CONTO EMBRULHADO PRA PRESENTE
- historieta singela e sem clímaxes, toda baseada em fatos reais -
(Carolzita, esse é pra você! =)
...Por que ele não contou tudo isso antes? Um pouco porque o moleque, pretensioso que só ele, tinha lá seus sonhos de virar um escritor de responsa e obviamente pensava que teria de tratar só de assuntos grandiosos e colossais, em histórias repletas de aventuras, reviravoltas, epopéias, sem esquecer dos eventuais banhos de sangue que todo mundo curte... O público gostava de histórias onde coisas aconteciam! Precisava ter em mãos um enredo como: um príncipe atormentado tendo que vingar o assassinato de seu pai, rei traído de toda uma nação; um engenhoso fidalgo que sai pelo mundo combatendo o Mal como bem fizeram todos os cavaleiros andantes que ele tanto admirava; heróis ousados e temerários perseguindo o Santo Graal... Coisas desse naipe! Nem valia a pena se sentar para escrever uma historieta simples e sem clímaxes sobre duas pessoinhas quaisquer que se conheciam e viravam miguxas do peito, certo? Afinal de contas, as pessoas por aí se conhecem e viram amigas o tempo todo e isso não tem nada de mais. “Com coisas banais não se faz boa literatura!”, pensava ele, bobalhão. Escrever sobre tão pouco pra quê?! Mas aí foi percebendo que esse pouco, pra ele, era muito. E que valia a pena contar, sim, uma historieta singela e sem arroubos, onde não acontecia nada de hollywoodiano, nada de épico, nada de explosivo ou fosforecente – só essa coisa pequena e enorme que são duas pessoas descobrindo uma simpatia mútua que acabava dando em algo ótimo como isso: uma tranquila e deliciosa relação humana.
...por tanto tempo o menino, que era dono de um blog pra lá de impopular, ficava se condoendo por causa daquele maldito silêncio, do lado de lá, soando como uma sala inteira que não bate palmas ao fim da peça, deixando o ator principal temeroso de ter atuado pessimamente... Pensavam que ele tinha criado o blog pra quê, pra ficar ali falando sozinho, monologando com o vazio? O que ele queria, na verdade, era que as pessoas tirassem suas mordaças, vencessem a timidez, puxassem uma cadeira e (tem tanta cerveja na geladeira! Só pegar uma lá...) e viessem puxar papo... E por tanto tempo o menino do blog, tonto que só ele, se decepcionou a cada post com zero comments e zero mails, achando que ninguém lia, ninguém se interessava, ninguém curtia, embirrando feito criancinha que não recebe tanta atenção quanto queria. Muitos textos, nascidos depois de um doloroso parto, escritos com a mais completa entrega de coração, ficavam ali, sem eco, sem repercussão, sem efeito, não muito diferentes do que seriam se tivessem ficado na gaveta, escondidos... “O povo só quer saber de You Tube e Orkut, de Emule e MP3, de pornografia e besteirol!” - pensava ele - “Ninguém está ligando pros meus textos lamurientos, minha imperdoável prolixidade, minhas cansativas confissões... Eles não estão nem aí pra mim!” (Ôôô bebê!)
e aí, num dia qualquer, ele abriu sua mailbox, já sem muitas esperanças de ter recebido resposta da pessoa de quem mais queria palavras (conhecem vocês a angústia de aguardar em vão por uma carta que não vem e não vem e não vem?...), e lá estava um nome novo, desconhecido, assinando uma cartinha que chegava parecendo um presente fora-de-hora. Ele nem era supersticioso, o menino, mas naquele momento pensou que a vida, afinal de contas, nem era tão sacana assim quanto ele andava pensando – e justo no momento em que ele tinha sido machucado e atirado na fossa por uma pessoa, surgiu outra (e que providencial aparição!), para consolá-lo e alegrá-lo e ajudá-lo a se levantar... E que delícia não foi, de repende, descobrir que ele tinha uma admiradora secreta (a primeira e única!), que enfim se apresentava, que fazia a imensa gentileza de não guardar para si como um segredo o gosto que sentia por ler o que ele escrevia, e que aparecia, doce e cheia de elogios, jogando um bem-vindo facho de luz na vida do pequeno Polteirgeist, que estava então numa fase de penumbras...
