INTRODUÇÃO: A CONVIVÊNCIA COM OS FANTASMAS“Derrida praticamente não teve equivalente (...) para
forjar o espírito de toda uma geração”, escreveu Jurgen Habermas, pouco depois da morte do filósofo francês em 2004, em texto publicado no Brasil pelo caderno MAIS! da Folha de São Paulo”. “Sob seu olhar inflexível, todo contexto se desfaz em
fragmentos; o solo que acreditávamos estável se torna
movediço, o que supúnhamos completo revela seu fundo duplo. (...) O mundo em que acreditávamos estar em casa se torna inabitável. Não somos deste mundo: nele somos
estrangeiros entre estrangeiros”. Tais palavras, provindas de um filósofo que combateu e criticou Derrida, mas que soube reconhecer seu impacto incalculável, dão uma boa noção inicial da “aventura” que é mergulhar nesta obra.
Jacques Derrida, o “
pai da desconstrução”, é um pensador de imensurável importância na cena filosófica do século 20. Estabeleceu diálogos complexos e multifacetados com uma miríade de outros pensadores/correntes intelectuais, sempre reconhecendo-se herdeiro de suas leituras (“ser é herdar”), fiel aos “fantasmas” com quem soube tão bem conviver, mas assumindo-se sempre um explorador de
novos horizontes.
“Prefiram sempre a vida e afirmem sem cessar a sobrevida” - foram suas últimas palavras, no leito de morte, a seus parentes, e um dito que ficaria bem se escrito num portal que desse acesso à sua obra.
Em seu trabalho, Derrida “conversa”, entre outros, com a linguística de
Saussure, a fenomenologia de
Husserl, a antropologia de
Lévi-Strauss, todos seus contemporâneos englobados sob o rótulo de
“estruturalistas” e toda a tradição marxista e freudiana (e também com suas correntes e galhos: como
Althusser e
Lacan), além de estar sempre remetendo às idéias de
Heidegger, Nietzsche, Lévinas... Como poucos, ele soube assumir a responsabilidade pela obra de todos esses “fantasmas” da tradição e da herança cultural, como apontou tão belamente no exórdio de
Espectros de Marx: “...nenhuma ética, nenhuma política, revolucionária ou não, parece possível, pensável e justa sem reconhecer em seu princípio o
respeito por estes outros que não estão mais ou por esses outros que não estão aí, presentemente vivos,
quer já estejam mortos, quer ainda não tenham nascido.” (E.d.M., pg 11).
Por isso, uma das dificuldades em compreender plenamente seus escritos, inúmeras vezes acusados de serem herméticos, excessivamente complexos ou de “estilo” demasiado caótico, encontra-se nesta múltipla “conversa” que ele orquestra com tantos textos. O próprio
Foucault, num momento altamente espirituoso, acusou-o de praticar uma escrita que apelidou de
“obscurantismo terrorista”: “Derrida escreve de maneira tão obscura que você não pode definir sobre o que ele está falando, esta é a parte obscurantista; e quando você o critica, ele sempre pode dizer: 'Você não entendeu nada, você é um idiota. Esta é a parte terrorista.” (como citado por SEARLE, John).
Mas o caráter intrincado e muitas vezes “caótico” dos escritos derridianos torna-se menos assustador, é claro, se o leitor souber o que disseram e pensaram os interlocutores aos quais Derrida se endereça. Conhecer as obras e pensamentos com os quais ele está constantemente dialogando e remetendo é essencial para uma compreensão mais ampla do que ele escreveu. Além, é claro, da necessidade de se familiarizar com todo o “ambiente intelectual” onde ele desenvolveu seu trabalho, marcado por inúmeras tendências e heranças (o existencialismo, o estruturalismo, o marxismo etc.). Para melhor assimilá-lo, pois, como o próprio recomenda,
“é preciso, sobretudo, ler e reler aqueles autores nos rastros dos quais eu escrevo, aqueles 'livros' em cujas margens e entrelinhas eu desenho e decifro um texto que é, ao mesmo tempo, muito semelhante e completamente outro” (Ps, pg. 10).
