sábado, 28 de junho de 2008

:: life is a stream ::

:: my blueberry life ::

"oh, please let me wake up one day
and find myself found."

kathryn williams, "toocan"


a frente-fria que anuncia a chegada do inverno me derrubou um pouco - tosse seca, garganta irritada, preguicite aguda, maré montante de melancolia.... - e espero poder me reerguer logo. me sentindo um pinguim da antártida. acordo nas madrugadas com uma sensação de afogamento, quase como se tivesse afundando na piscina de pus da minha garganta. tusso, tusso, tusso como quem quer expulsar um demônio. xarope e pastilhas. muito beatles e futurama na cama. praticamente de férias. perspectivas não muito promissoras. ainda bem que o povo da banda é tudo gente trabalhadeira, que não vai parar de trampar em julho, de modo que meus domingões continuarão sendo o ponto alto das minhas semanas tão bestas com róquenroul mais bebedeira com os amigos. meus pais fizeram terrorismo dizendo que novas leis de trânsito ultra-rigorosas tornam o dirigir embriagado um delito seríssimo. perda de carteira, multa pesada, até cadeia. preocupante pois é algo que faço com certa frequência. a temeridade da juventude inconsequente. atitude indigna de um filósofo. é que tomar uns pileques é uma das coisas na vida que eu mais gosto de fazer. empecilho das gripes é não poder ficar de porre. empecilho das leis de trânsito também. "agora só dois bombomzinhos de licor, se você for pro bafômetro, dá 20 anos de prisão!". não deve ser fato, é mais material de pesadelo de mãe. acho q a noite de uma mãe às vezes deve se transformar num blockbuster catastrofista. elas tem uma capacidade de imaginar desgraças que espanta. prepare-se sempre para o pior, parece ser o lema. é só ler na bula do xarope a listinha de possíveis efeitos colaterais do coiso e ela já está me vendo, com os olhos da imaginação, padecendo com tontura, vômitos, taquicardia, febre estratosférica, arrasado por convulsões. e os telefonemas pra saber se eu não morri. se desse para contar, qual seria o resultado deste problema matemático: o que uma mãe faz mais, ama mais ou se preocupa mais? se preocupa mais. mas se preocupa por amar, claro. pena que ser causa de preocupação é ser causa de sofrimento, e eu preferiria, sonho bom, ser causa só de alegria. pena que. ninguém gosta de ser protagonista do pesadelo alheio. espero que eu não esteja aparecendo no pesadelo de nenhum de vocês. "was i in your dreams?".

"if you could be a dream
then i could have you every night.
in the morning you'd be gone,
no big deal, i'd be alright.
cause you're the reocurring kind."

(lindezas do bright eyes, um dos meus poetas da música prediletos)

(QUE TOCA EM SAMPA EM JULHO. massa!)

* * * *

QUERIDO DIÁRIO - nos últimos tempos o que aconteceu de digno de nota foi: roubei uma garrafa de vinho argentino (infelizmente vazia) que foi abandonada pelo Wander Wildner em cima do palco, que virou um adorável souvenir punk-brega no meu porta-malas imundo. Assisti a OSESP tocando a "Sagração da Primavera" - uma beleza que agride! - , no meio da grã-finagem da Sala SP, e curti horrores. Voltei pra casa imaginando se daria para escrever uma música punk chamada "Headbanging com Stravinsky". Fui assistir uma peça do Mário Bortolotto, "Vamos Sair da Chuva Quando a Bomba Cair", junto com a Carol (que veio com trajes jurídicos - podre de chique! - e comendo o que ela chama por hábitos linguísticos imperalistas de muffin'), e foi de uma bacanidade deliciosa. Pessoa tão querida. Ganhei do Rodrigo Malmsteen uma versão crackeada do Guitar Rig, o brinquedinho mais simpático que existe para guitarristas, e ando brincando com ele direto como se fosse um presente de Natal recém-aberto e que ainda não enjoou. Cedo ou tarde, tudo enjoa. Por isso não acho a morte algo tão terrível. Sem ela ia dar um medão da vida ficar insuportável de tão enjoativa. Já pensou que ruim se nada acabasse? Sabadão tem show do Metric de graça e eu e o Marcolino tamos agitando de entrevistar a banda, só para pegar na mão da Emily Haines. Se num rolar com ela, depois a gente pega na da Malluzinha Magalhães. Um daqueles beijos de pura cortesia cavalheiresca na mão da senhorita, como se fazia naquela época em que o romantismo ainda existia e não tinha virado piada. Quem também fez show - e um bacaníssimo - foi o Milhouse, na Matinê Outs, com a casa cheia de amigos da banda. A banda tá sensacionalmente divertida. A baterista é foda e só toca em banda crásse, o Gabriel tá endiabrado na guitarra e o Titi e o Fred são dois frontmans bem diferentes, mas cada um com seu próprio carisma punk-brega. A Liga das Senhoras Católicas tem um futuro promissor, principalmente pois a coisa mais importante já aconteceu: achei uma banda com quem eu não só adoro tocar e com quem rola mó afinidade musical, mas é uma banda de amigos - e eu gosto, imensamente, de todos os 4 seres trimmassa - Bernas, Marco, Ana e Paulette - que estão comigo fazendo esse barulhinho bom. Aliás andei tentando compor umas musiquinhas em portuga para a banda, e consegui rascunhar uma ou outra, com um esforço menor do que eu imaginava, mas ainda me sinto esmagado no chão pelos gigantes Camelo, Amarante e Buarque de Holanda. Tive até um ataque passageiro de orgulho de mim mesmo ao notar que "Pequena Rockabilly" e "Casamento Havaiano" não saíram tão más. Mas depois de rápidos flashes de um glorioso futuro como rockestar, voltei logo à tradicional insatisfação comigo mesmo que é minha marca registrada (Não vou muito com a minha própria cara, eis o drama. A Aline um dia me disse: "Edu, você é a única pessoa que eu conheço que não gosta de você." Achei um elogio lindo, mas fiquei com vontade de responder: conheço outras). Quê mais? De vez em quando trombo a Ellen por aí, comprando vinis do Johnny Rivers e sendo reconhecida por estranhos no câmpus - coisa de escritora celebridade, com vários livrinhos lançados, que já tá trombando com fãs por aí. Ela cozinha uns doces gostosos e não se importa quando eu vou embora sem lavar a louça. Ah, e a Thaís andou me mandando as cartas mais lindas. Sempre me espanto com o talento com as palavras que vem impregnando cada linha que ela sabe bolar com tanta maestria. E a sensibilidade, a inteligência, o senso de humor fino, o calor... De todas as pessoas que eu conheço, a Thaís é quem escreve melhor. Quando ela ganhar o Jabuti ou o Nobel de Literatura, eu vou dizer: "já sabia!" Orgulho de ter uma amiga tão brilhante e ter cartas dela para guardar na minha caixinha de souvenirs. À moda antiga o valor sentimental é tão maior! Saudades de Bauru e das pessoas que fizeram Bauru valer a pena. Queria viajar pra lá, mas grana não há. Tô batendo todos os recordes de negatividade na conta bancária, e olha que não tenho personalidade consumista... Eu só pago aluguel, como, pago o analista e ensaio-e-bebo uma vez por semana (porque, também, sem álcool e amigos ninguém segura esse rojão). Não me sobra nem 5 conto pr'uma barra de chocolate. Necessidade pragmática de hábitos ascéticos. Não seria tão difícil assim mudar para um mosteiro e viver de pão e água. Ando assistindo muito Deadwood, ouvindo muito Kathryn Williams e lendo Susan Sontag e Paul Válery - recomendações do tio Wisnik, o futebolista.