E foi assim que começou o diálogo, a troca de cartinhas e gentilezas, logo mais os telefonemas e os primeiros encontros combinados. Os dois viram na condição mútua de USPianos paulistanos algo que facilitava o encontro – e tinham o bom pretexto de que é sempre tão “enriquecedor” conhecer pessoas de outros cursos... Ele, ignorantão sobre grande parte da imensa cidade de São Paulo, aceitou ir encontrá-la para conhecer a famosa Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, aquele suntuoso edifício de arquitetura embasbacante, bem no miolo da cidade, não muito longe da Praça da Sé e dos calçadões-formigueiros-humanos...
Ele estava super nervoso e cheio de tremeliques na primeira vez que ligou pra ela, sentado num banco do bosque da FFLCH, pouco após o lusco-fusco. Toda a vida ele nunca tinha se entendido muito bem com o telefone e seus pais nunca precisaram dar broncas por causa dos abusos – tinha um certo pavor instintivo daquele treco que transmitia sua voz pelos fios e a despejava nos pobres ouvidos de alguém distante... E ele achava que tinha algo de estranho e inquietante nisso de estar prestes a ouvir pela 1a vez a voz de uma menina que só conhecia por escrito – por enquanto. E se não gostasse do tom de voz dela, e ela do dele? E se um “não fosse com a cara” do outro? E se ele, esbaforido de tão nervoso, começasse a gaguejar, a atropelar as palavras, a ter brancos linguísticos de dar vergonha? Após muita hesitação, ligou. E a voz calorosa de menina sapeca e jovem que entrou por seus ouvidos dissipou em segundos qualquer temor. Em rápida progressão geométrica vieram os alívios: ufa, ela é normal, legal, simpática, adorável, maravilhosa! Ela parecia falar como se estivesse com um sorriso nos lábios, meio que se segurando para não cair na gargalhada, com uma voz macia e que tinha, ao mesmo tempo, o efeito de fazer quase que umas cócegas dentro dele. Papearam um pouco sobre qualquer bobagem, ele já ficando quase atrasado para a aula da noite (e não se importando nada com isso!), e combinaram o primeiro encontro; ela deu todas as dicas sobre como chegar ao Largo do São Francisco, que ônibus pegar, onde era melhor pra que eles se encontrassem...
- E você vai saber me reconhecer? Cê só viu no meu Orkut a fotinha esquisita de mim com cabelo moicano... hoje tô bem diferente! - ele comentou, com medo de que ela pedisse uma detalhada descrição física que ele acharia difícil de dar. (Nem se lembrava direito de sua própria cara na maior parte do tempo.)
- Acho que sou boa em fisionomias – ela respondeu, para o alívio de ambos.
E lá se foi ele, o menino do blog, para o primeiro encontro com a primeira pessoa nesse mundo que tinha gostado o suficiente de sua humilde casinha-na-árvore internética para ter vontade de conhecê-lo. E ele se lembra até hoje com uma alegre nostalgia daquela agradabilíssima tarde em que ela, servindo de guia turística (aprovada por ele com louvor nessa função!), apresentava empolgada (“adoro apresentar esse prédio pras pessoas!”) as instalações da Sanfran para o carinha da filosofia que nunca tinha pisado naqueles lados. Aquele pátio vasto onde andaram em círculos, aquelas escadarias charmosas decoradas com vitrais, aqueles lustres chiques pendendo dos tetos altos, aqueles corredores em que os passos ressoavam..: belo cenário para que os dois caminhassem, falando sobre de tudo um pouco, até que se sentassem na pracinha-do-túmulo para mais deliciosos minutos de papo fácil, fluido, gostoso. Tempos depois, ele retribuiria o passeio, apresentando a futura advogada, super alienada das realidades do câmpus central, à imensidão da Cidade Universitária, incluindo tudo: Praça do Relógio, Cepê, CRUSP, cinUSP e, principalmente, a tão afamada FFLCH.