No fundo, a crítica mais direta empreendida por Derrida é à
“metafísica ocidental”, vista como logocêntrica, etnocêntrica, baseada na linguagem fonética, e o idealismo que lhe é inerente. Como explica Haddock-Lobo, o que a desconstrução de fato
“almeja mesmo é efetuar um deslocamento das oposições para além da dicotomia da metafísica dualista” (HADDOCK-LOBO, “O que nos faz pensar” #21, junho de 2007).
Para atingir este efeito (entre outros) é que a desconstrução trabalha. Romper com as polaridades/dicotomias da metafísica dualista significa
“reconhecer que, em uma oposição filosófica clássica, nós não estamos lidando com uma coexistência pacífica de um face a face, mas com uma hierarquia violenta. Um dos dois termos (axiologicamente, logicamente etc.), ocupa o lugar mais alto. Desconstruir a oposição significa, primeiramente, em um momento dado, inverter a hierarquia”. (Ps, pg. 48).
Mas à esta “primeira fase”, a inversão, deve-se somar o processo de deslocamento, sendo que o procedimento desconstrutivo seria definido por este duplo gesto. Por um lado, realiza-se uma “inversão que coloca na posição inferior aquilo que estava na posição superior, que desconstrói a genealogia sublimante ou idealizante da oposição em questão”; e, de outro, procura-se “a emergência repentina de um 'novo conceito', um conceito que não se deixa mais – que nunca se deixou – compreender no regime anterior” (Ps, pg. 49). Em outros termos, como explica Haddock-Lobo,
“...o filósofo esforça-se para se manter no limite do discurso filosófico, o que somente é possível através do duplo gesto que comporta os dois momentos da atividade desconstrutiva, a saber, a inversão e o deslocamento. Na inversão, tudo aquilo que foi recalcado, reprimido, abafado ou marginalizado pela filosofia é enfatizado e, deste modo, dá-se em um primeiro momento um olhar especial à escrita, ao significante, à mulher, à loucura etc., em detrimento de tudo que foi defendido pela tradição filosófica: a fala, o falo, a razão, o significado e assim por diante. No entanto, o que a desconstrução almeja mesmo é efetuar um deslocamento das oposições para além da dicotomia da metafísica dualista. Assim, se há antes uma certa 'aposta' no feminino, na escritura ou em qualquer um dos pólos esmagados pela tradição, isso se dá em razão deste pólo ser justamente a possibilidade de se romper com a própria polaridade.” (HADDOCK-LOBO, “O que nos faz pensar”, n21, junho de 2007).
Neste trabalho, procuraremos centrar foco numa certa tentativa sucinta de descrever e localizar algumas das posturas de Derrida frente a algumas questões “políticas”, em especial o modo como ele assume a herança marxista, sua concepção de História e suas meditações sobre Justiça e Direito, demonstrando por estas vias de que maneira a desconstrução representa uma veemente campanha de
ataque ao idealismo.
Poderíamos dizer, pois, que Derrida, paralelamente à demolição que realiza da noção de uma História do Sentido, empreende uma “crítica do idealismo”? Ele mesmo aquiesce: “o que eu tentei pode também ser inscrito sob o rótulo da 'crítica ao idealismo'. Não é preciso, pois, dizer que nada, no materialismo dialético, ao menos na medida em que ele opera esta crítica, suscita de minha parte a mínima reticência...” (Ps, pg. 70).