* * * * * *

na uspe, o semestre quase acabou - meus trampos finais já escritos e entregues. Os 2 seminários que me propus a fazer já apresentados - um sobre o Rousseau e o outro sobre sobre Malamud. É meio terrorismo da minha parte comigo mesmo eu me inscrever para os seminários, já que a timidez quase sempre me faz fugir de falar em público. Nas horas e minutos que antecedem a Grande Exposição é bem provável que eu tenha altos ataques de taquicardia, que fique tossindo e pigarreando mais que o normal pra limpar a garganta, que minhas mãos fiquem mais úmidas do que costumam, que minhas orelhas peguem fogo, que eu esteja com sono por não ter dormido direito na noite anterior e que meus intestinos entrem em panes e façam o cagaço psicológico virar cagaço literal. Um nervosismozinho patológico que vem nas beiras de eventos assim! E vai chegando a hora da apresentação e às vezes bate um desânimo tão grande q eu quase jogo a toalha, quase invento alguma doença, quase peço pro Rodrigo ir lá e dizer que estou hospitalizado e não poderei, infelizmente, comparecer... Mas sempre vou e enfrento. E sempre gosto mais de mim mesmo por ter feito justamente o mais difícil. Adoro descobrir que funciono muitíssimo bem com adrenalina correndo nas veias. E faço seminário bem melhor do que muito nêgo tosco na filosofia. Melhor que muito professor.

(na verdade, desde criança eu sempre foi um aluno super comportadinho, que sentava no fundão mas não dava escândalo - não conversava nas aulas, não ficava com risinhos, não tacava pedacinhos de papel higiênico molhado com cuspe nos coleguinhas, não arranjava briga no recreio... exemplar! nunca nenhuma recuperação. Sempre notas entre as mais altas da turma. Mas nem um pingo de tendência ao puxa-saquismo. O tipo de aluno que, apesar de todos os 10, os professores não sabem direito quem é. Que não faz perguntas na classe, que não exibe seus conhecimentos, que num dá showzinho de exibicionismo pra ninguém. E como cansa isso: anos sem ser ninguém.)

O Rilke, naquele lindo livrinho de cartas ao poeta, que eu não parei de adorar desde que o li pela primeira vez uns 5 ou 6 anos atrás, dizia que devemos sempre preferir o difícil e assim nossas vidas não parariam nunca de se expandir e de evoluir. É uma das lições de sabedoria de vida de que eu mais gosto. Nas minhas decisões, constantantemente me pergunto isso: “o que é mais difícil?” E aí me esforço por fazer o mais difícil. Na esperança de que o difícil fique fácil. Dá um gosto fazer o difícil! Já fazer o fácil é um cu. Tem graça nenhuma. Num sei porque as pessoas são bestas a ponto de ficar fazendo o fácil. Eu amo o difícil. E amo mais ainda vencer o difícil. Acho besta ganhar de goleada. Gosto mais das vitórias sofridas, suadíssimas, no último minuto, em cima de um adversário que era favorito e era dificílimo. Tempero a vida com dificuldades. Os caminhos fáceis são para os fracos. Eu escolho de propósito a estrada com espinhos e cheia de abismos. Eu procuro problema, pois sem eles a vida é dum tédio nauseante. Pasmaceira.

* * * * * *

(rachel weisz. mais maravilhosa que nunca em "my blueberry nights")


o estado de inanição prossegue firme e forte no território daquele "rosado intenso que se agita quando amas além de certa medida", como diria a Hildinha. Há quem no peito crie um jardim de flores. Um palácio inteiro consagrado ao louvor de uma princesa. Um salão de festas iluminado e cheio de balões coloridos. Um refúgio utópico onde se esconder quando o mundo agride. Mas eu, hoje e por tanto tempo, tudo o que é tenho no tórax é um ferro-velho cheio de sucata de sonhos mortos e minha coleçãozinha tão feia de buracos-negros. São medonhos de ver. Quem viu se apavorou tanto que saiu correndo assustado para as matas. Ah, e esse frio que desce é triste demais com a perspectiva desanimadora de continuar sendo um pinguim na Antártida. Mais um inverno sem calor humano? Mais quanto tempo com o coração em estado de petição de miséria, como os dentes de Maria Elvira? Quantas vezes mais vou procurar consolo no colo ruim de um porre de vodka, que, ao passar, só serve para me deixar o fígado em frangalhos e o peito ainda todo esburacado? Me assusta pensar que tenho amigos mais ou menos da minha idade que já estão praticamente casados, ou que namoram há anos e anos, e que parecem ter tido a incrível sorte de encontrar um amor correspondido, e que parecem ter resolvido de um jeito tão fácil todo o Dilema Sentimental, enquanto eu só consigo ir acumulando cicatrizes, saudades, medos, mágoas, desejos, cansaços, silêncios, angústias e tormentos. Estou me tornando cada dia mais apto a escrever um longo tratado psicológico, ou um romance triste, sobre minha tão velha e familiar companheira - chamemos a coisa pelo nome: carência afetiva. Conhecimento de causa. Mais que qualquer emo.

My blueberry life.


- Elizabeth: So what's wrong with the Blueberry Pie?

- Jeremy: There's nothing wrong with the Blueberry Pie, just people make other choices. You can't blame the Blueberry Pie, it's just... no one wants it.

People make other choices.


* * * * * *

...pois é, a alegria de viver, cadê? Os franceses dizem tão bonito: la joá de vivre. E eu pensando que só na França a teria. Terra mais propícia. Em português não consigo. Sempre imagino que a felicidade está onde não estou. Como se ela mudasse de lugar justamente para não me trombar. Como se brincasse de esconde-esconde e fosse muito boa na arte de se fundir com a paisagem. Tão boa que dá até raiva. Ou eu muito ruim na arte de achar. Vai ver que é questão de antipatia pessoal: ela não vai muito com a minha cara: quando me vê vindo, muda de calçada. Quando entro no recinto, se esconde no banheiro. Quando corro até ela querendo um abraço, tem um ataque psicótico e sai correndo para as matas. Tais são minhas relações com a felicidade. E o amor é a mesma coisa.

Como se a alegria
recolhesse a mão
pra não me alcançar.


Engraçado que gosto cada dia menos dos escritores lamurientos. Sem conseguir deixar de ser um deles. Quero que se explodam. Tenho fome de beleza e sabedoria, e que não me encham o saco dizendo que a vida não presta. Tipo o Sade, o Cioran, o Burroughs, esses nojentos todos. Não quero nêgo enfiando o dedo na minha garganta pr'eu vomitar fora a vida como se ela fosse comida venenosa. Já tenho a suficiente quantidade de nojo pela vida em mim e dispenso ajuda nesse território. Não me delicio nadando na minha piscininha de náusea. Quero superar. De vez em quando consigo até gostar da vida. Bastante até. Um ou dois dias por ano eu a amo de paixão. O resto é como água, pão sem manteiga, salada sem tempero. Talvez seja culpa minha, e não da vida. Que diferença entre? Culpa minha se viver é desconfortável? Mas procuro a aventura, o êxtase, o contágio, a entrega. O quanto o medo me deixa. O pouco que acho.

Peço um desconto pelo mal-viver, por ser tão desengoçado na tarefa, por achar tanta coisa tão difícil. Tô vivendo pela primeira vez e, aliás, acabei de desembarcar no mundo. Que é um lugar esquisito. Não entendo direito pra quê serve. E eu dentro dele, pra quê? Mas vejo beleza naquilo de ser um eterno aprendiz. Vivo em perpétuo espanto de estar vivo. Que exista tudo isso que existe é algo que minha pobre cabecinha miúda não consegue conceber direito, tamanha a grandiosidade. O que não impede a melancolia. Culpa minha se Deus não existe e o amor é tão raro? Não criei o mundo, só vivo nele.

Não tenho amor à vida? Ora, é ela que não tem amor a mim...

* * * * *

"Aquilo a que se costuma chamar amor é um exílio,
com um postal de casa de vez em quando,
eis o meu pensamento para esta noite."

SAMUEL BECKETT
, "Primeiro Amor"

Não, tio Beckett, o amor não é o exílio, o exílio é o mundo.

O amor são os postais de casa, de vez em quando.

E o foda é esse "de vez em quando...".

sexta-feira, 27 de junho de 2008


“Um koan budista diz o seguinte: 'O mestre conserva a cabeça do discípulo sob a água, por muito, muito tempo; pouco a pouco as bolhas se rarificam; no último instante, o mestre tira o discípulo, o reanima: quando tiveres desejado a verdade como desejaste o ar, então saberás o que ela é.” - ROLAND BARTHES, Fragmentos de um Discurso Amoroso.

