quinta-feira, 22 de outubro de 2009

RASCUNHO DE ALGO QUE NEM SEI O QUE É...

Perder a fé não é nada fácil. Junto com Deus, cai também o Sentido. E agora, vida, o que é que você significa? O que é te salva do absurdo, da infinita angústia? Que missão dentro de ti devo cumprir? Pois antes, quando ainda havia a crença, havia uma meta muito bem definida: fomos postos no mundo por uma divindade benevolente e onipotente, que faz de nosso percurso terrestre uma espécie de prova para checar do que somos merecedores: da bem-aventurança eterna, ou da danação sem fim. O cosmos ficava impregnado de sentido: houve uma criação, e uma razão para esta criação, e um espectador atento, lá em cima, que observa nossos atos e intenções, distribuindo castigos e recompensas conforme nosso mérito, com a mais perfeita equidade e justiça...

Quando deixa-se de crer em Deus, faz-se esse vazio no peito, um buraco negro antes preenchido por sentido. E agora, com que preencher essa ferida deixada por um Deus que se ausentou, levando consigo todo o sentido? Que é a vida, então, se não foi criada, mas foi simplesmente “algo que aconteceu”? Que devemos fazer dela, com que tipo de ações e atos preenchê-la? E agora, que não há certeza de que seremos recompensados pelo Bem nem punidos pelo Mal? Que sobra para nortear nossos seres nos agitados mares de um mundo sempre movente?

Era fácil ser um homem bom quando para isso bastava seguir os Dez Mandamentos, ir à igreja aos Domingos, ficar longe dos puteiros e das amantes. E agora, como ser um homem bom, quando não mais está escrito em pedra os princípios que devemos abraçar? E quem é que vai julgar se um homem é bom ou mau, se o juiz que imaginávamos estar sentado num trono nas estrelas mostra-se só uma ilusão, um vazio, um nada? De onde tirar a energia para a bondade, se sabemos que não há forças cósmicas engajadas em recompensá-la? E como resistir à tentação da maldade, se ela muitas vezes pode trazer suas vantagens e nenhuma divindade punidora nos observa lá de cima?

Ninguém perde a fé à toa ou porque acha gostoso. Não há nada de agradável em ver desmoronar tudo o que antes tínhamos como verdadeiro. E dá uma grande indignação descobrir, de repente, que nos mentiram e nos enganaram. A criança, ao descobrir que Papai Noel não existe, talvez nunca mais vá levar a sério o que dizem os adultos, esses embusteiros, passando por uma desilusão essencial no caminho para a maturidade. Nós, ateus, ao percebermos que tudo na religião não passava de embuste, e que Papai Noel e Papai do Céu tinham mais semelhanças do que uma mera rima, passamos por mais um doloroso ritual de maturação. É como deixar a criança pra trás, de novo, e sempre dói saltar para um outro estágio onde a volta ao anterior é impossível. “Que culpa temos da infância, de seu viço e constância?”, perguntava Jorge de Lima. Mas que culpa temos se as ilusões da infância, cedo ou tarde, acabam ruindo? E crer em Deus não é um aferrar-se a ser criança? Não é querer habitar um mundo onde os nossos desejos mais íntimos e profundos são todos atendidos?


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Sei muito bem, também, o quanto argumentos contam pouco contra vivências. Se me tornei ateu, sem chance de retorno, foi certamente pelo que vivi muito mais do que pelo que li ou me disseram. Se tudo saísse como o planejado, eu teria sido um cristão perfeito, que comunga toda semana, que confessa seus pecados, que reza à noite e à mesa seus pais-nossos, que preocupa-se com a salvação de sua alma, que vive com a sensação constante de estar sendo pelo juiz supremo observado...

Quando criança, fui mandado pro catecismo, e não tinha nada de levado-da-breca. Ouvia com atenção. Respeitava a sabedoria dos anciãos. Acreditava piamente que o padre entendia muito mais sobre o mundo do que eu. Enxergava sobre a Bíblia uma certa aura sagrada, que a fazia ser um livro especial entre os livros, e um que não se podia ler sem uma respeitosa postura de gravidade. É claro que, como todo menino, achava tudo muito chato e não via a hora de voltar ao vídeo-game. Mas, desde muito cedo, influenciado muitíssimo, também, pela minha avó, me preocupei, sobretudo, em “ser um bom garoto”. Meus pais não têm muito a me censurar em termos de travessuras: eu não atirava pedras nas janelas dos vizinhos, não matava passarinho no estilingue nem roubava doce na padoca. Era excelente aluno, desses que a professora não precisa jamais puxar a orelha por indisciplina ou por excesso de barulho, e que passou por todas as séries sem nunca ter ficado de recuperação. Em casa, não era nem respondão, nem revoltado; apenas, talvez, mais triste do que costumam ser as crianças e os jovens, e muito mais calado...