CONCEPÇÃO DE HISTÓRIA ANTI-IDEALISTADerrida insiste para que nos ponhamos em guarda, para que sejamos céticos e desconfiados, em relação a um conceito da História vista como
“história do sentido”, mostrando-se neste quesito radicalmente anti-hegeliano. Em Posições, deixa claro que “se deve desconfiar do conceito metafísico de história”, ou seja, “do conceito de história como história do sentido se produzindo, se desenvolvendo, se realizando.” (Ps, pg. 64):
“Será preciso lembrar que foi precisamente contra a autoridade do sentido – do sentido como significado transcendental ou como telos, em outras palavras, da história determinada, em última instância, como história do sentido, história em sua representação logocêntrica, metafísica, idealista (...) que tentei sistematizar, desde os primeiros textos que publiquei, a crítica desconstrutiva?” (...) “Não apenas nunca acreditei na autonomia absoluta de uma história considerada como história da filosofia, no sentido do hegelianismo convencional, mas tentei regularmente recolocar a filosofia em cena, em uma cena que ela não governa...” (Ps, pg. 56-57)
Vivendo em tempos em que não era incomum que se profetizasse o “apocalipse” em termos como “fim da história”, “fim da filosofia”, “fim do marxismo”, Derrida recusou-se a aceitar este ponto final. Para dar uma panorâmica deste “zeitgeist”, citemos Blanchot, que Derrida discute em Espectros de Marx:
“Ao nosso tempo filosófico pertenceria essa morte da filosofia. Ela não data de 1917, nem mesmo de 1857, ano em que Marx, numa façanha de forasteiro, teria operado a volta sobre si do sistema. Há um século e meio, em seu nome como em nome de Hegel, de Nietzsche, de Heidegger, é a filosofia mesma que afirma ou realiza seu próprio fim, quer o entenda como realização do saber absoluto, sua supressão teórica relacionada à sua realização prática, o movimento niilista onde submergem os valores, enfim pelo fim da metafísica, sinal precursor de uma possibilidade outra, que ainda não tem nome. Eis aí o crepúsculo que acompanha daí em diante cada pensador, estranho momento fúnebre que o espírito filosófico celebra numa exaltação, de mais, muitas vezes alegre, conduzindo seu lento funeral, durante o qual ele conta realmente, de um modo ou de outro, obter sua ressurreição...” (BLANCHOT, como citado em Espectros de Marx, pg. 56).
Derrida jamais assinou embaixo de uma noção qualquer que conduzisse à qualquer tipo de “consumação” que faria parar a carruagem dos tempos, ou seja, sua concepção de História não possuía nenhum tipo de idealismo/niilismo/escolho metafísico que pudesse abrir espaço para que estourasse no filme do mundo um glorioso ou apocalíptico “THE END”. Como ele apontou em entrevista à Henri Ronse: “Tento me manter no limite do discurso filosófico. Digo 'limite' e não 'morte', porque
não creio, de forma alguma, naquilo que se chama, hoje, facilmente, de 'morte da filosofia'...” (Im, pg. 12).
Esta concepção de uma história “sem fim” também se aplica à “caminhada do conhecimento”, à “saga do saber”. Poderíamos perguntar, por exemplo: atingiremos um dia um
Livro Final, que contenha em si todas as Verdades Eternas, depois do qual nenhum outro livro precisará ser escrito, já que neste Livro Supremo estarão todas as sabedorias, todas as verdades, todas as soluções para todos os mistérios? Será que todas as obras de escritura, como sugere Mallarmé, representam um “imenso concurso pelo texto verídico, entre as épocas ditas civilizadas ou letradas” (F.e.S., pg23), e um dia este “concurso” atingiriá uma gloriosa consumação? A estas questões podemos supor com razoável grau de certeza que Derrida responderia com um convicto “não!”
Que os religiosos acreditem nisto – que a Bíblia Sagrada, por exemplo, “esgota” a Verdade, diz toda a Verdade, não deixa espaço algum para uma adição de verdades ou a revelação de novas verdades, não impede que Derrida pense que este Livro Absoluto não existe, nunca existiu, nem nunca existirá. “É a ausência do Livro que deste modo deploramos”, diz Derrida, e é como se chorássemos por esta
“ausência da escritura divina”, por este Deus que jamais nos empresta sua pena, por ficar sempre no formidável silêncio de que são capazes somente as coisas que não existem. É esta “certeza perdida”, esta “ausência da escritura divina”, o que “comanda toda a estética e crítica modernas” (F.e.S., pg. 23).
Isso nos condena a ler-e-escrever sem antes conhecer as verdades; ler-e-escrever na batalha para descobrir-las; ler-e-escrever numa certa escuridão e num certo tateamento, como crianças que vão entrando, ao mesmo tempo curiosas e temerosas, num quarto sem luz; escrever, de certo modo, como sonâmbulos, e destes que nem mesmo conseguem estar certos de que não despencarão em abismos.