E eu me pergunto:

"Também vale para o amor?"

segunda-feira, 23 de junho de 2008

:: meu trampo final de filô moderna I ::

BERNARD MALAMUD
"O Bode Expiatório"
(The Fixer)
compre aqui


(texto composto em conjunto com meu colega Edouard Fraipont e apresentado em seminário na disciplina Filosofia Moderna I - a idéia era "encontrar Spinoza" no romance do Malamud e pensar sobre o spinozismo tendo como base a "situação concreta" do personagem... Foi mais ou menos assim - adaptei e editei um pouco para o blog... - que expusemos o treco todo para a classe:)


The Fixer – O Bode Expiatório é considerado o livro mais clássico de Bernard Malamud (1914-1986): um pungente e impiedoso relato literário de como um pobre zé-ninguém acaba sendo vítima de uma violenta conspiração anti-semita e, injustamente condenado à prisão, aprende a duras penas algumas amargas verdades sobre a existência. O livro tem o sabor de uma mistura d'O Processo de Kafka com O Estrangeiro de Camus, acabando por soar como um romance de tom ao mesmo tempo existencialista, naturalista e absurdista. É uma realização literária brilhante, que retrata um homem esmagado por quantidades cavalares de sofrimento injusto, mas que encontra a força para, mesmo no mais fundo dos poço, se rebelar contra a passividade de um Deus (que não se move jamais para ajudar quem quer que seja) e que se levanta, furioso, para protestar contra os descalabros humanos.

Com este romance Malamud faturou os honrosos prêmios Pulitzer e National Book Award, respeitados mundialmente no cenário literário. Além disso, o livro rendeu uma adaptação cinematográfica de peso (no Brasil, o filme foi entitulado O Homem de Kiev) - dirigida por John Frankenheimer e estrelada por Alan Bates (que foi indicado ao Oscar de melhor ator pela interpretação de Yakov Bok). A crítica literária, por sua vez, se debruçou sobre a obra dele com um olhar cuidadoso, sendo que um corpo vasto de comentários e interpretações de seus livros foi se tornando disponível a partir dos anos 60, principalmente, o que gerou o ótimo livro Malamud and the Critics (organizado por Leslie Field).

Bernard Malamud tem lugar privilegiado entre os autores americanos judeus do século 20, com uma importância equivalente à de Saul Bellow, Philip Roth ou Isaac B. Singer - mas também é possível situá-lo num quadro literário mais vasto. O crítico de literatura Alan Friedman comenta que Malamud é essencialmente um autor da escola realista (apesar de frequentemente se utilizar de elementos góticos, fantásticos, grotescos e surreais, que, em seu caso, estão sempre subordinados a esta narração essencialmente realista).

Em sua obra não se encontra muito pronunciada uma preocupação com inovações linguísticas ou com uma abordagem lúdica da escrita, como é o caso em importantes autores do século como James Joyce, William Faulkner, Virginia Woolf ou mesmo Guimarães Rosa. Ele se enquadra muito mais numa categoria que poderíamos chamar de “literatura realista de anti-herói”. Críticos enfatizam também que ele se aproxima da abordagem naturalista celebrizada, por exemplo, por Émile Zola (já que o naturalismo pode ser visto como uma radicalização do realismo que costuma considerar os personagens como meros efeitos do ambiente e da hereditariedade). Pode-se também encontrar Malamud certos elementos do romance existencialista, principalmente o camusiano, como pode-se depreender do ambiente repleto de “absurdidade” em The Fixer. Seus livros quase sempre têm como protagonista um judeu apresentado num papel de vítima – e estes livros “não são somente realistas, mas naturalistas quase ao ponto da miséria parecer pré-determinada”, como insiste o mesmo crítico.

Nas descrições que Malamud faz das prisões russas e dos sofrimentos que são impostos ao seu personagem, em The Fixer, nota-se também uma grande influência de Dostoiévski, considerando-se que as imagem dos cárceres deve muito a cenários presentes em Crime e Castigo, Irmãos Karamazov e Memórias da Casa dos Mortos.

Críticos destacam também que Malamud também é brilhante no sentido de não transformar esse romance num enredo detetivesco, à maneira de Agatha Christie ou Conan Doyle, já que de modo algum The Fixer se transforma num livro em que a questão “quem é o verdadeiro assassino?” adquire qualquer importância. De modo que, como diz Friedberg, “o enredo whodunit nunca recebe permissão para obscurecer a trágica significação do julgamento”.

* * * * *

ANTI-SEMITISMO

The Fixer, romance de 1968, conta a história de um judeu pobre chamado Iákov Bok, o faz-tudo. A história acontece logo antes da primeira grande guerra mundial, às vésperas da Revolução Russa, numa Rússia extremamente anti-semita e em crise, manchada por fortes ondas de violência contra a população judia nos chamados Pogroms.

(Os Pogroms começaram um pouco antes do assassinato do Csar Alexandre II em 1881 e se disseminaram na Polônia oriental e na Ucrânia numa região denominada Galícia durante todo o governo de Alexandre III, seu sucessor, já com a conivência das autoridades. Cessaram, como tal, somente com a Revolução Bolchevique de 1917. Entretanto, serão retomados pelos nazistas. O maior alvo destes ataques eram as pequenas aldeias judias chamadas de Shtetl. Estas vilas foram marcadas pela pobreza da maior parte de sua população e por uma quase autarquia sócio-econômica. Se por um lado eram uma forma da população se defender, uns ajudando aos outros, lembrando os futuros Kibbutzim, e principalmente um meio de manterem suas tradições, também eram uma forma para o czarismo de concentrar a população judia.)

A vida de Yakov Bok, mesmo antes de sua prisão, já é extremamente complicada pelo fator do anti-semitismo extremo que vigorava na Rússia czarista daquela época. O discurso anti-semita é representado em vários momentos do livro, mas um dos mais virulentos é posto na boca do barqueiro com quem Yakov pega carona para chegar até Kiev, personagem este que expressa sem rodeios suas opiniões nada louváveis sobre os judeus. É a síntese perfeita de supertições populares – em que aparecem desejos assassinos, apoio ao massacre e agressividade arbitrária – chegando a haver a manifestação explícita de um desejo de Extermínio Absoluto da Raça Judaica:

“Deus nos salve de todos os malditos judeus, esses parasitas narigudos, enganadores, sugadores de sangue e marcados por pústulas. Eles nos roubariam da luz do dia se pudessem. Eles contaminam a terra e o ar com o fedor de seus corpos e seus hálitos de alho, e a Rússica vai ser levada à morte pelas doenças que eles disseminam a menos que nós acabemos com eles. Um judeu é um demônio – é fato bem conhecido – e se você alguma vez arrancar sua bota fedorenta vai ver um casco dividido. (...) Dia após dia eles enchem de lixo nossa Terra Mãe e o único jeito de nos salvarmos é varrendo-os para fora. (...) Eu digo que a gente devia chamar nossos homens, armados com armas, facas, tridentes – qualquer coisa que mataria um judeu - (...) e entrar no gueto deles, o qual pode ser encontrado pelo fedor, expulsando-os de onde quer que eles estejam se escondendo – porões, sótãos, buracos de rato... -, esmagando seus miolos, esfaqueando suas vísceras de arenque, arrancando seus narizes ranhosos, sem nenhuma exceção feita para jovens ou velhos, porque se você poupá-los eles se reproduzem como ratos e então o serviço tem que ser feito tudo de novo...”

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Iakov Bok, depois de deixar seu shtelt, indo em busca de um futuro mais radioso em Kiev, tem que se adaptar às dificuldades do tempo: esconde sua identidade judia, assume um nome russo, arranja um emprego e passa a frequentar um distrito proibido para judeus – não sobreviveria se não o fizesse. Certo dia, morre um menino russo, encontrado esfaqueado numa gruta próxima à olaria onde Iákov trabalha e dorme. O fato é atribuído à ação de judeus que teriam sangrado o menino até morrer por supostos motivos religiosos, para coletarem seu sangue e confeccionarem matzos, um pão sem fermento, afim de celebrarem a Páscoa judaica. Por mais absurdas que sejam as acusações, Iákov é acusado pelo assassinato e preso. Ele havia levantado algumas suspeitas, não de ter cometido o crime mas de ser judeu, ao ser visto anteriormente com um judeu ortodoxo à quem ele ajudou dando abrigo numa noite gelada. Ele sofre um processo iníquo e é torturado e humilhado na prisão enquanto aguarda a oficialização de sua acusação por mais de dois anos.

