segunda-feira, 11 de setembro de 2006


VÔO 93
(United 93)
de Paul Greengrass


Só vai se decepcionar quem for ao cinema esperando encontrar algo que Vôo 93 não se propõe a ser. Então é bom começar destacando tudo o que esse filme NÃO é: não é um hollywoodiano blockbuster que usaria um evento histórico só como pretexto para um filme catástrofe arrasa-quarteirão; não é um "filme político" que tem qualquer coisa a dizer sobre a questão do Oriente Médio, do Taleban, do islamismo no século 21 ou do "choque de civilizações"; não é um filme que "coloque em questão" as ações americanas no terceiro mundo, o combate pelo petróleo e a política externa da administração Bush (que não é citado uma única vez em todo o filme); não é uma "peça ideológica" falando em favor ou contra nada...

"Vôo 93" é o primeiro dos muitos e muitos filmes que certamente virão para retratar, mutilar e explorar os atentados mais famosos da recente história da humanidade (Oliver Stone já está chegando com o seu World Trade Center)... Nele o diretor inglês Paul Greengrass, em seu quarto longa (assistam também o The Theory Of Flight, é um filmaço!), segue na mesma linha que adotou no ótimo Domingo Sangrento e faz um retrato semi-documental e ultra-realista de um evento histórico marcante, com uma "pureza" de julgamentos exemplar. Esse filme não está aí nem pra ficar pintando retratos demoníacos dos terroristas ("ai, como são malvados! matando gente inocente!"), nem pra condenar as autoridades americanas, nem para fabricar heróis patrióticos, nem mesmo para somente "entreter" a audiência com um bom filme de "suspense" (tarefa não muito fácil, já que a imensa maioria dos espectadores já sabe muito bem o desfecho da história quando entra no cinema).

É um filme sobre o 11 de Setembro em geral, muito mais do que somente sobre um dos vôos sequestrados naquele dia: sobre o imenso pasmo das autoridades frente a um acontecimento absolutamente imprevisto numa terça-feira que tinha tudo para ser absolutamente "normal"; sobre as reações emocionais de pessoas subitamente postas em perigo de morte (mas sem exageros melodramáticos, sem choradeiras, sem apelação para "cenas de pânico"); sobre a frenética e infrutífera Torre de Babel que se instalou em terras americanas na tentativa frustrada de impedir os desastres...

A câmera de Greengrass passa muito mais tempo em terra, retratando o trabalho nos aeroportos, centros de comando e nas bases militares, do que dentro do avião que dá nome a seu filme. E a decisão de utilizar como "atores" muitas da pessoas reais que participaram dos eventos contribui para o clima de verdade. "Vôo 93" acaba sendo um retrato fílmico competente, direto e acreditável de uma das manhãs mais caóticas que as autoridades americanas já tiveram que enfrentar, dando conta de mostrar bem a simultaneirade de acontecimentos, a corrida contra o tempo e o (compreensível) despreparo de todos frente a um ataque tão inusitado, original e bem-orquestrado. Todos nós já sabíamos dos "fatos" e já tínhamos ouvido todas as histórias; mas o filme faz desfilar frente aos nossos olhos, em seus rápidos 93 minutos, um espetáculo que deixa marcado ainda mais forte na memória a maneira como, naquele dia maldito, a mais poderosa nação do planeta ficou completamente paralisada, pasma e chocada enquanto assistia o WTC e o Pentágono sendo atacados, assim "do nada", or um inimigo então desconhecido...

"Vôo 93", com seu andamento veloz e tenso, consegue ser homogêneo e sem grandes "rupturas" narrativas - o filme só se torna realmente frenético e caótico nos (ótimos) 15 minutos finais, que são daqueles que o público assiste eletrizado e quase sem parar pra respirar. Com certeza críticos mais cricos vão dizer que a edição muito entrecortada, as câmeras excessivamente móveis (seguradas sempre na mão) e o ritmo muito acelerado impedem um "julgamento mais crítico". Mas a verdade é que não há muito pra pensar e pra julgar, aqui. "Vôo 93" não é um filme que exija muito esforço intelectual do espectador: se contenta em contar uma boa história, e do jeito mais atraente e verossímil possível. Um filme com ambições modestas, na verdade, e que exige que o espectador vá ao cinema sem expectativas exageradas.