Depois exploraram juntos a praça da Sé, o Parque da Luz, o shopping dos plêibas em Higienópolis, o Museu da Língua Portuguesa em tempos de Clarice Lispector, os cineminhas cult da Augusta e uma pizzaria legalzinha ali nas redondezas... Comeram juntos no restaurante chinês por quilo, papeando sem parar sobre seriados de TV (ela recomendando Grey's Anatomy, ele dizendo que achava que nada superava A Sete Palmos...), sobre filmes que gostavam (o Clube da Luta ela tinha achado muito violento, mas do My Fair Lady tinha gostado...), sobre bandas que marcaram suas vidas (ele contando que tinha todos os Cds e singles originais do Belle and Sebastian, ele recomendando a Casey Dienel e conquistando-a para a causa...) - sobre de tudo um pouco.
Acabaram até por serem os protagonistas de um pequeno milagre frente à balança de pesar do self-service: ambos os pratos fizeram acender-se na maquininha um R$ 8,64. Ele achou incrível, aquilo (e nem era superticioso, o menino!), pensando que a vida inteira tinha conspirado para fazer com que os grãos de arroz, os pedaços de frango xadrez e os rolinhos-primavera acabassem por pesar exatamente o mesmo nos dois pratos gêmeos. Ele até pensou em dizer que pra ela: “Vixe, isso só pode ser coisa do destino!”, mas ficou com medo que ela achasse que era cantada.
Andaram juntos de metrô, ela zoando o comodismo pequeno burguês dele, que parecia que só andava de carro e mal sabia como agir naquele excêntrico modo de transporte subterrâneo, enquanto ele se desculpava dizendo que, apesar de realmente não estar muito familiriazado com os modos de transporte plebeus, nem sempre tinha sido assim e que já tinha pegado muito busão na vida, pô! PÔ! E ele, todo gentil e cavalheiro, sempre oferecia carona pra ela até em casa, não por sentimento de dever ou alguma forçada polidez, mas pra prolongar a companhia, a presença, o papo (não queria se despedir assim tão cedo!). E várias vezes, depois dos passeios, ele entregava, sã e salva ali, na esquina da Angélica, aquele serzinho muito mais angelical do que a avenida onde morava.
Se bem que nem sempre era fácil achar o caminho para a Angélica no meio do labirinto imenso que é a cidade de São Paulo. Um dia acabaram se perdendo feio por aí, em plena hora do rush, chegando em lugares estranhíssimos. Ficaram presos em túneis congestionados sabe-se-lá onde, ambos temerosos de que não chegariam tão cedo em casa naquele dia e já se preparando para enfrentar o ronco dos estômagos e o stress de todos os motoristas ao redor. Ela tirou da mochila sua barrinha de cereais, só para enganar a fome no meio do trânsito parado, e dividiram a única iguaria alimentícia que tinham para substituir o almoço, enquanto ela perguntava, meio com medo de ter pedido uma carona que tinha causado tantos incômodos:
- Tá bravo comigo por ter te feito se perder em São Paulo? - ela perguntou, meio de sacanagem, já sabendo que ele não estava nadinha bravo e que, muito pelo contrário, nunca tinha achado tão divertido o fato de estar perdido na maior cidade da América Latina e preso num túnel congestionado que se enchia lentamente com os gases poluentes mais nocivos da história da civilização industrial.
- Claro que não tô bravo! - ele garantiu, convicto, e convenceu. Ela comentou que ele realmente parecia um cara muito sussa.
Depois de passada a cena, ele ficou achando a pergunta muito cômica, vinda de quem veio, como se fosse o maior dos absurdos que justamente aquela menina pronunciasse uma frase dessas: “Está bravo comigo?” E ele pensou naquilo que deveria ter dito, mas que só pensou em dizer depois: “Como assim, 'ficar bravo com você?' MAS DÁ? DÁ?!? Mas que tipo de ser humano neste planeta seria capaz de ficar bravo com uma pessoa como você, Carolina? Me explica - que eu mal consigo conceber... Só se for um completo desequilibrado mental, um psicopata digno duma camisa-de-força, porque qualquer ser normal NUNCA conseguiria a proeza de ficar bravo com você! Você é doce demais, meiga demais, adorável demais, sensível demais, preocupada demais com os outros para conseguir esse ato impossível pra ti de embravecer alguém! Então não me faz essa pergunta ridícula, coisinha!... Ora, se estou com raiva de você! Não ficaria nem que você me desse um tiro!”