Fui um cristão perfeito, que rezava todas as noites, comportado como um coroinha, o orgulho da mamãe e da vovó, sem pecados a relatar, sem sujeira na alma, quase um Santo Agostinho. Estava no caminho para ser canonizado. Até o dia em que, quando eu retornava da igreja, um trombadinha com o dobro da minha altura e o triplo da minha massa muscular me pôs sob a mira dum punhal , me arrastou pr’uma rua deserta, me tirou tudo que eu tinha de valor e ainda fez questão de dizer que já tinha matado “três caras” e que matar mais um era a coisa mais fácil do mundo.

- Num tenta nenhuma gracinha, senão eu te furo. Brinca não que eu já furei três caras!

Como descrever o desmoronamento que isso causou dentro de mim? Ainda hoje não sei como meu tórax não explodiu, tamanha a alucinante disparada que deu meu coração quando notei que estava sozinho, no meio da rua, longe de pai e mãe, frente a um adolescente irado, com sangue nos zóio, que ameaçava me cortar a faca e me deixar sangrando na calçada. Que tinha feito eu para merecer um tratamento tão truculento?

E os desastres não gostam de anunciar previamente sua chegada: vêm quando estamos desprevenidos. Fui pego como se fosse um atropelamento. A ira dos despossuídos veio com toda a força para me punir pelo crime inafiançável e terrível de ter 10 pilas na carteira e um relógio no pulso, e estar andando com eles pelas ruas da miséria, na volta da igreja.

Tempos depois, na puberdade, foi a hora do segundo golpe – dessa vez, não foi mais um mero punhal na mão de um trombadinha, mas dois revólveres na mão de dois ladrões de carro profissa, que puseram eu e meu pai na mira, nos deixando quase implorando por misericórdia. Me lembro até hoje de ficar literalmente petrificado de medo. E, por favor, levem a sério a palavra petrificado. Minha sensação é que eu ficaria sendo uma pedra por alguns anos – e foi o que aconteceu e o que hoje eu costumo chamar de “adolescência”...

Há modo mais dolorido de uma criança aprender sobre a fragilidade da vida humana, sobre a violência urbana e a luta de classes, sobre as sangrentas rixas entre os homens? Estas são coisas que eu preferiria ter aprendido nos livros, e não assistindo, impotente, enquanto meu pai era ameaçado de morte por uma mão tremendo de ira, a um passo do assassinato...

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O pior de tudo, porém, não foram nem os assaltos, enquanto eles duraram, mas suas seqüelas e feridas, das quais nunca realmente me curei – meus pesadelos que o digam. Eu demoraria anos e anos, depois, para “elaborar” essas experiências. Mas sei perfeitamente que foi ali que Deus pra mim morreu. Talvez existam outros ateus que tenham “acordado” de modo mais gradativo e menos traumático. Eu, não. Acordei num repente. A cruel pedagogia do mal me desconverteu subitamente.

A verdade é que Deus me decepcionou profundamente.

E acho que nunca o perdoei por esta decepção.

Sei que Ele não existe, e continuo culpando-o.

Culpei-o pelo desprezo absoluto e completo por mim. Pela indiferença monstruosa que demonstrou por meu destino. Por não ter movido um único dedo de sua mão onipotente quando eu estava ali, precisando, suplicando, minha vidinha de 10 anos de idade vacilando, por um triz... Me perguntei: e se a faca tivesse sido enfiada no meu peito, e o bandido tivesse me deixado num beco escuro para morrer, e ser recolhido pela polícia, e mandado sem documentos pro IML, o que faria meu bom Deus? Surgiria, milagrosamente, abrindo um buraco nas nuvens, para me resgatar? Não. Eu soube que não. Senti que não. Meu Deus tinha me provado que para Ele eu não tinha absolutamente nenhum valor. O fato de eu viver ou morrer, pra Ele tanto fazia. Eu não era digno de resgate. Nem meu pai, tampouco, o de carne-e-osso - que Ele, excelente Deus que eu tanto fazia para louvar, não salvou da mira de uma pistola que teria destruído nossas vidas por inteiro, e que, ao não disparar, a destruiu somente pela metade.

Uma pistola que não dispara nem por isso nos deixa inviolados. Uma pistola que não disparou me deixou, por anos, procurando meus cacos pelo chão...