Como dizia Merleau-Ponty, “No escritor o pensamento não dirige a linguagem do lado de fora: o escrito é ele próprio como um novo idioma que se constrói...”. Ou, em outro momento: “As minhas palavras surpreendem-me a mim próprio e me ensinam o meu pensamento.” (MERLEAU-PONTY).
Por isso, comenta Derrida, o ato de escrever e de conhecer pode ser sentido como algo perigoso e angustiante, aventura sem seguros e cheia de riscos, jornada em que embarcamos sem saber ao certo para onde vamos...
“A escritura é para o escritor, mesmo se não for ateu, mas se for escritor, uma navegação primeira e sem Graça.” (F.e.S., pg. 25) Escrever é navegar em mar tormentoso, sabendo que Deus algum nos auxilia nessa jornada, e que temos como guias somente o que outros (valiosos fantasmas!) deixaram escritos: os relatos (decerto preciosos!) de outros navegantes.
Trata-se aqui de fazer uma crítica a um “preconceito idealista”, que veria a escritura como decorrente de um Ideal anterior, de uma Intenção anterior, de um Desígnio anterior. Nesta concepção, por Derrida criticada, escrever seria apenas “transcrever” o que já se concebe, o que já se pensa, o que já se sabe; traduzir no papel um ideal prévio que já se tinha. Mas não: a escritura é navegação, revelação, descoberta, espanto e criação!
“Se a criação não fosse revelação, onde estaria a finitude do escritor e a solidão da sua mão abandonada por Deus?” (F.e.S., pg. 26)
“Este poder revelador da verdadeira linguagem como poesia é na verdade o acesso à palavra livre”, sugere Derrida. E por “palavra livre” ele entende a palavra liberta de suas “funções sinalizadoras”, ou seja, a palavra usada não somente com fins pragmáticos de comunicação cotidiana, a palavra que não é mero dedo que aponta, placa que indica, signo que se refere a algo no mundo. “É quando o escrito está defunto como signo-sinal que nasce como linguagem” (F.e.S., pg 26), e Derrida deixa no ar a poética sugestão de que o poeta é aquele que “arranca a palavra de seu sono de signo” (F.e.S., pg 26).
O ESPECTRO DE MARX SEMPRE A NOS RONDAR
Derrida, claro, é um pensador que exerceu suas atividades em “um mundo em que a herança marxista era – e ainda continua sendo, e, portanto, continuará sendo – absolutamente e de ponta a ponta determinante”. Por isso ele destaca que
“todos nós habitamos um mundo, alguns diriam uma cultura, que conserva, de modo diretamente visível ou não, numa profundidade incalculável, a marca desta herança” (E.d.M., pg. 30). Ele reconhece em Marx um “grande filósofo”, que “deve figurar em nosso grande cânon da filosofia política ocidental” (E.d.M., 52), sublinhando que “será sempre um erro não ler, reler e discutir Marx” (E.d.M., pg. 29). Há em
Espectros de Marx “confissões” que deixam claro o impacto da obra de Marx em seu pensamento:
“Na releitura do Manifesto e de algumas outras grandes obras de Marx, disse a mim mesmo que conhecia poucos textos na tradição filosófica, talvez nenhum outro, cuja lição parecesse mais urgente nos dias de hoje. (...) Nenhum texto da tradição parece tão lúcido quanto à mundialização em andamento na política, quanto à irredutibilidade do técnico e do midiático na óptica do pensamento mais pensante – e para além da estrada de ferro e dos jornais de então, cujos poderes foram analisados de modo incomparável pelo Manifesto. E poucos textos foram tão luminosos no que concerne ao direito, ao direito internacional e ao nacionalismo.” (E.d.M, pg. 28-29)
Derrida tampouco ignora que há um
“imperativo político” por trás da teoria de Marx que não deve ser calado ou neutralizado, ou seja, jamais deveríamos omitir, esquecer ou silenciar que
Marx “prescreve não somente decifrar, mas agir ou fazer do deciframento (da interpretação) uma transformação que 'modifique o mundo'...” (E.d.M., 51).
