terça-feira, 27 de setembro de 2005

ÔNIBUS 174, de José Padilha

"Sandro, você sabe qual é a maior vítima dentro deste ônibus?", pergunta uma das reféns a seu sequestrador. "É você". E ele parece concordar.

Esse trecho de "Ônibus 174" sintetiza bem os efeitos alcançados (e muito provavelmente pretendidos) pelo excelente documentário de José Padilha. Após o fim da projeção, creio eu, grande parte do público sai do cinema tomado muito mais pelo sentimento de piedade e compaixão pelo destino inclemente de Sandro do que por um ódio cego por seu ato. Notável alquimia realizada na caldeira mental do público: um homem que foi exibido em cadeia nacional de televisão com apenas uma face (a de bandido diabólico, inimigo público sanguinário, malfeitor "sem nada no coração"...), tem seu retrato feito de maneira mais verossímil, mais verdadeira e mais compreensiva.

Certamente que há quem vá condenar o filme por essa implícita complacência e compaixão que se lê nas entrelinhas, dizendo que é uma tolice querer perdoar e compreender um bandidão desses, um mau-caráter comprovado, um caso perdido... São os que condenam qualquer tentativa de fazer o que chamam de "vitimização do bandido". Mas esse discurso me parece suspeito pelas semelhanças que apresenta com a atitude daqueles "cidadãos" lotados de fúria que correram frenéticos na direção do bandido a fim de linchá-lo. É isso mesmo o que devemos fazer com nossos bandidos? Linxá-los, apedrejá-los, tacá-los em jaulas onde não viveriam nem os animais mais baixos, tratá-los somente com desdém e com nojo? A opção de Padilha me parece muito mais sensata, partilhando da velha sabedoria spinozista: não condenar, não deplorar, não chorar, mas compreender. Não se trata de desculpar tudo, de fazer de um bandido um santinho, de desenhar auréolas artificiais numa cabeça onde se vêem muito claramente dois chifres... Mas sim de enxergar o ser humano por trás do estereótipo: sua história de vida, a genealogia de seus sofrimentos e de suas chicotadas, a via crúcis que o conduziu a seu ato, os fatos que poderiam explicar a gênese dessa personalidade. Contra o ódio simplista que a sociedade costuma derramar sobre a imagem do criminoso, de início já esvaziada de todo conteúdo que não o estereótipo, o filme ergue um destino humano (e cruel) que faz com que Sandro do Nascimento possa ganhar uma certa profundidade psíquica, uma certa complexidade humana, e várias circunstâncias atenuantes...

Seria um crime usar o cinema como um altar para o linxamento e o apedrejamento do bandido, e isso é o que felizmente Padilha se recusa a fazer, tomando o caminho contrário. Seu filme, partindo de um caso preciso, expande seu olhar para problemas sociais muito mais abrangentes (principalmente a questão dos meninos de rua, mas também a do sistema carcerário brasileiro e da competência da polícia militar). Dá pra perceber um discreto DISCURSO DE ADVOGADO DE DEFESA em "Ônibus 174". Não que Padilha tente APROVAR o ato em si, o que seria um tanto absurdo e moralmente reprovável. Seria cumplicidade no crime, complacência na escória. Mas se trata sim de fazer com que compreendamos que o homem que o cometeu não é tão culpado quanto gostaríamos que fosse, que não carrega em si todo o mal, que talvez essa disposição para fazer o mal tenha sido inserido nele DE FORA, por uma sociedade demasiado injusta e sanguinária... Talvez seria mais fácil para nós acreditar que Sandro do Nascimento é um daqueles que já nasceu com o Mal inscrito em seu coração, incurável, indelével, como uma segunda natureza, e que estava condenado, desde o seu nascimento, ao status de criminoso. É esse tipo de idéia do "assassino por natureza" que Padilha recusa, em prol de outra muito mais plausível e que nos incomoda muito mais: aquele do mal ADQUIRIDO. Sandro não nasceu mal; TORNOU-SE. E tornou-se porque vivemos numa sociedade injusta em tal grau que OBRIGA certos indivíduos a tomar medidas drásticas para conquistar os meios de sobreviver e de valer. É óbvio que derramar nosso ódio sobre os criminosos (através de linchamento, aprisionamentos em prisões desumanas, penas de morte ou simplesmente nojo...) não vai resolver nada de nada: o sistema social que fabrica esses criminosos permanece intacto e vai continuar fabricando-os indefinidamente até que alguém consiga pensar num modo de, ao invés de descer o cacete nos efeitos, arrumar as causas...