A descrição dos maus-tratos sofridos na cadeia, que se prolonga por centenas de páginas, vai comunicando ao leitor o estado de horror prolongado por que passa o personagem, que sofre com sopas que vêm com ratos mortos, excesso de tempo passado na solitária, tentativas de envenenamento por parte dos carcereiros, cobertores insuficientes no inverno rigoríssimo, entre muitas outras técnicas de tortura....

Mas os tormentos físicos são pequenos frente aos tormentos psicológicos. A solidão completa, a ausência de amigos e de visitantes, o tédio mortal, o medo da tortura e da morte, a indefinição de seu destino, a espera interminável, a indignação cega, a incapacidade de compreender sua situação (“muita coisa tinha acontecido que não fazia o mínimo sentido”) etc. Ele não consegue se ver como alguém justamente punido, é claro, mas como uma “vítima acidental”, um tremendo dum azarado: diz o narrador - “Em uma noite sombria uma grossa rede negra tinha despencado sobre ele somente porque ele estava debaixo dela, e apesar dele correr em todas as direções ele não conseguia se desembaraçar de suas pegajosas amarras.”

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A HISTÓRIA REAL

A história de Iakov Bok é na verdade a história de Mendel Beilis, judeu que foi perseguido pelo czarismo e julgado em Kiev em 1913 – um caso de grande repercussão na opinião pública e na imprensa do mundo todo na época. Malamud praticamente retoma os fatos da história tal qual aconteceu e cria inspirado nestes elementos históricos factuais, transpostos para o livro de modo fidedigno, um produto final literário que demonstra a “mão firme de um talentoso artesão”, como comenta o crítico Maurice Friedberg. A dificuldade na escrita de uma obra desta está, como comenta o mesmo crítico, em que certos eventos históricos “ofuscam com sua grandiosidade e seu horror qualquer coisa que uma imaginação artística poderia imaginar.”

Conhecemos casos na História de grandes escritores que colocam suas obras na defesa de um personagem público injustiçado – como fez por exemplo Émile Zola no caso Dreyfus. A peculiaridade do caso Beillis, no entanto, é que ele “não estava sendo acusado como um indivíduo, e em seu caso não era um simples equívoco judiciário, ainda que trágico, o que estava em jogo” - como comenta Friedberg. Beilis era um “mero peão” num jogo de xadrez social muito mais vasto. Era um homem “pessoalmente tão insignificante e sem cor a ponto de ser de nenhum valor para seus carcereiros e perseguidores exceto como um símbolo da Judeidade Russa – e foi esta que, com efeito, foi colocada sob julgamento como uma comunidade.” (pg 276).

Ou seja, não se trata de um caso da justiça cometendo um erro involuntário, mas sim de uma espécie de conspiração que procura transformar um caso de homicídio comum em um caso de homicídio com motivações religiosas – de modo que, se ficasse provado que Beillis de fato tinha assassinado o garoto cristão com motivos ritualísticos, para preparar os matzos de Páscoa, a culpa podia ser estendida aos judeus em geral.

Como comenta Maurice Friedberg, o caso Mendel Beilis acabou num impasse. "Apesar dele ter sido declarado inocente do crime, o tribunal não expressou nenhuma opinião sobre a possibilidade de que tal crime pudesse ter sido de fato cometido por algum judeu radical”, ou seja, a hipótese do homicídio ritual não foi descartada, mas somente este indivíduo específico foi isento de responsabilidade. “Também nada foi feito para punir aqueles que iniciaram uma histérica campanha contra Beillis antes de seu julgamento formal, e por inevitável extensão, contra os Judeus em geral.” Ou seja, a calúnia contra os Judeus não foi desfeita e as falsas acusações feitas contra eles permaneceram impunes. Com a chegada da Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e, posteriormente, o Holocausto tomando conta de uma Europa assombrada pelo fantasma do nazi-fascismo, esse caso Beillis caiu no ostracismo. A história só voltou à tona pelo esforço de 2 autores americanos judeus – o próprio Malamud e o historiador e jornalista Maurice Samuel, que escreveu Blood Acusation.

Friedberg diz que “apesar da experiência nazista do passado recente ter inevitavelmente diminuído o impacto da história de Beillis sobre o leitor moderno, não se pode dizer que esta acusação [de uso ritual de sangue cristão] foi irrevogavelmente desacreditada como um boato anti-semita completamente falso. (...) Ela continua a aparecer periodicamente em várias partes do globo, sempre servindo à mesma causa. (...) P. ex., um pouco depois da destruição do império Nazista, um grupo de judeus sobreviventes de campos de concentração foi massacrado pela polícia da Polônia na cidade de Kielce (em 1948).”

Robert Alter comenta que este caso Beillis foi na verdade “um cruel prenúncio das possibilidades do século 20” , uma das primeiras ocasiões em que o governo utilizou a “grande mentira”, através da qual uma poderosa burocracia subverte totalmente o senso moral de seus membros individuais. “O caso Beiliss é uma das primeiras ocasiões públicas notáveis neste século em que a ficção de Kafka de uma acusação arbitrária, de uma realidade governada por uma lógica inescrutavelmente insana e perversa, tornou-se fato histórico.”

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A QUESTÃO DE DEUS

Desde o começo do livro Yakov Bok é insistentemente flagelado, ferido, dilacerado e injustiçado feito um saco-de-pancadas humano. Poucos romances na história da literatura descrevem um martírio comparável a este em grau de sofrimento suportado e de horror injusto sofrido. Talvez por isso ele já nas primeiras páginas já apareça como um homem extremamente amargo e desconsolado. Ele se pergunta o que fez para ser tão amaldiçoado, mas não encontra em si nenhuma culpa que explique porque a vida o “espancou” tanto – sua “maldição” foi um “presente” que caiu sobre um completo inocente (“Não quero que as pessoas sintam piedade de mim ou se perguntem o que fiz para ser tão amaldiçoado. Eu não fiz nada. Foi um “presente”. Sou inocente.” )

Iakov Bok, amargo e desiludido depois de tanto sofrimento experimentado, não consegue entender porque há tanto sofrimento e tanta miséria no shtetl (e no mundo em geral) se Deus é bom. Se ele existe, qual sua utilidade? “Ele não nos vê e não se importa conosco” - conclui Iakov, decidido a abandonar sua tradições judaicas e tornar-se um livre-pensador.

Por isso, nos curiosos diálogos que ele tem com seu amigo, que tenta mantê-lo no “bom caminho” da religião, Yakov é sempre um poço profundo de azedume e de sarcasmo inteligente. Dizem-lhe: “Pelo menos Deus está conosco” e ele retruca: “Ele está conosco até que os cossacos venham galopando, aí ele está em outro lugar...”. Dizem-lhe que ele não deve ler os “livros errados” e que deve se manter fiel às Escrituras e ele retruca: “Não existem livros errados. O que é errado é o medo deles.”. Suplicam-lhe: “não esqueça seu Deus!” E Yakov, num trecho impregando de revolta contra o Criador, manda:

“Quem esquece quem? O que eu ganho dele a não ser uma pancada na cabeça e um jato de mijo na cara? Então o que há para ser venerado Nele? (...) Nós vivemos num mundo onde o relógio bate rápido enquanto ele está em sua montanha intemporal fitando o espaço. Ele não nos vê e Ele não se importa. É hoje que quero meu pedaço de pão, não no Paraíso.”

Na prisão, os dois continuam a discussão no mesmo tom. Shmuel diz: “Não culpe Deus pela miséria”, e Yakov replica:

“Eu o culpo por não existir. Ou, se ele existe, ele está na Lua ou nas estrelas, mas não aqui. (...) Não posso ouvir a voz de Deus e nunca pude. (...) Tudo que eu jamais disse a ele, Ele nunca me respondeu. Silêncio é o que eu agora dou em troco.”

Esta concepção de Deus que Yakov Bok acaba por formar acaba por se assemelhar à de Spinoza, filósofo que, tanto em sua concepção de Deus, quanto em suas conclusões éticas, se afasta da tradição judaico-cristã. Por um lado, Spinoza não concebe Deus como uma divindade transcendente, interventora, “separada” do mundo que conhecemos e o conduzindo “de cima”, como normalmente é visto o Deus nas religiões monoteístas. Seu Deus confunde-se com a Natureza - razão esta que levou-lhe a ser chamado de panteísta ou mesmo ateísta por muitos.

