"Deus: Um Delírio"
O biólogo darwinista inglês, um dos cientistas mais célebres das últimas décadas (quase um pop-star midiático, como se tornaram também Carl Sagan e Stephen Hawking), é um dos representantes mais importantes da Nova “Frente Militante Atéia” no mundo intelectual contemporâneo. E militante é o nome mais adequado para apelidar essa turma - que inclui ainda Michel Onfray e Christopher Hitchens, entre outros de menor repercussão. Pois Dawkins é um daqueles autores que está engajado numa cruzada de des-mitologização e de ataque frontal às superstições e religiões. “Condeno o sobrenaturalismo em todas as suas formas”, diz ele. “Não estou atacando nenhuma versão específica de Deus ou deuses. Estou atacando Deus, todos os deuses, toda e qualquer coisa que seja sobrenatural, que já foi e que ainda será inventada.” (63)
Dawkins abertamente se propõe a persuadir seus leitores a perceberem a verdade de sua posição anti-religiosa. Como ele mesmo confessa, quer que Deus: Um Delírio tenha o efeito de uma “desconversão” e conclama todos os seus leitores ao abandono completo da religião. Sem meias palavras, confessa que espera de seu livro que “os leitores religiosos que o abrirem serão ateus quando o terminarem” (29). Escrito para o grande público, e não para o círculo fechado da Academia, o livro conquistou vasta repercussão, tornando-se best seller em vários países e arrancando elogios rasgados de intelectuais de peso (como Steven Pinker e Ian McEwan), ao mesmo que despertou violentas reações (inclusive em livro) e rendeu ao autor cáusticos apelidinhos (foi taxado, por exemplo, de “o rottweiller de Darwin”).
Na obra de Dawkins, a religião não está aí para ser estudada com frieza, esmiuçada em artigos acadêmicos, respeitada com tolerância e condescendência, mas é, sobretudo, um fenômeno a ser combatido e apaixonadamente atacado. Dawkins é um darwinista em colisão direta contra todo e qualquer criacionista; um cientista que não crê na possibilidade de qualquer tipo de conciliação entre o universo científico e o religioso; um ateu convicto de que a fé é causa de muito mais males do que bens e que estaríamos todos passando muito melhor sem ela... Razão que faz com que muitos crentes o considerem intolerante, arrogante, pouco compreensivo, incapaz de manifestar o devido respeito à história da teologia e da religião – tanto que Dawkins pôde ser chamado por alguns de “fundamentalista ateu”. O “resumo” que ele arrisca das idéias de Agostinho, por exemplo, digamos a verdade, é constrangedora de tão rasa, tão preconceituosa, demontrando que ele é capaz de fazer tábula rasa de um grande teológo, reduzido a escombros em segundos por sua pena cheia de veneno...
Por isso até concordo que Dawkins poderia ser mais sereno, menos intempestivo, e que teria seus argumentos ouvidos com mais tolerância pelos devotos se não se colocasse sempre numa posição tão hostil frente ao ser humano que crê. Quem assistiu ao documentário de 2 horas que Dawkins escreveu e apresentou na TV inglesa, com o bombástico título Root Of All Evil (Raiz de Todos Os Males), sabe o quanto ele é capaz de perder a compostura quando discute com fanáticos e dogmáticos religiosos. Ele escolhe para aparecerem em seu filme justamente os exemplos mais grotescos de perversidade religiosa: um sujeito que defende que as adúlteras merecem ser apedrejadas; um professor que quer inculcar o medo do inferno nas criancinhas a todo preço; um pastor que tem as idéias mais toscas e falsas sobre a evolução; um muçulmano fanático que acredita que o ateu está com a alma irremediavelmente condenada... Dawkins sempre insiste em sublinhar, por mil exemplos, quão estúpidas, intolerantes e mortíferas podem se tornar as pessoas quando se deixam cegar por uma fé ortodoxa e delirante, e é essa raivosa convicção incendiária, que por vezes peca até pelo excesso de intolerância, o que empresta, ao mesmo tempo, tanto poder ao seu discurso, e ergue tanta revolta em seus detratores.
