíamos até uma estrada, onde a Sra. Franga, que já estava combinado com nossa equipe, nos aguardava com nosso ator Franguinho... Quando chegamos e o Frango viu sua mulher siscando e de asinhas dadas com nosso ator, o Frango desceu do taxi, atravessou a estrada e foi um cacareco só... Foi muito legal..

Poliana: O frango correu porque estava feliz. Afinal, a vida é tão bela...