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E então, por não saber nem o sentido da vida, nem quem sou eu, vivo rascunhando uma existência que nunca vou passar a limpo... Talvez a vida não seja uma prova, e ninguém nas estrelas tenha como serviço nos dar uma nota azul ou vermelha. Isso também é uma decorrência do ateísmo: nada, no além-túmulo, virá para julgar nossa vida. A vida a julgamos conforme a vivemos. E eu talvez me iluda a transformando num teste, e me invente este desejo, que passa por um sentido, de ser aprovado. Vou entregando às gentes rascunhos de um ser que se procura, que se interroga, que se angustia, que se cansa, que se reergue, que insiste. Faço tudo com a inépcia de um principiante, com a falta de jeito de uma criança, pois viver, ao que eu me lembre, é algo que nunca fiz antes. Descubro que o caminho é errado só depois de começar a trilhá-lo. Encontro provas de meus erros nos machucados com que vou povoando outros peitos. Me refaço como posso, me transformando enquanto caminho, e não tenho cais à espera nem muita escuta pra minha angústia. Quero amar porque sou só, e a vida é muito difícil. Mas o amor não é uma marcha da vitória, mas uma dolorida busca, que empreendo com minhas fracas forças, tentando construi-lo para iluminar o escuro. Dos céus nada espero – nem mesmo que reconheçam o ressentimento que seu eterno silêncio deixou no meu coração partido.

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Mas os seres amados não são eternos. É sempre um mortal amando outro mortal. E sempre amamos uma pessoa que um dia irá morrer, não sabemos quando – talvez antes de mim, talvez depois, mas que deste mundo partirá, com certeza. Disso todo mundo não sabe, e disso todo mundo finge não saber. Por isso foi preciso que Wayne Coyne cantasse, naquela linda música dos Flaming Lips, tentando despertar nos ouvintes a lembrança de algo que quase todos nós varremos para longe de nossa mente por ser verdade demasiado amarga: “do you realize everyone you know someday will die?”

O ser amado sob ameaça de morte: nada causa um terremoto pior em mim do que isso. Foram talvez os piores momentos da minha vida, sentir esta ameaça. Meu pai sob a mira de uma arma de fogo segurada por um bandido irado. Minha avó Enid, adoecendo e definhando, até que, perto do fim, nem mais reconhecesse meu rosto, nem mais soubesse quem eu era, me provando que eu estava guardado dentro dela em células cerebrais que, também elas, nada têm de eternas. E agora isso: uma namorada, a mil quilômetros de distância, subitamente internada, com perigo de morte por embolia pulmonar. O pavor, o pavor... O silêncio que desce... O silêncio da impotência absoluta. E o medo do futuro, depois da perda: como sobreviveria eu a uma amputação tão grande, ao vazio em mim onde estava o amor pelo ser desaparecido? Nestas horas, a possibilidade de rezar faz falta, não nego. Quase desejo ser capaz de ter fé. Mas não tenho escolha: as ilusões perdidas não retornam. Persisto como posso.

Morte certa, hora incerta – e, enquanto isso, a angústia e a ignorância, fardos necessários dos lúcidos. Não: infelizmente, não consigo crer que o amor seja mais forte que a morte. Vejo nisso um exagero romântico, uma ilusão do otimismo, um wishful thinking que não se sustenta. O fato de amarmos alguém, não importa com qual intensidade e devoção, não basta para imortalizá-lo. Pois nada basta. A imortalidade não existe. O amor é “só” uma invenção sublime da vida em sua fome incontenível por si mesma. A vida quer a vida, e se esforça por perseverar na vida, sendo nesta missão o amor seu servidor supremo.

Este desejo de viver, que transcende em tanto a razão, que é tão maior do que todos os nossos pensamentos, que está instalado no mais profundo de nossos corações, esta energia vital subterrânea e inextirpável, que Spinoza chamou de conatus, Freud de libido, Nietzsche de vontade de poder, Bergson de élan vital, isto que em nós clama pela vida e pela felicidade, isto é a fonte de onde jorra o amor. Pois sabemos que sozinhos não somos nada, que nenhuma vida se justifica no isolamento, que (como cantou Tom) “é impossível ser feliz sozinho”... Mas alguns o percebem tarde demais, pegam nas mãos esta sabedoria quando já não sobrou muito tempo para pô-la em prática: lembrem-se da morte do herói de Na Natureza Selvagem, que em seus momentos de agonia tem a epifania e percebe: “happiness is only true when shared”.

Sim, sei que, no fim, morrerei. Não sei se com a sensação de ter vivido bem, ou somente com a consolação de ter tentado. Tento viver bem, mas o que é que me prova que não sou um fracasso?

Minha prova entregarei amarrotada, cheia de rasuras, orelhas nas páginas, tinta borrada pelas lágrimas, aqui e ali até uma ou outra gota de sangue... Em meio ao som e à fúria, caminho por um mundo que não entendo, na dura lida de fabricar melodia. Ai, vida, revela pra mim teu mistério? Me conta se faço de ti o que é devido? Ou só consigo criar um bizarro e triste rascunho-de-vida?


Goiânia, 22/10/09