Deus, Um Delírio é um livro-manifesto intencionalmente persuasivo, que procura converter os crentes à descrença e que conclama os ateus tímidos a saírem do armário. Dawkins ostenta nessas páginas um “orgulho ateu” que parece até ter a pretensão de deflagar um movimento social parecido com o do Orgulho Gay ou do Orgulho Negro. “Não há nada de que se desculpar por ser ateu”, garante ele. “Pelo contrário, é uma coisa da qual se deve ter orgulho, encarando o horizonte de cabeça erguida, já que o ateísmo quase sempre indica uma independência de pensamento saudável e, mesmo, uma mente saudável.” (27)
[INVENTÁRIO DOS MALEFÍCIOS DA RELIGIÃO]
Em Deus, Um Delírio, ele “carrega nas tintas” para descrever todos os imensos malefícios que enxerga na religiosidade:
“A religião pode colocar em risco a vida do indivíduo devoto, assim como a de outras pessoas. Milhares de pessoas já foram torturadas por sua lealdade a uma religião, perseguidas por fanáticos por causa de uma fé alternativa que em muitos casos é quase indistinguível. A religião devora recursos, às vezes em escala maciça. Uma catedral medieval era capaz de consumir cem centúrias de homens em sua construção, e jamais foi usada como habitação, ou para qualquer propósito declaradamente útil.Não era uma espécie de cauda de pavão arquitetônica? Se sim, quem era o alvo da propaganda? A música sacra e os quadros religiosos monopolizaram em grande parte o talento medieval e renascentista. Gente devota morreu por seus deuses e matou por eles; chicoteou as costas até sangrar, jurou o celibato de vida inteira ou o silêncio solitário, tudo a serviço da religião. Para que tudo isso? Qual é o benefício da religião?” (218) “Por que os seres humanos jejuam, ajoelham-se, fazem genuflexões, autoflagelam-se, inclinam-se maniacamente para um muro, participam de cruzadas ou tomam parte em práticas dispendiosas que podem consumir a vida e, em casos extremos, eliminá-la?” (220)
Mas por que tanto fervor e tanto ardor posto nesta “guerra ideológica” contra a religião? É o que podem argumentar alguns religiosos, que gostariam de ser deixados em paz com suas crenças sem terem-nas atacadas de modo tão vigoroso por Dawkins. Podemos imaginar a contra-revolta dos crentes contra Deus, Um Delírio em termos como: “por que não deixar cada um acreditar no que quiser, já que a crença religiosa, dizem eles, é um assunto da esfera privada? Quem são vocês, ateus desrespeitosos e infernais, para ousarem dizer que não temos o direito de crer, num mundo em que se deveria respeitar acima de tudo a liberdade de pensamento e de crença de todos os indivíduos?”
Depois de ler o livro de Dawkins, torna-se óbvio e absolutamente inegável que a religião não é, nem nunca foi, um assunto restrito à esfera privada e que age diretamente sobre a vida social planetária. Para ilustrar isso, talvez a melhor pedida seja o seguinte parágrafo, onde Dawkins aponta e enumera a presença religiosa em eventos políticos, sociais, culturais e históricos de relevância que derrubam suficientemente a tese do “respeito à esfera privada” como fundamento do direito à crença:
“Imagine, junto com John Lennon, um mundo sem religião. Imagine o mundo sem ataques suicidas, sem o 11/9, sem o 7/7 londrino, sem as Cruzadas, sem caça às bruxas, sem a Conspiração da Pólvora, sem a partição da Índia, sem as guerras entre israelenses e palestinos, sem massacres sérvios/croatas/muçulmanos, sem a perseguição dos judeus como 'assassinos de Cristo', sem os 'problemas' na Irlanda do Norte, sem 'assassinatos em nome da honra', sem evangélicos televisivos de terno brilhante e cabelo bufante tirando dinheiro de ingênuos ('Deus quer que você doe até doer'). Imagine o mundo sem o Talibã para explodir estátuas antigas, sem decapitações públicas de blasfemos, sem o açoite da pele feminina pelo crime de ter se mostrado um centímetro...” (24)
Os exemplos poderiam ser multiplicados até o excesso:
- escritores brilhantes tendo sua liberdade de expressão atacada de modo grotesco por teocracias fundamentalistas extremamente intolerantes (só lembrar que Salman Rushdie foi condenado à morte pelo aiatolá xiita do Irã depois de publicar um livro – Os Versículos Satânicos - que qualquer crítico literário sensato considera um brilhante romance contemporâneo!);
- psicopatas americanos botando fogo em clínicas de aborto, se dizendo militantes de um movimento "Pro-Life" que, ironicamente, já se mostrou bem Pro-Death quando um dos mais exaltados – Paul Hill - foi e assassinou um médico, sendo depois condenado à morte pela Justiça Americana;
- muçulmanos fanáticos entram em frênesi destrutivo por causa de charges engraçadinhas do profeta Maomé, publicadas pela imprensa da Dinamarca;
- sem falar que o Vaticano continua sustentando que usar a camisinha é pecado, ajudando a disseminar cada vez mais o vírus HIV, que já corrói o continente africano como uma imensa epidemia.
