sábado, 19 de agosto de 2006

filosofando...!!

O ALEGRE DESESPERO...
(algumas hipóteses sobre a felicidade..)


Digamos a verdade: a Felicidade não existe. A Felicidade com F maiúsculo, aquele estado de prazer perfeito e imperturbável, aquela eternidade de delícias e gozos... ah!, isso aí, quanto mais eu vivo, mais certeza tenho de que é algo que nunca existiu nem vai existir. Foi só um louco sonho humano, uma utopia irrealizável, um mero produto da imaginação... Uma daquelas coisas que qualquer um que tenha o mínimo de realismo e bom senso olha, desconfia e diz: “isso é bom demais pra ser verdade...”

Um estado de êxtase e bem-estar perpétuo, sem um pingo de preocupação ou angústia amargando o caldo, sem o mais minúsculo incômodo nos aporrinhando, sem a mínima dor no corpo ou no espírito? Ora, ora... É fácil ver que esse é um estado que só existe nos contos-de-fada, nos filmes ruins e nessas celas de hospício que são os crânios humanos...

Sim, talvez essa tal de felicidade não tenha sido mais que um mito contado através dos séculos, de geração a geração, alimentando dentro dos corações a mais insensata e impossível das esperanças. Vejam que silogismo divertido:

- O jeito mais simples e seguro de ser infeliz é desejar o impossível.
- A Felicidade é impossível.
- Logo, desejar a Felicidade é o jeito mais simples e seguro de ser infeliz!

A Felicidade, portanto, é um desejo idiota. É idiota desejar a felicidade pois é idiota desejar o impossível, insistindo em tacar lenha num anseio condenado à eterna insatisfação... A vida, coitada, pobrezinha, não tem nada parecido com a Felicidade para nos oferecer! Tolos fomos nós, sempre, por dela termos exigido tanto!...

Vejo os otimistas fazendo cara feia. Mas não venham com histórias. Não é verdade que nesse caso, desejando o tal do impossível, faríamos com que ele se tornasse possível. “O impossível só parecia impossível...” Bobagem. A verdade é que a maioria das nossas fantasias são completamente inconcretizáveis – e a Felicidade é uma delas. Existem as alegrias, sem dúvida, mas são todas como frágeis chamas de vela, apagáveis com a brisa mais sutil... Existe o prazer, sem dúvida, mas ele não permanece jamais: se abole junto com o desejo que satisfaz. A Felicidade que se costuma desejar é estática: prazer em repouso, prazer que não passa, que não muda, que não flui, como um orgasmo no “freeze”. E isso - vou ser dogmático sem medo... - não existe. Nunca existiu. Nunca existirá. Desistam.

Nos fizeram acreditar que existia um Papai Noel e um Coelhinho da Páscoa, e que existia um Papai-do-Céu e anjinhos da guarda e um Paraíso de Delícias no além-túmulo (mas só para os que forem bonzinhos...), e que existia a princesa encantada e a alma-gêmea... Abusaram da nossa inocência e credulidade da mesma forma quando nos fizeram crer nessa tal de Felicidade... É tudo papo furado. Fomos enganados.

Então parem de acreditar que ela existe. Parem de ficar imaginando que é possível ser feliz, que no fim tudo dará certo, que “só basta querer” (ah, se só bastasse querer! Querer todos nós queremos!). Esperanças bestas, como são todas as esperanças: da felicidade é preciso desesperar, diria o mestre Sponville – o que ele chamou de "o alegre desespero”... Então parem de ficar em daydreams ridículos sobre um mundo perfeito onde todos se amam e se entendem e sorriem, onde não há doença nem fome nem guerra, onde a morte está morta... Life's no fucking picnic, ok?! O que de melhor temos a fazer é parar de perseguir ideais inalcansáveis. É inútil. Mais vale desistir do impossível. A única felicidade possível é aquela daquele que sabe que a felicidade não existe.