Essa ruptura com os cânones religiosos acaba tendo o efeito complementar da completa derrubada da idéia de um Paraíso no além, alcançável nesta vida através de certos atos que agradariam à divindade julgadora e justiceira que o monoteísmo concebe. A caída dessa concepção religiosa, que via na resignação, na renúncia aos prazeres sensíveis e no sofrimento aceito como um bem (que somaria pontos para a conquista do Céu) faz com que Spinoza volte seu olhar para a vida presente, que é tudo que há. Seria um engano pensar que a eternidade, como sugere o cristianismo, abrirá suas portas ao homem somente no momento da morte – e somente para aqueles que o merecerem. A eternidade já está aqui – é o próprio presente, que não cessa nunca de ser presente, eternamente presente.

Yakov Bok também rompe com a tradição monoteísta e deixa de acreditar num Deus pessoal, transcendente, interventor, sentimental, compassivo, justiceiro, que se preocuparia com os destinos humanos e tentaria auxiliar suas criaturas em momentos de apuros. Em todo o romance, mesmo nos momentos de sofrimento mais extremo, nunca vemos o personagem se render à oração – ele, no máximo, recita frangalhos de salmos bíblicos, mas nunca com a mínima esperança de estar sensibilizando as dinvindades. O Deus de Yakov Bov é um Deus indiferente. Como diz Spinoza na Ética V, “Deus não tem amor nem ódio por ninguém”. É isso que Yakov descobre a duras penas.

Por isso, o personagem chega a uma compreensão do Spinoza bastante adequada, mesmo sem ter tido uma educação formal /erudita no spinozismo (ele não tem muita tendência ao “intelectualismo”, aliás: diz por exemplo - “Se eu tenho alguma filosofia, é que a vida poderia ser melhor do que é.”). Yakov Bok em seus “flashes de percepção” da filosofia de Spinoza, que explica se utilizando de fórmulas bem pessoais e ditas em linguagem popular como: “Deus e a natureza são uma e a mesma coisa”; “a Natureza inventou a si mesma e também ao homem”; “Ou Deus é uma invenção nossa, ou é uma força na Natureza mas não na História. Uma força não é um pai”; “a mente do homem é parte de Deus”; “este Deus, apesar de preencher mais espaço, tem menos a fazer”; “a liberdade está em seu pensamento – é como se o homem voasse acima de sua própria cabeça nas asas da razão... você se une ao universo e esquece suas preocupações...”; “a vida é a vida e não tem sentido chutá-la para o túmulo...”.

* * * * *

A QUESTÃO DO PRECONCEITO E DA SUPERSTIÇÃO

Yakov é um personagem que representa um livre-pensador, livre dos preconceitos e superstições que Spinoza tanto criticou, mas que se vê rodeado por um “clima cultural” profundamente marcado pela superstição, especialmente aquela que se refere aos judeus, tidos como extremamente temíveis, perigosos e sanguinários. No romance, há o discruso de um padre que sintetiza bem a quê extremos de preconceito se chegava na tentativa de acusar (falsamente) os judeus de crimes de assassinato ritual. Este padre se dirige assim aos cristãos em um inflamado discurso:

“Minhas queridas crianças, se as entranhas da terra se abrissem para revelar a população de homens mortos desde o começo do mundo, vocês ficariam pasmas de ver quantas crianças cristãs inocentes foram torturadas até a morte por judeus quem odeiam Cristo. Através dos tempos, como descrito nos livros sagrados deles, a voz do sangue semíticico os dirige a dessacralizações e horrores impronunciáveis – por exemplo, o Talmud, que compara o sangue à água e ao leite, e prega o ódio aos gentios, que são caracterizados como sendo não-humanos, nada mais que animais... Consequentemente houve uma multidão de crianças inocentes massacradas, cujas lágrimas não comoveram seus assassinos a serem misericordiosos... O assassinato ritual pretende re-encenar a crucificação de nosso Senhor. (...) Diz-se que o homicídio de um gentio - qualquer um – acelera a vinda do tão aguardado Messias deles, Elijah, para quem eles etrenamente deixam a porta aberta mas que nunca aceitou o convite para entrar e se sentar no trono vazio. Desde a destruição do Templo deles em Jerusalém não existiram mais altares de sacrifício para animais nas sinagogas, e então o sacrifício de gentios, em particular crianças inocentes, é aceito como um substituto adequado. (...) No passado registrado, o Judeu utilizou o sangue cristão de muitas maneiras. O sangue foi utilizado em rituais de bruxaria e magia negra, e para poções do amor e envenenamento de poços d'água, fabricação de um veneno mortal que espalhou a praga de uma nação para a próxima – uma mistura de sangue cristão de uma vítima assassinada, a urina judia deles, as cabeças de serpentes venenosas, e até mesmo uma hóstia roubada e mutilada – o corpo sangrando do Cristo ele mesmo. (...) Naquele tempo eles consideravam nosso sangue como a mais efetiva terapêutica para a cura de suas doenças. Eles o utilizaram, de acordo com os velhos livros de medicina deles, para curar mulheres depois do trabalho de parto, parar hemorragias, curar a cegueira infantil e aliviar as feridas da circuncisão...”

Isso mostra, num discurso extremamente denso e concentrado, o grau de acusações falsas e superstições absurdas que estava no “ar dos tempos” e fazia com que Kiev fosse, como descreve um personagem, “uma cidade medieval cheia de superstição selvagem e misticismo” e que sempre foi o “coração do reacionarismo russo.” Spinoza, no TTP, comentava que “não há nada mais eficaz do que a superstição para governar a multidão.” - e a Kiev de The Fixer é um ambiente social que comprova essa tese.
* * * * *

A QUESTÃO DA LIBERDADE E DO DESPERTAR POLÍTICO

Yakov Bok chega a uma concepção de Deus que é semelhante à concepção de Deus de Spinoza e, desse modo, não pode mais conceber que a solução para a sua situação crítica poderia vir “de cima”, já que a hipótese de uma divindade interventora e que se sensibiliza com os destinos humanos havia sido descartada. Ao mesmo tempo que Yakov atinge esse “ateísmo”, percebe-se também como uma figura histórica de relevância, uma personagem pública que faz parte de uma quadro social mais vasto. Por isso todo o processo de prisão e martírio de Yakov acaba conduzindo a um certo “despertar político”.

Durante todo o livro, vemos a evolução ética do personagem Iakov. O devir político de Iakov é uma mudança que se torna necessária. Num de seus delírios na prisão se vê falando novamente com Bibikov e lhe diz: “Algo em mim se transformou. Não sou mais o mesmo homem que era. Agora tenho menos medo e mais ódio.” Conforme ele vai tomando consciência que ser judeu é sua condição no mundo e que portanto ele tem sua posição na cena histórica, Iakov vai conquistando mesmo no cárcere um viés de liberdade.

Yakov, que no começo do romance é um “zé-ninguém”, que não parece ter grandes preocupações na vida além de escapar de seu vilarejo para tentar começar uma vida nova em Kiev, não tendo a mínima inclinação ou atração para a vida política, acaba descobrindo, no fim do romance, que de modo algum poderia se considerar uma pessoa politicamente “neutra”. Uma de suas mais essenciais descobertas na prisão é a de que “não existe homem apolítico, e muito menos quando você é um judeu”. Por efeito desse “despertar” político, Yakov, no fim do romance, transformou-se praticamente num revolucionário, que tem fantasias de assassinar o czar e que está certo de que existe muito mais coisas erradas na Rússia do que o anti-semitismo.
Yakov sente, quando acorrentado e torturado no cárcere, que ele não conseguia, pelos meros poderes da Razão, libertar-se. Sua conclusão parece ser de que sem o mínimo de liberdade física e de proteção por parte do Estado, não é possível atingir a salvação pela Razão e pelo conhecimento da Natureza que Spinoza sugeria.

No TTP, Spinoza comenta: “Dos fundamentos do Estado resulta com toda evidência que o seu fim último não é dominar nem subjugar os homens pelo medo e submetê-los a um direito alheio; é, pelo contrário, libertar o indivíduo do medo a fim de que ele viva, tanto quanto possível, em segurança, isto é, a fim de que mantenha da melhor maneira, sem prejuízo para si ou para os outros, o seu direito natural a existir e a agir. O fim do Estado, repito, não é fazer os homens passar de seres racionais a bestas ou autômatos: é fazer com que a sua mente e o seu corpo exerçam em segurança as respectivas funções, que eles possam usar livremente a razão e que não se digladiem por ódio, cólera ou insídia, nem se manifestem intolerantes uns para com os outros. O verdadeiro fim do Estado é, portanto, a liberdade.”