De qualquer modo, fica comprovado mais uma vez o imenso talento de Greengrass e de sua equipe de câmeras e de editores na criação de um ambiente completamente tomável pela realidade. Mesmo em meio ao imenso caos fílmico que vemos nos minutos finais, com aquelas câmeras frenéticas e alucinadas tentando capturar o levante dos passageiros, em momento algum a gente sente a presença do câmera, o que estragaria o "efeito de realidade". Me explico: Vejam em Irreversível, por exemplo, como o câmera parece um menininho exibido que quer toda atenção só pra si e fica ali meio que gritando: "ei, eu estou aqui! estou girando de ponta cabeça! estou tremendo! estou fazendo maluquices!"... Em "Vôo 93" acontece o raro: mesmo nos momentos em que a câmera está alucinadamente em movimento, ela continua "esquecida" e você não se diz: "olha, há uma câmera ali filmando...". Esquece. E o cinema-verdade precisa disso mais que tudo: que o espectador esqueça que exista uma câmera e acredite estar olhando direto na cara da "verdade"...

Felizmente, também, o filme de Greengrass não é um altar para a consagração de um "herói" americano na luta contra o Eixo do Mal... os atos dos passageiros do United 93 nada têm de "altruísmo" ou "patriotismo". "Especialmente recomendável é a forma como o filme não aceita a interpretação ufanista muito popularmente defendida nos EUA de que o avião teria caído pelo fervor patriótico das vítimas que, como Rambos da classe turística, teriam decidido impedir que o vôo 93 chegasse ao seu alvo", escreveu bem o Kleber Mendonça Filho em sua resenha no Cinemascópio. De fato, ninguém ali dentro fala uma frase ridícula como "Ai coitada da Casa Branca e do Capitólio! Vamos salvar esses símbolos da América, amigos!", o que, eu suspeito, transformaria "Vôo 93" numa das melhores comédias do ano... É óbvio que cada um dos passageiros, naquele momento, não estava nem aí para o "destino da nação". Aquilo é só uma louca anarquia onde cada homem luta desesperadamente para arrumar um jeito de escapar da morte e o filme faz bem ao não ficar fingindo que qualquer um dos passageiros estava heroicamente "lutando por uma causa"...

Se há algo a criticar, é justamente essa pretensão de estar contando a verdade... O preocupante é que o filme, sendo assim tão realista, verossímil e convincente, periga conseguir justamente o que parece ser seu objetivo: nos convencer de que as coisas se passaram exatamente como nos são mostradas. E não vão ser poucas as pessoas que vão sair por aí dizendo "Você já viu aquele documentário, o "Vôo 93"?" E vale a pena exercitar o ceticismo e dizer: nenhum de nós é capaz de saber exatamente o que se passou dentro daquele avião! O filme de Greengrass, apesar de tão convincente, é um exercício de imaginação, de preenchimento de lacunas, de "fictização"...

Pode até ter sido "baseado em fatos reais" (ligações feitas pelos passageiros para familiares e amigos, informações de caixa preta, detalhes fornecidos pelas autoridades...), mas não deixa de ser, nunca, uma construção fictícia querendo ser tomada pela realidade. E conseguindo! Algum problema? Sim, porque não existe unanimidade sobre o que aconteceu com o Vôo 93: a versão oficial reza que os passageiros heroicamente se insurgiram contra os terroristas, impedindo que o avião atingisse o seu alvo, mas há rumores circulando na imprensa alternativa de que o avião foi de fato abatido - leiam, por exemplo, esse review xingando o filme de ser uma mentira travestida de cinema verité...

De qualquer modo, posta de lado a discussão "é verdade ou não é?", "Vôo 93" é sem dúvida um thriller curtível: competente, envolvente e com um final digno do adjetivo "ELETRIZANTE" (que os marketeiros adoram jogar em péssimos filmes de ação... felizmente não é o caso aqui!). E vale a pena ser visto, mesmo que for só pra instigar uma discussão sobre o realismo no cinema e sobre a representação supostamente "fidedigna" de acontecimentos históricos.

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