Em
Espectros de Marx, Derrida, intentando pontuar suas idéias em relação à esta inescapável herança marxista, estabele um paralelo entre dois “espectros” que, cada um a seu modo, surgem conclamando por justiça sobre a Terra: o espectro do
pai de Hamlet, na clássica tragédia shakespeariana, que convoca o príncipe de um estado apodrecido a pôr o tempo de volta nos trilhos; e
o espectro do comunismo, que o Manifesto de Marx & Engels, já em sua primeira sentença, vaticina que está "rondando a Europa”.
Narra Derrida, que é um mestre em utilizar os “poderes expressivos” da literatura em sua filosofia, borrando os limites entre ambas, que a “saga” comunista é algo que necessita do apelo ao “mundo espectral” para ser plenamente compreendido.
A “velha” Europa, a Europa das elites, tremia de inquietação frente a este ameaçador espectro, o comunismo, que ameaçava reconstrui-la sobre outros alicerces, que os revoltosos proclamavam ser muito mais justos e humanos. E ela, a Europa ameaçada de demolição, tentava se tranquilizar quanto à impossibilidade de sua derrubada, como se dissesse: ora, são só sonhos! É só a alucinada imaginação do povo! O populacho sempre põe lenha em projetos descabidos, irrealizáveis, impossíveis de se fazerem em carne! Pois não os deixaremos! Eles,
para dormirem em paz à noite, diziam que esse fantasma nunca viria a se transformar num monstro real, capaz de mastigá-los e defecar seus restos na sarjeta do tempo. O fantasma nunca encarnaria; o sonho jamais seria realizado; a esperança mostraria ter sido apenas isso: uma esperança, e vã – como é do feitio da maioria das esperanças!
Derrida sugere, em seu caminhar, que o comunismo, antes de ter sido algo “escrito” na história do mundo, foi apenas um verbete na história dos sonhos humanos:
seu espectro precedeu sua vinda efetiva. Ele foi, primeiro, uma exigência, um imperativo, um projeto, uma necessidade, um objeto de desejo, um construto mental composto por tudo aquilo que se purgava do real de deficiências e do que se imaginava como representando um melhor estado-de-coisas. O comunismo, antes de ter sido o filho do proletariado, dos camponeses, dos revoltosos, do
povo em levante contra suas algemas, foi um filho da imaginação. Não diria eu que foi filho da imaginação de Marx, sozinho, pois nada neste mundo se faz sozinho, e Marx disso sabia muito bem, e só foi um gigante pois, quando era anão, subiu nos ombros de gigantes...
“Marx pensava sem dúvida, pelo seu lado, do outro lado, que a fronteira entre o fantasma e a efetividade deveria ser transposta, como a utopia mesma, através de uma realização, isto é, através de uma revolução”, comenta Derrida. Mas logo este algo que soa quase como uma crítica, sugerindo que ele mesmo, Marx, jamais deixou de acreditar “na existência dessa fronteira, como limite real e distinção conceitual” (E.d.M., pg. 59). Será que o problema não estaria justamente aí, em estar convicto da realidade desta fronteira? E se fosse esta uma fronteira imaginária? E se criar uma
“cisão” entre dois mundos, o do “real” e o “possível”, o do “efetivo” e o do “potencial”, o do “presente” e o do “porvir”, for algo que não se sustente fora da nossa mente? E se isso representar ontologizar o que é uma distinção meramente mental?
Derrida, suspeitoso e sagaz, querendo manter-se em guarda também contra certos rastros de idealismo que pudessem ter restado em Marx, diz que “
há razões para duvidar sobretudo da fronteira entre o presente, a realidade atual, e tudo o que se lhe pode opor: a ausência, a não-presença, a inefetividade, a inatualidade, a virtualidade ou mesmo o simulacro em geral”. Quando, desse modo, “racha-se em dois” o mundo, não se estará mutilando a verdade? “Esta oposição, seja ela dialética, não foi, sempre, um campo fechado e uma axiomática comum para o antagonismo entre o marxismo e a legião ou a aliança de seus adversários”? - pergunta o filósofo (E.d.M., pg. 60).