Isso mostra que Dawkins é um intelectual profundamente enraizado em seu próprio tempo, sendo que seu livro está repleto de casos que estiveram presentes na imprensa escrita e televisiva, com seus comentários sempre perspicazes e penetrantes.
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[ ATEÍSMO, DEÍSMO, TEÍSMO E PANTEÍSMO]
Dawkins, antes de se posicionar enfaticamente entre os ateus, faz uma descrição sintética muito oportuna de seus opositores – os teístas, deístas e panteístas:
“Um teísta acredita numa inteligência sobrenatural que, além de sua obra principal, a de criar o universo, ainda está presente para supervisionar e influenciar o destino subsequente de sua criação inicial. Em muitos sistemas teístas de fé, a divindade está intimamente envolvida nas questões humanas. Atende a preces; perdoa ou pune pecados; intervém no mundo realizando milagres; preocupa-se com boas e más ações e sabe quando as fazemos (ou até quando pensamos em fazê-las). Um deísta também acredita numa inteligência sobrenatural, mas uma inteligência cujas ações limitaram-se a estabelecer as leis que governam o universo. O Deus deísta nunca intervém depois, e certamente não tem interesse específico nas questões humanas. Os panteístas não acreditam num Deus sobrenatural, mas usam a palavra Deus como sinônimo não sobrenatural para a natureza, ou para o universo, ou para a ordem que governa seu funcionamento. Os deístas diferem dos teístas pelo fato de o Deus deles não atender a preces, não estar interessado em pecados ou confissões, não ler nossos pensamentos e não intervir com milagres caprichosos. Os deístas diferem dos panteístas pelo fato de que o Deus deísta é uma espécie de inteligência cósmica, mais que o sinônimo metafórico ou poético dos panteístas para as leis do universo. O panteísmo é um ateísmo enfeitado. O deísmo é um teísmo amenizado.” (43)
Sua posição, pelo contrário, é definida assim: “Um ateu é alguém que acredita que não há nada além do mundo natural e físico, nenhuma inteligência sobrenatural vagando por trás do universo observável, que não existe uma alma que sobrevive ao corpo e que não existem milagres – exceto no sentido de fenômenos naturais que não compreendemos ainda.” (37) Quanto ao “Deus dos físicos”, presente por exemplo na visão de Einstein, ele o descreve com mais carinho e menos violência: “O Deus metafórico ou panteísta dos físicos está a anos-luz de distância do Deus intervencionista, milagreiro, telepata, castigador de pecados, atendedor de preces da Bíblia, dos padres, mulás e rabinos, e do linguajar do dia-a-dia.” (44)
Já em relação ao agnosticismo, que em linguagem chula é o nome que se dá aos que “ficam em cima do muro”, não afirmando nem negando a existência de Deus, evidentemente não é a posição de Dawkins e ele também a combate com força. A posição agnóstica radical se caracteriza pela defesa de uma completa “suspensão do juízo”, que sustenta que o homem possui um aparelho mental completamente incapacitado para responder de modo satisfatório à questão. O que “implica que a ciência não pode nem fazer juízos de probabilidade sobre a questão” (89), o que, Dawkins enfatiza, é uma “falácia extremamente disseminada” - mas que não passa de falácia.