”Essa bem-aventurança ilusória e impossível talvez seja o obstáculo principal que nos separa da felicidade real, sempre relativa, e que supõe uma parte de luto ou de renúncia.. Isso é verdade, claro, para as bem-aventuranças paradisíacas que a religião promete: ‘A abolição da religião como felicidade ILUSÓRIA do povo é a exigência que sua felicidade REAL formula’, dirá Marx. Mas isso também é verdade, sobretudo talvez, no caso dos sonhos terrestres de todos nós (a fortuna, a glória, o príncipe encantado...), sonhos que seriam apenas irrisórios se não fizessem de nossa vida, por contraste, como que um longo e doloroso purgatório” (ANDRÉ COMTE-SPONVILLE, em Uma Educação Filosófica).

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Calma, amiguinhos – sem drama. Ninguém precisa sair correndo pra se enforcar ou dar um tiro na cabeça, as coisas não são assim tão más... Se eu comecei dizendo que a Felicidade não existe foi mais por gosto pelas frases bombásticas do que por acreditar de verdade no que eu falei. Eu ainda acredito na felicidade, mas ela tem f minúsculo, é mais humilde que sua irmã maior e nela não rola nenhum espetáculo cheio de fogos de artifício e clímaxes hollywoodianos...

O obstáculo principal em nosso caminho – é só ver o que dizem quase todos os “iluminados” budistas... - é a ilusão de permanência, o desejo de imutabilidade... Só precisamos compreender a lição do velho Heráclito: tudo flui, irmãos, e ninguém nada duas vezes no mesmo rio... E temos que aprender a deixar fluir, deixar mudar, deixar escorrer... Talvez esse desejo de que as alegrias durem é o que nos atrapalha a vida: pois é um desejo de realização impossível! Temos que aceitar a “felicidade” como ela é, em toda a humildade dessa criatura terrena que, como todas as criaturas terranas, é passageira, precária, efêmera. Como diz o mestre Sponville, desejar aquela “bem-aventurança ilusória e impossível” (constante, sem decadência, sempre intensa...) é o “obstáculo principal que nos separa da felicidade real”.

Olha que linda frase diz a Simone Weil, na mesma linha: "A felicidade é um objeto para a compaixão pela mesma razão que a infelicidade”, diz a moça. “Porque é terrestre, ou seja, incompleta, frágil e passageira...". Um infeliz é certamente algo de dar dó, como todos sabem, mas um homem feliz, vocês acham que merece o quê? Inveja? Admiração? Uma salva de palmas? Que nada: merece sim a nossa compaixão... Da próxima vez que vocês se depararem com uma “pessoa feliz”, não fiquem com inveja ou com ciúmes. Façam como eu e olhem tudo através da névoa da melancolia, dizendo: “Tadinho! Coitado! Que judiação! Está feliz! Ê dó! E logo logo isso some...” É como ver uma criança se deliciando com um brinquedo que todo mundo sabe, mais cedo ou mais tarde, vai ser tomado de suas mãos - e ela vai abrir o berreiro...

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Tolice querer só prazer e nenhuma dor... Outro desejo impossível. O maior dos “iluminados” e dos “sábios” sempre vai se doer até rasgar com uma cárie ou uma diarréia, não importa quão “purificado” esteja seu espírito... Fugir do sofrimento é impossível. Só a morte é o antídoto absoluto contra toda dor – finalmente nosso merecido descanso, nosso sono angelical, sem sonhos e sem pesadelos... Mas enquanto há vida, enquanto há sensibilidade, o sofrimento vai estar lá – e é preciso parar de vê-lo como um inimigo. Aceitar a dor e ficar feliz pelo fato de ela existir. Sem ela, sem o contraste que ela possibilita, a felicidade não teria gosto algum e seria tão insípida quanto a água mais pura. Que tédio seria ser feliz o tempo todo!