Deste modo, pode-se ver o romance como um longo e doloroso percurso que conduz um personagem simplório e auto-centrado a se transformar em algo que se assemelha a um “símbolo ético”, como sugere Robert Alter. Isso porque Yakov Bok, ao se libertar dos preconceitos finalistas e religiosos, ao deixar de esperar auxílio dos céus, ao despertar para a dimensão política de seu destino, toma em suas próprias mãos as rédeas de sua vida. O sofrimento que ele suportou por toda a vida, e que parecia absurdo, injustificável, imerecido, adquire para ele uma espécie de sentido – que não é um sentido religioso, como seria se ele acreditasse que sua dor seria recompensada com uma eternidade de delícias no Paraíso. Friedman comenta que

“Ele não é um herói trágico clássico, cujo sofrimento é magnífico por causa de sua grandeza de caráter e pela altura da qual ele cai; pelo contrário, ele é um pobre zé-ninguém que se distingue apenas pela miséria e por seu senso de vitimização. Mas porque ele os abraça, e porque, rejeitando um Deus que parece obcecado com a perpetuação da injustiça, ele encontra algo em si mesmo e em sua vida para afirmar, e se torna um paradigma de um novo tipo de herói (...) que triunfa porque ele persevera.”

Afinal de contas, ele, ao contrário do crente judaico-cristão, que insiste em ver no sofrimento um sentido sobrenatural (seja como uma punição divina, seja como algo que tem sua razão de ser num esquema maior...), chega à conclusão: “A única coisa que o sofrimento me ensinou é a inutilidade do sofrimento”. Mas, ao mesmo tempo, ele percebe que está numa situação em que o sofrimento é inevitável – e então conclui: “se eu devo sofrer, que seja por algo”.

De repente, iluminado por seu despertar político, seu sofrimento ganha a possibilidade de deixar de ser absurdo e se tornar significativo. No fim do percurso, afinal, Yakov parece alcançar um degrau ético superior àquele em que estava no começo do romance, como prova quando se recusa ao suicídio e a uma falsa confissão ou acusação. Quase como um herói existencialista, ele parte da noção de um mundo absurdo, onde o sofrimento é injustificável e Deus é indiferente, e depois escala degraus éticos até a adoção de uma postura de revolta, de luta e de sofrimento posto a serviço de algo maior. Como conclui Friedman: “Yakov, mesmo com sua alienação inicial e seu agnosticismo contínuo, consegue enfim conquistar o direito de sofrer pelos outros, e começa a reconhecer que ele é responsável por todo o seu povo, aquela nação de tão prolongados sofrimentos”.

Por isso o romance de Malamud, muito mais do que somente transposição para a literatura de um evento histórico (e um dos mais emblemáticos da decadência do czarismo russo e da iminente eclosão de Revolução de 1917), pode ser visto como uma obra de poder universal e atemporal. Como em Kafka, mostra-se um ser humano esmagado por poderes superiores que ele não consegue compreender nem aceitar; mas, como em Camus, sua situação inicial de sofrimento absurdo e gratuito vai adquirindo novos contornos conforme ele desperta para a ação política e para a revolta existencial. De mera vítima torturada e apática, ele se ergue, no fim das contas, como um símbolo ético que carrega numa mão uma bandeira quase marxista/revolucionária (“É hoje que quero meu Pão, não no Paraíso!”), e noutra um emblema existencialista, onde ostenta a prova viva do que significa passar “do absurdo à revolta”.

sexta-feira, 20 de junho de 2008


"Aprendi com a primavera
a me deixar cortar
e voltar sempre inteira."

(Cecília Meirelles)


E eu, voltarei inteiro depois de todas as podas, como um aluno exemplar da mestra primavera? Ou serei mais como o outono, que começa sempre agasalhado por um manto de folhas verdejantes, mas sempre assiste ao triste espetáculo de vê-las se ressecando e caindo? Eu, que já passei por incandescentes verões, o coração ardendo como um sol, não acabo sempre por voltar a ter minha temporada invernal? Que, por sua vez, derrete com o desabrochar de novas flores...

Como um longo rio que atravessa nações, fluo através de minhas próprias estações.

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Tô cansado de ter um futuro promissor.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

:: Maya Angelou ::


"EU SEI POR QUE O PÁSSARO
CANTA NA GAIOLA"

de Maya Angelou

(1969 - trad. de Paula Rosas, ed. José Olympio)


"O fato de uma mulher negra americana adulta emergir com uma personalidade extraordinária é frequentemente visto com espanto, repugnância e até beligerância" (pg. 248), pondera Maya Angelou ao fim deste I Know Why The Caged Bird Sings, novela autobiográfica brilhante e adorável de uma das mulheres negras mais notáveis do mundo, hoje. É uma frase apetitosa, que sintetiza em poucas linhas o poder e o charme de sua autora: uma mulher negra de mente extraordinária, que sempre teve que combater esse desprezo e essa surpresa dos preconceiturosos e beligerantes, que desejariam manter nas jaulas, acorrentadas e amordaçadas, essas aves raras que bem mais belas ficam voando e cantando...

O livro, delicioso de ler, é daqueles que devoramos em poucos dias - como um brigadeiro literário ou uma bomba-de-chocolate toda feita de papel e tinta. I Know Why The Caged Bird Sings é um romance americano de primeira grandeza, quase steinbeckiano, que narra como uma garotinha negra tenta sobreviver, aos trancos e barrancos, num ambiente saturado de preconceito racial, dificuldades econômicas e dúvidas e espantos infantis que só aos poucos se dissipam.

Eram os anos entre a Depressão e a Segunda Guerra Mundial, quando a Klu Klux Klan "causava" com suas perseguições, os dentistas brancos diziam preferir pôr a mão na boca de um cachorro do que na boca de uma criança de cor e o próprio Deus, lá no Céu, era branquinho como uma nuvem... Ela, Maya, tem que "admitir tristemente que crescer não era o processo indolor que pensava ser" (pg. 233) e que era de fato um caminho de pedras e espinhos para uma menina negra chegar a emergir e desabrochar com um ser humano magnífico quando o mundo inteiro, ao seu redor, tentava esmagá-la e submetê-la. Maya Angelou sabe porque o pássaro canta na gaiola pois ela foi esse pássaro, e toda sua raça foi esse pássaro. E ela foi daqueles que voou.

"Se crescer é doloroso para a menina negra do Sul, ter consciência de seu desloamento é a ferrugem na navalha que ameaça o pescoço. É um insulto desnecessário" (13). É assim que Maya Angalou termina o primeiro capítulo dessa sua primeira novela auto-biográfica: enfatizando o quão doloroso é o processo de crescer no Sul ainda segregacionista, onde todos ainda parecem pisar sobre um solo ensopado pelo sangue da Guerra Civil, com plena consciência da desigualdade social e do preconceito racial reinantes. A jornada existencial por que passa a pequena Maya em I Know Why The Caged Bird Sings é toda permeada por este "fogo cruzado triplo do preconceito masculino, do ódio ilógico branco e da falta de poder do negro" (248).



As rápidas biografias que se encontram pela Internet sobre Maya Angelou espantam pela quantidade de façanhas a ela atribuídas: ela é romancista respeitada, poetisa (vencedora do Pulitzer), roteirista e atriz de cinema (a primeira negra a ter um roteiro transformado em filme na história de Hollywood), autora de programas de televisão, dançarina professional, militante dos direitos civis (que foi aliada de Malcolm X e Martin Luther King), secretária da Unicef, jornalista correspondente na África por 5 anos... A quantidade de talentos e frentes de ação dela é embasbacante.

Tudo isso fez com que Maya Angelou se transformasse não só num ícone para o movimento negro e feminista, mas uma das inteligências mais versáteis e sofisticadas na América de hoje - a ponto de ser chamada por Bill Clinton para ler um poema em seu discurso de posse, de aparecer na capa da Vanity Fair ao lado de Madonna e ser "eleita" por Fiona Apple como sua "maior influência". O que faz com que ela - com sua obra e com sua vida - esteja entre as personalidades mais relevantes do mundo artístico negro do século - que teve cumes de genialidade na Harlem Renaissance, na proliferação de gênios do jazz e do blues, no cinema de Spike Lee, na literatura de Zora Neale Hurston, na guitarra de Jimi Hendrix, na voz de Billie Holliday e Ella Fitzgerald, no trompete de Louis Armstrong e Miles Davis, entre muitos outros...