O argumento de "Ônibus 174" vai sim cair num certo determinismo, o que pode não agradar a alguns que ainda continuam a crer num suposto livre-arbítrio que permitiria com que os Sandros desse mundo pudessem escolher livremente o "Bem" ao invés do "Mal". Eu, que me considero spinozista, não tenho problema algum com esse tipo de raciocínio lógico que chega à misericórdia trilhando o caminho do determinismo e da ausência de liberdade (vejam "Dançando no Escuro", se quiserem outro exemplo cinematográfico de misericórdia determinista: Lars Von Trier faz um percurso parecido para "inocentar" sua heroína).

Enfim, que escolha teve esse cara? Pediu pra nascer pobre, preto e favelado? Pediu pra não ter pai? Pediu pra ver sua mãe degolada em sua frente quando tinha seis anos de idade? Pediu que a fome dilacerasse seu intestino, solicitando qualquer ato para satisfazê-la? Pediu que a vida fosse tão triste e tão dura que fosse necessário esquecer de sua miséria nos paraísos artificiais da cola, da cocaína e do crack? Pediu pra morar nas ruas como um cachorro, debaixo das marquises, sob o teto das pontes, dormindo sempre num colchão de concreto? Pediu pra ser enjaulado num cubículo junto com outros trinta homens ferozes simplesmente por ter se revoltado contra uma sociedade que, no fundo, é mesmo revoltante? Não, meus amigos, essas coisas não se pede. A Loteria do Nascimento é quem tem o poder supremo. Alguns tem a SORTE de nascer, outros o AZAR. É o que gostamos de chamar de Destino, palavra muito poética e muito bonitinha para descrever um processo tão imundamente injusto...

Sandro acaba erguido ao status de uma espécie de PORTA VOZ DOS MENINOS DE RUA cariocas. Uma vida particular que ilustra um destino coletivo. Um exemplar de uma classe que contêm milhares de irmãos na tragédia. Não sei se por falta de atenção prestada aos noticiários da época ou se por negligência própria da imprensa, eu não sabia que Sandro do Nascimento era um dos sobreviventes da Chacina da Candelária. O link que o documentário estabelece entre os dois fatos é crucial. Se o massacre da Candelária nunca tivesse acontecido, será que teria existido um "caso do Ônibus 174"? Pergunta irrespondível, mas que ainda assim ecoa profundamente...

A profundidade da análise psicológica também é o que faz "Ônibus 174" ser tão bom. Pela primeira vez alguém tenta penetrar na mente dos meninos de rua para tentar averiguar de verdade o que sentem esses "invisíveis sociais", esses garotos e garotas maltrapilhos e fedidos que nos pedem esmolas nos faróis, que nos batem a carteira nos calçadões, que dormem nas calçadas que os "cidadãos de bem" pisam dia a dia... E a excelente reflexão de um dos entrevistados (o filme não nos dá seu nome) nos faz sentir na pele o que significa ser um menino de rua. A fala é tão magistral que merece ser citada na íntegra:

"Esse Sandro é um exemplo dos meninos invisíveis que eventualmente emergem, tomam a cena e nos confrontam com a sua violência, que é um grito desesperado, um grito impotente... Fica clara nossa incapacidade de lidar com os nossos dramas, com a exclusão social, com o racismo, com as estigmatizações todas... nós convivemos, aprendemos a conviver tranquilamente com os Sandros, com as trágedias, com os filhos ds tragédias, com as extensões das tragédias, e isso se converteu em parte do nosso cotidiano.

A grande luta desses meninos é contra a invisibilidade. Nós não somos ninguém nem nada se alguém não nos olha, não reconhece nosso valor, não preza nossa existência, não diz a nós que temos algum valor, não devolve a nós a nossa imagem ungida de algum brilho, de alguma vitalidade, de algum reconhecimento. Esses garotos estão famintos de existência social, famintos de reconhecimento.