Esta “saga do marxismo”, por assim dizer, Derrida obviamente não a considera terminada; o ponto final está longe de ter sido posto ao fim da frase (o que talvez nunca ocorrerá). Diz ele que
a “nova” Europa, igualmente obcecada em ninar seu próprio sono, contando-se novos contos de fada consoladores, como fez a “velha” Europa frente ao espectro que a amedrontava, engana-se dizendo que o comunismo é já um espectro passado. Este fantasma já teve seu momento de assombração no palco da História, mas não mais voltará a nos incomodar... Os ghostbusters do capital já varreram-no de vez para a lata de lixo dos fantasmas liquidados! “Suspiro de alívio ainda inquieto”, vaticina Derrida, antes de falar, ironicamente, pela boca dos que dizem tê-lo visto morto e enterrado: “façamos de modo que no porvir ele não retorne mais!”
“...no porvir, diziam as potências da velha Europa no século passado, é preciso que ele não encarne. Nem em público, nem às escondidas. No porvir, ouve-se por toda parte hoje, é preciso que ele não re-encarne: não se o deve deixar re-vir posto que é passado.” Pois então tanto a “nova” quanto a “velha” Europa não cessaram de sentirem-se debaixo de riscos frente a esse insistente espectro, que de tantos modos se tentou conjurar e expulsar do corpo dos tempos! É a “santa caçada a este espectro” que o
Manifesto Comunista de Marx e Engels cita e que prossegue soando com a “retórica neoliberal” que “a um só tempo jubilosa e ansiosa, maníaca e enlutada, muitas vezes obscena em sua euforia” (E.d.M., pg. 99), finge celebrar a morte do que na verdade jamais morreu . Sublinha Derrida:
“Trata-se muitas vezes de fingir constatar a morte aí onde a certidão de óbito ainda é o performativo de uma ação de guerra ou a gesticulação impotente, o sonho agitado de um assassínio.” (E.d.M., pg. 71) O desejo de assassinar o incômodo espectro é tanto que já declara-se que ele, espectro, está morto!
O que ele está longe de estar, ainda que uma “conjuração triunfante se esforce em denegar e dissimular” isto: que
“em ocasião alguma da história, o horizonte disto cuja sobrevivência se celebra (a saber, todos os velhos modelos do mundo capitalista e liberal) esteve tão sombrio, ameaçador e ameaçado.” (E.d.M., pg. 76). Ainda que o discurso dominante, na política, nos
mass media e na Academia, declare o marxismo morto pela “boa nova” que, segundo Fukuyama, representa esta “aliança da democracia liberal e do livre mercado” (
E.d.M., pg. 84), Derrida bate o pé e insiste em manter-se herdeiro de Marx (“a análise de tipo marxista continua sendo indispensável”, E.d.M., pg. 85).
O DILEMA DE HAMLET: O CONFRONTO ENTRE JUSTIÇA E DIREITO
Paralelamente à discussão sobre o espectro comunista, Derrida também remete frequentemente a um dos espectros mais célebres da literatura universal: o pai de Hamlet. O príncipe Hamlet “não amaldiçoa tanto a corrupção do tempo”, sugere Derrida, quanto “esse efeito injusto do desregramento, a saber, a sorte que teria destinado a ele, Hamlet, recolocar nos eixos um mundo desconjuntado”. Esse ímpeto de justiça vingadora que o espectro lhe exige, esse imperioso pedido do pai para que castigue o vilão, faz com o príncipe chegue a
“amaldiçoar o destino que o teria feito nascer para consertar um tempo que anda de revés” (E.d.M, 38). É uma missão que lhe pesa nos ombros: ter que derramar o sangue alheio em sua homicida campanha justiceira. Para ele é quase um “castigo”, aponta Derrica, este “dever castigar”.
Se Derrida parte da hesitação e da angústia de Hamlet frente à sangrenta represália que lhe pede o fantasma do pai, é para ilustrar com um exemplo-literário-maior um dilema que ele interroga e procura solucionar: o das relações entre Justiça e Direito. “Se o direito faz questão da vingança, como pareceu queixar-se Hamlet – antes de Nietzsche, antes de Heidegger, antes de Benjamin -, será que não se pode suspirar por uma justiça que um dia, um dia que não pertenceria mais à história, um dia quase messiânico, fossem enfim subtraída à fatalidade da vingança?” (E.d.M., 39)
O ato que o príncipe de Hamlet “planeja” cometer (o assassinato do tio, usurpador do trono) decerto não é permitido pela lei; mas poderia, talvez, ser um “ato de justiça”?