Seu livro, apesar de profundamente impregnado de temáticas raciais, não deixa de ser um romance muito mais vasto (e muitíssimo bem escrito, com humor e terror na medida certa...) sobre uma garotinha americana que tenta crescer e encontrar seu lugar em meio a um mundo hostil. Ela vai se deparando com mil monstros e assombrações por seu caminho: bem nova, é separada dos pais e enviada, com apenas uma etiquetinha nos pulsos, em direção à custódia da avó; passa pela experiência traumática de ser estuprada e pelo mutismo psicológico subsequente; fica pulando como batata quente de parente em parente, conhecendo São Francisco, St. Louis, o México, tudo repleto de desventuras divertidas, tocantes, dolorosas; vive a experiência de uma gravidez precoce aos 16 anos; e muito mais. Tudo verdade. E tudo sempre sempre narrado por uma voz inconfundível. Na literatura de Maya Angelou a realidade mais crua e cruel é descrita depois de passar pelas lentes de uma percepção de mundo ultra pessoal, sensível e poética.

Sônia Coutinho diz: "Há uma afinidade entre os personagens de Maya Angelou e os oprimidos e humilhados de todas as partes do mundo. Seus livros transmitem a crença de que é possível suportar e vencer a humilhação, alcançar uma individualidade íntegra, mesmo sob o esmagamento da violência física ou psicológica." Por isso a obra de Maya é um sopro de vida tão benéfico em nossas almas - pois afirma que "na luta está a alegria" e que a fraternidade humana pode ser mais do que uma utopia desacreditada e tratada com desdém. Sabemos que a canção de um pássaro enjaulado pode ser bela. Mas a decolagem de um pássaro que bicou o cadeado de sua jaula até estraçalhá-lo talvez seja ainda mais bela. E seu exemplo, essencial.

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Alguns trechos:

"As crianças brancas teriam a oportunidade de se tornar Galileus, Madames Curie, Edisons e Gauguins, e nossos meninos (as meninas não eram sequer mencionadas) tentariam ser JEsse Owenses e Joe Louises. (...) Obviamente, Bailey seria sempre pequeno demais para ser atleta; portanto, que anjo particular aboletado em que mansão tinha decidido que, se meu irmão desejava tornar-se um advogado, primeiro devia pagar penitência por sua pele colhendo algodão e milho e estudando por correspondência à noite durante vinte anos?" (pg. 168)

* * * * * *

"As necessidades de uma sociedade determinam sua ética, e, nos guetos americanos, o herói é aquele homem a quem são oferecidas apenas as migalhas da mesa de seu país, mas, por meio de ingenuidade e coragem, consegue pegar para si mesmo um banquete luculiano. Assim, o zelador que vive num cômodo mas exibe um Cadillac azul como ovo de tordo não é alvo de riso mas de admiração, e a doméstica que compra sapatos de quarenta dólares não é criticada mas estimada. Sabemos que eles utilizaram todos os seus poderes mentais e físicos. Cada ganho separado acrescenta-se aos ganhos do corpo coletivo." (207)

* * * * *

"Em Stamps, a segregação era tão completa que a maioria das crianças negras não sabia realmente, em absoluto, como eram os brancos. Sabiam que eles eram diferentes, para serem temidos, e nesse temor estava incluída a hostilidade dos destituídos de poder contra os poderosos, dos pobres contra os ricos, do trabalhador contra o patrão e dos maltrapilhos contra os bem vestidos. Lembro-me de nunca acreditar que os brancos fossem realmente reais." (30)

* * * * * *

"Mamãe pretendia ensinar a Bailey e a mim a usar os caminhos na vida que ela, sua geração e todos os negros que tinham vindo antes tinham descoberto, e descoberto que eram seguros. Ela não concordava com a idéia de que se podia falar com os brancos sem arriscar a própria vida. E certamente não se podia falar com eles de modo insolente." (49)

* * * * *

"As pessoas em Stamps diziam que os brancos em nossa cidade eram tão preconceituosos, que um negro não podia comprar sorvete de baunilha. Exceto no 4 de Julho. Nos outros dias, ele tinha de satisfazer-se com chocolate." (51)

* * * * *

"Embora sempre houvesse generosidade na vizinhança negra, ela era oferecida com a dor do sacrifício. O que quer que fosse dado por pessoas negras para outros negros, certamente era necessitado com desespero tanto por quem dava como por quem recebia. Um fato que tornava o dar ou o receber uma troca rica.

Eu não conseguia entender os brancos, nem onde eles obtinham o direito de gastar dinheiro de modo tão perdulário. É claro, eu sabia que Deus era branco também, mas ninguém me poderia ter feito acreditar que ele preconceituoso..."
(52)

* * * * * *

Um poema:

Still I Rise

You may write me down in history
With your bitter, twisted lies,
You may trod me in the very dirt
But still, like dust, I'll rise

Does my sassiness upset you?
Why are you beset with gloom?
'Cause I walk like I've got oil wells
Pumping in my living room.

Just like moons and like suns, with the certainty of tides,
Just like hopes springing high,
Still I'll rise.

Did you want to see me broken?
Bowed head and lowered eyes?
Shoulders falling down like teardrops,
Weakened by my soulful cries.

Does my haughtiness offend you?
Don't you take it awful hard
'Cause I laugh like I've got gold mines
Diggin' in my own back yard.

You may shoot me with your words,
You may cut me with your eyes,
You may kill me with your hatefulness,
But still, like air, I'll rise.

Does my sexiness upset you?
Does it come as a surprise
That I dance like I've got diamonds
At the meeting of my thighs?

Out of the huts of history's shame
I rise
Up from a past that's rooted in pain
I rise
I'm a black ocean, leaping and wide,
Welling and swelling I bear in the tide.

Leaving behind nights of terror and fear
I rise
Into a daybreak that's wondrously clear
I rise
Bringing the gifts that my ancestors gave,
I am the dream and the hope of the slave.
I rise
I rise
I rise.

Maya Angelou

sexta-feira, 13 de junho de 2008

:: o nosso sol é mixuruco! ::

MOMENTO MUNDO DE BEACKMAN
- ou... temerárias excursões digressivo-científicas -


“O hidrogênio é o mais simples e o mais comum dos elementos. Todos os outros elementos do universo são feitos, em última análise, de hidrogênio, pela fusão nuclear. A fusão nuclear é um processo complicado que ocorre nas condições extremamente quentes do interior das estrelas (e nas bombas de hidrogênio). Estrelas relativamente pequenas, como nosso Sol, são capazes de produzir apenas elementos leves como o hélio, o segundo mais leve da tabela periódica, depois do hidrogênio. São necessárias estrelas maiores e mais quentes para gerar as altas temperaturas necessárias para forjar a maioria dos elementos mais pesados, numa cascata de processos de fusão nuclear... Essas grandes estrelas podem explodir na forma de supernovas, espalhando seus materiais, inclusive os elementos da tabela periódica, em nuvens de poeira. As nuvens de poeira acabam se condensando e formando novas estrelas e planetas, como o nosso. É por isso que a Terra é rica em elementos que vão além do onipresente hidrogênio...” (DAWKINS. Deus, Um Delírio)

Achei espantoso esse trecho do livro pleno de espantos (os gringos diriam mais bonito: AWE INSPIRING) do Dawkins, que tem tantos trechos dignos de comentário que devo fazer várias fases de posts dawnkinianos (uma resenha está sendo rascunhada e ficando preocupantemente gigante... mas nesse assunto a prolixidade é necessária e desculpável). Achei Deus: Um Delírio, que eu devorei em pouco mais de uma semana, um livro realmente formidável, corajoso, duma sagacidade e duma lucidez admiráveis. Num tem um pingo de cu-docismo, de frescura, de ornamento: é um livro de combate daqueles que empolga, fascina e faz pensar em mil coisas, mesmo que às vezes o tom do autor caia perigosamente na "arrogância" de quem vê com um desprezo furibundo as religiões fundamentalistas e os sofismas absurdos da teologia. Mas é um dos poucos casos de best seller de leitura obrigatória - por ser o carro-chefe da nova onda de escritores que combatem o dogmatismo e o fanatismo religioso, pragas que são um dos inimigos mais perigosos da nossa era repleta de homens-bomba e teocracias terroristas.