O Sandro nos despertou, a todos nós, em todas as salas de visita. Ele impôs a sua visibilidade, ele era personagem de uma OUTRA narrativa, ele redefiniu de alguma maneira o relato social, o relato que dava a ele sempre a posição subalterna. De repente, tudo se transforma numa narrativa em que ele é o protagonista. Esse menino, com essa arma, pode produzir em nós um sentimento, que é o medo, um sentimento negativo, mas um sentimento, através do qual ele recupera a visibilidade, reconquista presença, reafirma sua existência social e sua existência humana. Existe aí um processo de auto-constituição, uma estética da auto-invenção, que se dá pela mediação da violência, de um modo perverso, numa espécie de pacto fáustico em que o menino troca o seu futuro, a sua vida, a sua alma, por assim dizer, por esse momento efêmero, fugaz, de glória... A pequena glória de ser reconhecido, de ter algum valor, de poder prezar sua auto-estima. Esse é o momento crucial, o momento matricial, da nossa problemática toda."

Essa "ânsia por reconhecimento social", esse desejo de finalmente fazer-se notado, parece algo de fundamental pra que se possa entender esse caso do ônibus 174. Pois Sandro não parece ter cometido seu crime em busca de uma enorme quantia de dinheiro que possibilitasse sua ascensão social, pois nesse caso mais lógico seria roubar um carro-forte, um banco, um milionário... Roubar um ônibus popular é "vacilação", como diz seu companheiro, porque "negócio de malandro é roubar rico" e não ferrar com seus irmãos de miséria. Como entender esse estranho ato criminosos do Sandro? Se queria roubar, por que não roubou e não fugiu? Sequestrar um ônibus no meio do Rio De Janeiro não parece uma idéia lá muito inteligente. Um sequestro clássico, aliás, sempre tem como alvo um rico que é levado para um cativeiro por sequestradores que permanecem sempre anônimos; que sentido há em sequestrar gente da classe trabalhadora, por quem ninguém vai pagar milhões pelo resgate? O caso do ônibus 174 parece absurdo: não haveria vantagem alguma no sequestro e muito pouca no roubo. Por que então o fez Sandro?

Talvez não pela grana, que era pouca, nem pelo sequestro, que tinha chances quase nulas de dar certo, mas simplesmente porque queria ser visto... O ônibus transformado numa espécie de palco improvisado onde encenar uma peça sangrenta para uma sociedade adormecida... Sandro, cercado por todos os lados por policiais, snipers, fotógrafos, curiosos e potenciais linxadores, não tem nenhuma verdadeira chance de escapar dali. As opções que lhe restam: extravasar seu ódio contra aquelas pessoas inocentes dentro do ônibus e depois se suicidar (é o que parece ser sua intenção inicial: "MATAR GERAL ÀS 6 HORAS" e guardar uma bala do revólver para si mesmo) ou então aproveitar seu momento de estrela para fazer seu protesto público frente à dezenas de milhões de brasileiros frente à TV.

Com seu espetáculo midiático, com seu reality show de audiência devastadora, com seus dons de diretor teatral, ele nos obriga a reconhecer sua fúria, seu cansaço, sua sensação de não ter nada a perder - talvez na esperança de que melhoremos um sistema que gera pessoas assim. Tudo é meio de mentirinha ali: ele está constantemente solicitando que as mulheres demonstrem mais pavor e desespero, coisa que um sequestrador tradicional nunca pensaria em fazer; ameaça o tiro fatal centenas de vezes, deixando a tensão no ar como se fosse um perfeito discípulo de Hitchcock, sem nunca presentear o público de seu filme-ao-vivo com o disparo; escreve mensagens macabras nos vidros e faz profecias sangrentas sobre o futuro próximo; finge-se de diabão: xinga, esperneia, extravasa, faz-se finalmente ouvir... No fim de tudo, como que satisfeito com o espetáculo, sai do ônibus sem ter matado ninguém, carregando uma refém como escudo humano. E eu não tenho dúvida de que ele não a teria matado se o policial não interviesse... matar seu escudo seria condenar-se à chuva de balas da polícia. Tudo parece indicar que Sandro utilizou a mídia para dar seu show, para fazer seu protesto, para dar seu grito de revolta, mesmo sabendo que não se safaria com vida após tal espetáculo. Não está excluída a possibilidade de que tudo tenha sido uma espécie de suicídio ritual, em que Sandro aceita morrer no final da peça trágica que aceitou protagonizar, somente pelo prazer de finalmente brilhar, ser reconhecido, ser visto, EXISTIR, pela primeira vez emergindo da gosma de invisibilidade em que sempre esteve afogado. Como a Macabéia de Clarice Lispector, Sandro é daqueles que só na morte encontra sua "hora da estrela".