E entre os encontros, continuavam trocando suas cartinhas. Singelas, simpáticas, simples. Mutuamente confortantes. E ele se sentiu bem ao saber que tinha descoberto alguém em quem podia realmente confiar, com quem se sentia totalmente à vontade para se abrir, alguém com quem ele sabia que podia contar – for good and bad times. Nos maus momentos, ela estava lá para dizer que tudo ia ficar bem, que ele ia superar qualquer coisa que fosse, justamente quando ele precisava que alguém incutisse esse otimismo que ele quase sempre acha tão tolo... “cê vai ficar bem!”, na boca dela, soava mesmo como um fortificante. E ela estava lá para, justo no momento em que ele se sentia mais valendo nada, mais desprezado e rejeitado, garantir que existiam sim outras meninas por aí que podiam gostar dele, e muito, e muito mais jeito que ele queria. Ela estava lá, com a doçura e a simpatia que ele precisava, sendo muito mais legal com ele do que ele achava que merecia, oferecendo um punhado de elogios tão bons, um ouvido tão disponível, uma ajuda tão solícita, um consolo tão doce – coisas que ela talvez nem saiba o quanto foram importantes...
E isso são só pedacinhos da história, e talvez nem sejam os mais legais, nem os mais significativos, nem os mais memoráveis. Mas esse narrador aqui, apesar de onisciente, não é sacana a ponto de usar os seus poderosos olhos com raio X para sair revelando os segredos alheios assim, sem nenhum pudor...
O fato é que o menino do blog, feliz pela nova amiga, por todas as cartas que recebeu dela, pelas boas memórias que carrega desses passeios que tiveram nesses últimos meses, ficou quebrando a cabeça tentando encontrar um presente pra dar a ela no aniversário que se aproximava, sabendo que não gostaria de somente repetir os velhos clichês e frases feitas de sempre... Ela mesma já tinha resmungado contra as tias chatonas que ligam cheias de congratulações horrorosas e irritantes no dia em que fazemos anos - “um texto socialmente convencionado que irrita!”, ela reclamava, e com justa causa. E o menino do blog, enquanto o 21 de Setembro ia cada vez mais se aproximando, ficou pensando no que faria para dizer a ela o quanto significava pra ele tê-la conhecido, o quanto ele tinha curtido a companhia e o papo dela, o quanto ela foi uma das melhores coisas que aconteceu no ano dele, e sobre o fato de que, apesar de tudo, se o blog tinha servido para que se conhecessem, já tinha servido pra muito – e ele agradecia a ele, blog, por ter existido, e à sua única leitora-transformada-em-amiga, por ter surgido. E o menino acaba achando que, melhor que qualquer mensagem grandiloquente, podia simplesmente contar a história dos dois e embrulhá-la pra presente. Historieta singela e sem clímaxes, talvez um pouco tola para todas as pessoas do mundo que não são esses dois – mas, ainda assim, com um sabor doce de simpatia e de luz...
E ele pensa que não deve somente desejar um “feliz aniversário!”, como se só desejasse para a pessoa esse único dia de alegrias entre os 365 do ano, mas sim algo como: “te desejo uma feliz vida inteira!” E pensa também: pra que dar “parabéns” à pessoa só por ter chegado ao dia do ano em que nasceu, coisa que não exige talento algum pra ser feito? (Parabenizamos o artista ou o escritor pela excelência da obra, o médico pelo sucesso da operação, o arquiteto pela firmeza do prédio, o esportista pelo recorde ou pela medalha – todas coisas difíceis de realizar... já chegar no dia do ano em que se nasceu é bico e qualquer retardado consegue fazer!) E ele pensa que melhor seria dizer: “Parabéns, não por ter chegado nesse dia aqui, mas por ser você! Parabéns por ser você...” E pensa ainda que nem quer ficar nas declarações de afeto usuais e exageradas cheias de eu-te-amo, eu-te-adoro e gosto-demais-de-ti, quando o que ele mais queria dizer era algo bem mais um simples e singelo: “Obrigado por existir.”
=)