Um dia pensei em escrever um conto sobre a vida no Paraíso Cristão: as pessoas lá seriam felizes o tempo inteiro e ficariam tão entediadas com isso que haveria uma gigantesca onda de suicídios, um monte de gente indo bater à porta de Deus exigindo que fossem deportados para o Inferno, vários homens com uma imensa saudade de sentir um pouco de dor, um pouco de angústia, um pouco de solidão... Lembro também dos anjinhos do Asas de Desejo, o filme de Win Wenders, que desejavam ter um corpo carnal para poderem sentir todas as dores carnais que os homens tem o privilégio de sentir...

The joy is not the same without the pain...”, canta o Badly Drawn Boy. É legal que a vida seja difícil, que doa, que arda, que machuque, que queime, que deixe cicatriz, que dê soco e pontapé: vocês gostariam de uma vida... morta? Ela tem mesmo que espernear, a vida! Tem mesmo é que fazer barulho! Tem mesmo é que se fazer sentir! “It’s good when it’s bad – it’s not worrin’ me!”

Somos tolos tentando espantar o sofrimento como se fosse uma cobra venenosa. Olha o que diz o Nietzsche em um de seus momentos mais brilhantes:

“...o estreito caminho do nosso próprio céu passa sempre pela volúpia do nosso próprio inferno... se não querei conservar nunca durante uma hora o vosso próprio sofrimento e não cessais de evitar desde o ponto mais remoto todas as desgraças imagináveis, se considerais todas as dores, todos os aborrecimentos como um mal odioso e que deve ser suprimido porque seca a existência... bem, neste caso tendes no coração, além da religião da compaixão, uma segunda religião, que é talvez a mãe da primeira: quero dizer a religião da comodidade. Oh, gentes do consolo e do humor fácil, como sabeis pouco da humana felicidade!” (Nietzsche, A Gaia Ciência)

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A felicidade é uma dama em quem não se pode confiar. Marcamos encontro com ela em um certo dia, um certo lugar, uma certa hora, e suplicamos que ela apareça: moça, por favor, você tem que estar lá pra mim pois eu vou precisar de você! E muitas vezes a desgraçada não aparece. Nossas “decisões” de sermos felizes no futuro são sempre vãs... “No dia do meu aniversário, no Natal, no ano que vem, quando me aposentar, quando casar... serei feliz!” E a felicidade, irônica, parece fugir justamente daqueles momentos em que mais era esperada. E continuamos a adiá-la. Sempre depois, sempre mais tarde... Contamos pra nós mesmos as velhas lorotas: “Techa paciência, amiguinho, sua hora vai chegar! No fim tudo vai dar certo! Tenha esperança”...

Mas quem foi que te disse que a felicidade era uma questão de paciência, de esperança, de passividade? Você queria que a vida fosse dar tudo de mão beijada, despejar os presentes todos no teu colo, como uma graça, como um milagre? As pessoas, muitas delas, pensam que a felicidade é uma questão de paciência, algo de inconquistável por esforço próprio, algo que somente forças maiores podem colocar em nossas mãos... É uma questão de sentar e esperar, ou de ajoelhar e rezar... Aguardam dias, semanas, meses, anos, para que a campainha toque e a visitante esteja lá, entregue de mão beijada: “Olá, meu nome é Felicidade: posso entrar?” É claro que a campainha nunca toca. Quando toca, é a cobrança do aluguel ou o assaltante.

Por outro lado, muitas vezes chega em nossa casa quando estamos despreocupados e sem missão, vai entrando porta adentro, surgindo na nossa vida como um ótimo hóspede inesperado. É só nos esquecermos que ela existe, é só deixarmos de persegui-la, que a dama felicidade parece ficar com ciúmes por nossa negligência e resolve dar as caras. Acho que devemos parar de marcar encontros com a felicidade e deixar que ela apareça quando quiser. “Take it as it comes...” E acho que ela aparecerá tanto mais frequentemente quanto menos eu a esperar. "Apreende a novidade dessemelhante de cada momento e não prepares tuas alegrias...", diz lindamente o André Gide em algum lugar de Os Frutos da Terra.