Esse trecho aí em cima me deu o insight visionário de que o desenvolvimento cada vez mais aprofundado da astronomia e do nosso conhecimento do Universo vai acabar gerando a 4a Grande Ferida Narcísica na Humanidade, como se nosso orgulho já não estive pisado, cuspido e mautratado o suficiente pelos golpes recebidos por Copérnico, Darwin e Freud. Eu fico com a sensação (que gera grande modéstia!) de que não só nosso miserável planetinha minúsculo no Esquema-das-Coisas não é o centro do Universo, mas só uma rochinha rodante no meio de uma imensidão multi-milionárias de outras, como também a nossa pequena galaxinha, coisa bem miúda em comparação com outras, é de segunda classe, de quinta categoria, disputando a série B!

A Revolução Copernicana pode ter abalado nosso moral dizendo que a Terra não era o centro de nada, mas apenas um dentre muitos corpos orbitando ao redor do poderoso astro-rei; mas agora a Ciência vem e nos diz que nem mesmo nos resta o consolo de pensar no nosso Sol como uma Entidade Pimpona, Incrível, Majestosa, a estrela mais linda de todo o Universo, brilhando para nos aquecer e iluminar! Porque nosso sol é um solzinho xoxo! Parece o supra-sumo da incandescência, mas só é quente o suficiente pra quebrar o hidrogênio em hélio, mais nada. Nosso Sol é morninho. Nosso sol é uma melequinha de nariz pegando fogo! Uma miséria! :P

E imaginem só o quão imensamente minúsculos, miúdos e anões somos nós para que um Sol tão meia-boca, e que vai morrer daqui a pouco (que são alguns milhões de anos em escala universal?), pareça algo tão espetacurlamente gigantesco. Divina comédia.

Ainda assim, não corramos a cortar nossos pulsos! Resta poesia no pôr-do-sol, e o calor e a luz dessa nossa amada bolinha de fogo continuam a esquentar e a aquecer, e o verão não será menos curtível por ser um feito de um sol menor, e nem as praias menos frequentadas, nem os picolés menos deliciosos, nem os banhos de mar menos refrescantes, nem as meninas de biquini menos agradáveis de contemplar... Bóra curar nossas feridas narcísicas em banhos de hedonismo!

quinta-feira, 12 de junho de 2008

:: toma-me agora, antes que a carnadura se desfaça em sangue... ::

(Brandt - Portrait of a Young Lady)

Mais uma lindeza da doidinha:

"Toma-me. A tua boca de linho sobre a minha boca
Austera. Toma-me AGORA, ANTES
Antes que a carnadura se desfaça em sangue, antes
Da morte, amor, da minha morte, toma-me
Crava a tua mão, respira meu sopro, deglute
Em cadência minha escura agonia.

Tempo do corpo este tempo, da fome
Do de dentro. Corpo se conhecendo, lento,
Um sol de diamante alimentando o ventre,
O leite da tua carne, a minha
Fugidia.
E sobre nós este tempo futuro urdindo
Urdindo a grande teia. Sobre nós a vida
A vida se derramando. Cíclica. Escorrendo.

Te descobres vivo sob um jogo novo.
Te ordenas. E eu deliquescida: amor, amor,
Antes do muro, antes da terra, devo
Devo gritar a minha palavra, uma encantada
Ilharga
Na cálida textura de um rochedo. Devo gritar
Digo para mim mesma. Mas ao teu lado me estendo
Imensa. De púrpura. De prata. De delicadeza."


Hilda Hilst,
Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão

segunda-feira, 9 de junho de 2008

:: digo sim! ::




"Poderia dizer
que a vida é bela, e muito,
e que a revolução caminha com pés de flor
nos campos de meu país,
com pés de borracha
nas grandes cidades brasileiras
e que meu coração
é um sol de esperanças entre pulmões
e nuvens

Poderia dizer que meu povo
é uma festa só na voz
de Clara Nunes
no rodar
das cabrochas no Carnaval
da Avenida.

Mas não. O poeta mente.

A vida nós a amassamos em sangue
e samba
enquanto gira inteira a noite
sobre a pátria desigual. A vida
nós a fazemos nossa
alegre e triste, cantando
em meio à fome
e dizendo sim

- em meio à violência e a solidão dizendo
sim -
pelo espanto da beleza
pela flama de Tereza
pelo meu filho perdido
neste vasto continente
por Vianinha ferido
pelo nosso irmão caído
pelo amor e o que ele nega
pelo que dá e que cega
pelo que virá enfim,
não digo que a vida é bela
Tampouco me nego a ela:
- digo sim".


(gullar)

quinta-feira, 5 de junho de 2008

:: lema de sempre ::

"Ever tried. Ever failed. No matter.
Try again. Fail Again. Fail better."
(Samuel Beckett)

terça-feira, 3 de junho de 2008

:: os filmes (e séries) de maio ::


81. THE SAVAGES (de Tamara Jenkins, EUA, 2007 [divx]) - 6.0
82. ESTÔMAGO (de Marcos Jorge, Brasil, 2007 [HSBC]) - 7.0
83. A MISSÃO (The Mission, de Roland Joffé, 1986 [dvd]) - 6.8
84. LOS HERMANOS NO CINE ÍRIS (show + doc [dvd]) - 8.0
85. PATTI SMITH: DREAM OF LIFE (EUA, 2008 [divx]) - 7.7
86. THE CIVIL WAR - pt3/9 (de Ken Burns [divx]) - ...
87. THE CIVIL WAR - pt4/9 (de Ken Burns [divx]) - ...
88. A PEDRA DO REINO [a mini-série] (de Luiz Fernando de Carvalho [dvd]) - 9.5
89. THE ROOT OF ALL EVIL (doc de Richard Dawkins pra TV inglesa [divx]) - 8.5
90. HOMEM DE FERRO (Iron Man, de Jon Favreau, EUA, 2008 [center]) - 8.2
91. SPEED RACER (dos irmãos Wachowski, EUA, 2008 [center]) - 5.5
92. ORDET - A PALAVRA (de Carl Th. Dreyer, Dinamarca, 1958 [dvd]) - 6.5
93. NOSSO AMOR DO PASSADO (Conversations With Other Women) - 8.0
94. THE WILD BLUE YONDER (de Werner Herzog, 2005 [divx]) - 6.0
95. UM BEIJO ROUBADO (My Blueberry Nights, de Wong Kar Wai [divx]) - 9.0
96. JAZZ - pt1 (de Ken Burns [divx]) - ...
97. JAZZ - pt2 (de Ken Burns [divx]) - ...
98. THE MAXX [mini-série MTV] - 9.1
99. EXTERMÍNIO II (24 Weeks Later, de JC Fresnadillo, EUA, 2007 [dvd]) - 9.1
100. MADAME BOVARY (de Claude Chabrol, França, 1991 [dvd]) - 6.0
101. REN & STIMPY [1a temporada] - série de animação - 8.8
102. CAPARAÓ ([CinUSP]) - 8.0
103. UM VIOLINISTA NO TELHADO (de Norman Jewison [dvd]) - 6.2
104. INTACTO (de Juan Carlos Fresnadillo, 2001, Espanha [divx]) - 8.0
105. HOW TO GO OUT OF YOUR MIND - THE LSD CRISIS (de Tom Koch) - 8.3
106. BELLA (de Alejandro Monteverde, México/EUA, 2008 [Cine IG]) - 5.5
107. TEETH (de Mitchell Lichtenstein, EUA, 2008 [divx]) - 7.9
108. EXUBERANTE DESERTO (Sweet Mud, de Dror Shaul, Israel, 2006 [dvd]) - 8.0
109. UM DIA MUITO ESPECIAL (Sex and Philosophy, de M. Makhmalbaf, 2005) - 8.9

110. DEADWOOD - 1a temporada completa [dvd] - 9.1


pódio do mês

filmes
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ouro: EXTERMÍNIO II
prata: MY BLUEBERRY NIGHTS
bronze: SEX AND PHYLOSOPHY

séries
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ouro: PEDRA DO REINO
prata: THE MAXX
bronze: DEADWOOD - 1a Temporada


foda bragarai:
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e tb...