Força de Lei traz, por sua vez, um aprofundamento desta meditação sobre Justiça e Direito, retomando alguns temas que afloraram em certos momentos de Espectros de Marx, como quando Derrida punha a questão: “
O que é essa justiça para além do direito? Ela vem unicamente compensar um erro, restituir um débito, fazer direito ou fazer justiça? Ela vem unicamente fazer justiça ou, ao contrário, dar para além do dever, da dívida, do crime ou da falta?” (E.d.M., pg. 42)
Derrida procura pensar a possibilidade (ou mesmo a necessidade) de “uma justiça a partir do dom, isto é, para além do direito, do cálculo e do comércio, portanto, a necessidade de pensar o dom ao outro como o dom do que não se tem e que desde então, paradoxalmente, não pode senão retornar ao outro...” (E.d.M., pg. 46)
Como distinguir entre direito e justiça, pois? Derrida define:
“direito é sempre uma força autorizada, uma força que se justifica ou que tem aplicação justificada, mesmo que essa justificação possa ser julgada, por outro lado, injusta ou injustificável. Não há direito sem força.” (FL, 7-8). As perguntas que nascem e seguem à esta definição sim: o que é uma força justa? Há a possibilidade de uma justiça que exceda ou contradiga o direito? A justiça sempre requer o recurso à força? Há como escapar à lógica da vingança, da represália, da punição?
“É preciso reconsiderar a totalidade da axiomática metafísico-antropocêntrica que domina, no Ocidente, o pensamento do justo e do injusto”, afirma Derrida, enfatizando na sequência contra seus opositores que “o que se chama correntemente de desconstrução não corresponderia de nenhum modo, segundo a confusão que alguns têm interesse em espalhar, a uma abdicação quase niilista diante da questão ético-política da justiça” (F.d.L., pg.36).
Para abordar essa problemática, Derrida vai na esteira de dois grandes pensadores franceses clássicos,
Pascal e
Montaigne. O primeiro dizia:
“A justiça sem a força é impotente; a força sem a justiça é tirânica”. A força e a justiça, pois, teriam que andar sempre juntas, ou seja, é imprescindível “que aquilo que é justo seja forte, ou que aquilo que é forte seja justo”.Já Montaigne destaca que não obedecemos às leis por reconhecermos que são justas, mas sim porque elas possuem autoridade; e nós nos acostumamos/aprendemos/fomos condicionados a aceitar esta autoridade. De modo que uma lei não é necessariamente justa, é claro, ainda que as leis sejam seguidas por quase todos; pois unicamente lhes concedemos crédito baseando-se no que Montaigne chama de
“o fundamento místico de sua autoridade”, e não numa convicção íntima de que tal lei é a encarnação do valor “justiça”.
Derrida, naturalmente recusando qualquer noção de “justiça divina”, como faz Pascal e tantos dos filósofos e teólogos cristãos, parece completar o dito de Montaigne sobre o “fundamento místico da autoridade das leis” chamando a atenção para a origem destas leis, ou seja, sua gênese baseada na força:
“...o momento instituidor, fundador e justificante do direito implica uma força performativa, isto é, sempre uma força interpretadora e um apelo à crença... a operação de fundar, inaugurar, justificar o direito, fazer a lei, consistiria num golpe de força, numa violência performativa e portanto interpretativa que, nela mesma, não é nem justa ne injusta, e que nenhuma justiça, nenhum direito prévio e anteriormente fundador, nenhuma fundação pré-existente, por definição, poderia nem garantir nem contradizer ou invalidar.” (F.d.L., pg. 24)
Derrida, pois, rejeita a noção de que Justiça e Direito, como gêmeos siameses, andassem sempre juntos: há leis injustas, e é possível ser justo agindo fora da lei. É o que André Comte-Sponville também percebeu:
“Quando a lei é injusta, é justo combatê-la – e pode ser justo, às vezes, violá-la” (
Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, pg. 73).