“Não prepares tuas alegrias...”


* * * * *

Abandonar a esperança, também tola, de que outras pessoas vão te fazer feliz e que tudo o que você tem a fazer é ficar sentado esperando que elas surjam e te levem no colo pro Paraíso... A vida não é assim tão fácil. E 99% das pessoas que esperam por seus príncipes e princesas encantadas, pelos amores de suas vidas, esperam em vão. Bobagem pensar que uma pessoa pode ser tudo para outra.

Ao invés de esperar que os outros te façam feliz, vá lá e faça alguém feliz... Ação, amiguinho: ação! Quem foi que te ensinou que a felicidade é uma questão de passividade e não uma batalha, um esforço? A felicidade de fazer alguém feliz, a alegria de ser causa de alegria... A delícia de poder deitar a cabeça no travesseiro, toda noite, podendo dormir o sono dos justos. Perseguindo o nosso próprio prazer e o nosso próprio interesse, nos apegando ao nosso próprio ego, tudo o que fazemos é prejudicar a nós mesmos.

Não existe egoísta feliz.

E isso diz muito sobre o porquê da extrema raridade da felicidade perfeita nesse mundo. O egoísmo é tão mais comum...

O Oriente parece saber disso bem melhor do que nós.... Vejam por exemplo esse famoso poeminha zen-budista tirado do Livro Tibetano do Viver e do Morrer (tô virando hippie!!!):

“Toda a alegria que há neste mundo
Vem do desejo de que os outros sejam felizes,
E toda a dor que há neste mundo
Vem do desejo de que eu mesmo seja feliz.”


(Shantideva, citado por Sogyal Rinpoche)

Ajudamos a nós mesmos quando ajudamos os outros, e talvez seja esse o único caminho para realmente ajudarmos a nós mesmos: a felicidade de fazer alguém feliz (ou ao menos tentar!), a alegria de ser causa de alegria, a delícia de ser generoso, o gosto de perder pra deixar a outra pessoa ganhar...

Um exemplo simples: vejam o pai que, jogando futebol contra o filho, resolve perder de propósito e simula um frango, deixando a bola entrar por entre as canetas... Que importa para esse pai ganhar? Mais importa a alegria do filho. O amor é assim: eu renuncio à minha força, à minha afirmação, ao meu egoísmo, em favor do outro. Coloco o bem-estar e os sofrimentos alheios antes do interesse próprio...

Que isso é raro, sem dúvida – o que, diria o mestre Sponville, só testemunha a raridade do amor e a nossa triste necessidade de moral... Na maior parte das vezes, temos q ser coagidos a considerar os outros - de tão cegados pelo egoísmo que estamos... A felicidade estaria em fazer o bem sem nenhuma necessidade de coerção.

É impossível ser feliz sozinho.

* * * * *

Quanto ao resto, podemos cantar a plenos pulmões:

“All you need is love! Pã-pã-rã-pã-rã!
“All you need is love! Pã-pã-rã-pã-rã!
Yeah, love is all you need...”


* * * * * * the end.. * * * * * * * *

BIBLIOGRAFIA!
(ó como eu sou chique…)

COMTE-SPONVILLE, André. Uma Educação Filosófica.
GIDE, André. Os Frutos da Terra.
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência.
RINPOCHE, Sogyal. O Livro Tibetano do Viver e do Morrer.
WEIL, Simone. O enraizamento.

E mais versos das músicas...
“All You Need Is Love”, dos Beatles (do Magical Mystery Tour)
“Something To Talk About”, do Badly Drawn Boy (do About a Boy)
“Glad”, do David Byrne (do Grown Backwards)
“Take It As It Comes”, do Doors (do The Doors)

That's all, folks.