Derrida tampouco ignora que isso que chama de Justiça, mais do que uma “realidade”, é uma “vontade”, um “desejo”, uma “exigência” ou um “apelo”. De modo que ele talvez assinasse embaixo do dito de Alain:
“A justiça pertence à ordem das coisas que se devem fazer justamente porque não existem. (...) A justiça existirá se a fizermos. Eis o problema humano.” A Justiça sempre é algo por fazer, por construir, pelo qual lutar, e nunca algo que encontramos em qualquer lugar do real (seja nos tribunais, seja nas constituições) já pronto e realizado.
Além do mais, o direito consiste de regras de caráter abstrato, regras generalizadas, o que faz com o filósofo se pergunte:
“Como conciliar o ato de justiça, que deve sempre concernir a uma singularidade, indivíduos, grupos, existências insubstituíveis, o outro ou eu como outro, numa situação única, com a regra, a norma, o valor ou o imperativo de justiça, que têm necessariamente uma forma geral, mesmo que essa generalidade prescreva uma aplicação que é, cada vez, singular?” (F.d.L., pg. 31)
Derrida recusa-se a aceitar que o homem justo seja simplesmente aquele que obedece às leis – o homem justo precisa fazer muito mais que isso! Sempre pode-se ter certeza sobre isto: se agiu-se de acordo com a lei ou não. Mas “será jamais possível dizer: sei que sou justo?” Já que não há Juiz divino, e já que as consequências de nossos atos jamais são inteiramente previsíveis, a
certeza de que se é justo é “essencialmente impossível, fora da figura da boa consciência e da mistificação” (F.d.L., pg. 32). Podemos, no máximo, nos esforçar para agir sempre de modo justo, o que engloba também questionar se as leis que nos pedem para obedecer respondem de fato à Justiça; mas nunca é possível adquirir “certeza objetiva” sobre a “justiça de nosso caráter”. “A decisão entre o justo e o injusto nunca é garantida por uma regra” (F.d.L., pg. 30).
Isso faz com que a desconstrução conduza à uma concepção de nossa responsabilidade moral como “infinita”:
“é a um acréscimo de responsabilidade que a desconstrução faz apelo” (F.d.L., pg. 38). A justiça em que Derrida pensa
“se endereça sempre à singularidade do outro, apesar ou mesmo em razão de sua pretensão à universalidade. Por conseguinte, nunca ceder a esse respeito, manter sempre vivo um questionamento sobre a origem, os fundamentos e os limites de nosso aparelho conceitual, teórico ou normativo em torno da justiça é, do ponto de vista de uma desconstrução rigorosa, tudo salvo uma neutralização do interesse pela justiça, uma insensibilidade à justiça. Pelo contrário, é um aumento hiperbólico na exigência de justiça” (F.d.L., pg. 37)
Derrida, pois, diz que no presente jamais podemos ter certeza se nossos atos são justos ou não, já que ainda não vimos seus desdobramentos no tempo; e, já que tudo não cessa de desdobrar-se, jamais será possível adquirir esta plena certeza. A decisão moral estará sempre envolta na angústia, já que a justiça é um valor a que apelam seres (nós, limitados humanos!) cujas decisões são “de urgência e de precipitação, agindo na noite do não-saber e da não-regra” (F.d.L., 52). Derrida, pois, reconhece a Justiça como algo sempre porvir, e o ato justo como algo que sempre permanece no domínio do “talvez...”. Sonha ele, sem medo de usar o termo sonhar, com uma justiça que é
“exigência de dom sem troca” e que só é possível com a “vinda do outro como singularidade sempre outra” (49).
Se não há Deus legislador e se o Direito não é a encarnação da Justiça, só nos resta, na solidão e na angústia da decisão moral, com o peso de uma responsabilidade infinita sobre nossos frágeis ombros mortais, assumir que ser justo é viver numa perpétua batalha para tentar construir uma justiça sempre por fazer, por construir, por realizar. Como sintetiza outro grande filósofo francês anti-idealista, Comte-Sponville: “Felizes os famintos de justiça, que nunca serão saciados!”
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