O agnosticismo é uma doutrina que não se sustenta de modo algum quando se baseia na afirmação de que a possibilidade de que Deus exista ou de que Ele não exista é exatamente a mesma – 50% para cada lado. A Ciência está sim capacitada para investigar as evidências de sua presença ou ausência no Universo e formular um juízo de probabilidade – que, como todos sabem, aproxima a existência do Deus pessoal e transcendental dos monoteísmos da implausibilidade absoluta. A Ciência tem sim o legítimo direito de trabalhar com as duas hipóteses contrárias – Deus existe, Deus não existe – e ver qual delas tem um grau maior de possibilidade de ser verdadeira. “Um universo em que estamos sozinhos, com exceção de outras inteligências de evolução lenta, é um universo muito diferente daquele com um agente orientador original cujo design inteligente seja responsável por sua existência.” (93)
De fato, não se pode tirar fotos de Deus, gravar a voz de Deus, sentir na pele o toque da mão de Deus, encontrar Deus num microscópio de laboratório – está fora do domínio da física comprová-lo. Desde tempos imemoriais a humanidade já reconhece que esta é uma questão metafísica – ou seja, que está além dos poderes da física. Mas o fato da existência de Deus não poder ser empiricamente comprovada, destaca Dawkins, não significa que não se possa dizer nada sobre o grau de plausibilidade de que Ele exista.
É difícil comprovar a inexistência de qualquer coisa que seja – como na anedota de Bertrand Russell, tente comprovar que não existe um bule orbitando ao redor da Terra, pequeno demais para ser percebido pelos nossos satélites e radares! Tente comprovar que pequenos anõezinhos alienígenas não estão nesse exato momento fazendo sua versão da dança da chuva em algum planeta da Galáxia ainda desconhecida de Tchump-Tchomp! Nenhum pai consegue comprovar de fato que não existem as criaturas que a imaginação fértil de seu filho consegue fabricar, mas não deixa de ser altamente implausível – ou até mesmo impossível – que esses seres fantásticos existam. Com a religião é o mesmo. Como comprovar a inexistência de algo tão intrinseca e obviamente fantástico quanto um Papai do Céu, que mora “fora do Universo”, que pode tudo, sabe tudo, está em todo lugar e em todos os tempos, e ainda assim é sempre invisível, intocável, inouvível e inachável?
“Ninguém se sente obrigado a comprovar a inexistência dos milhões de coisas fantásticas que uma imaginação fértil e brincalhona é capaz de sonhar. Eu me divirto com a estratégia, quando me perguntam se sou ateu, de lembrar que o autor da pergunta também é ateu no que diz respeito a Zeus, Apolo, Amon Rá, Mithra, Baal, Thor, Wotan, o Bezerro de Ouro e o Monstro do Espaguete Voador. Eu só fui um deus além”. (84) “Sou agnóstico na mesma proporção em que sou agnóstico a respeito de fadas escondidas no jardim.” (80)
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[O ARGUMENTO DO DESIGN INTELIGENTE]
Um dos mais clássicos e recorrentes dentre os argumentos teístas que procuram comprovar a existência de Deus sustenta a seguinte noção: que há certas coisas no Universo cuja extrema complexidade teria que ser o resultado de um esforço criador de uma entidade poderosa e inteligente. Um órgão tão inacreditavelmente complexo como o olho de uma águia poderia ter surgido como mero efeito da evolução das espécies ou temos que supor necessariamente um designer divino? E seres humanos absolutamente geniais – pensemos em Shakespeare ou Mozart – poderiam ser algo a não ser obras de mestre de um Deus genial, que com eles acertou na mosca em seu laboratório de criaturas? Há um personagem de Aldous Huxley que, engraçadinho, prova a existência de Deus tocando um quarteto de cordas de Beethoven...
Mas “as pessoas que partem da estupefação pessoal com um fenômeno natural direto para a invocação apressada do sobrenatural não são melhores que os tolos que vêem um ilusionista dobrando uma colher e assumem que se trata de um 'paranormal'.” (176)
Claro que, para rebater o argumento do design inteligente, é Charles Darwin que Dawkins era chamar em seu auxílio: “O argumento do design é o único que ainda é regularmente usado hoje em dia, e ainda soa para muita gente como o argumento determinante do nocaute. (...) Provavelmente jamais houve uma derrubada tão devastadora de uma crença popular através de um raciocínio inteligente quanto a destruição do argumento do design perpetrada por Charles Darwin. Foi totalmente inesperado. Graças a Darwin, já não é verdade dizer que as coisas só podem parecer projetadas se tiverem sido projetadas. A evolução pela seleção natural produz um excelente simulacro de design, acumulando níveis incríveis de complexidade e elegância.” (115)
[O BOEING 747 DEFINITIVO]
“Em sua forma tradicional, o argumento do design é certamente o mais popular da atualidade a favor da existência de Deus e é encarado, por um número incrivelmente grande de teístas, como completa e absolutamente convincente.Ele é realmente um argumento fortíssimo e desconfio que irrespondível – mas exatamente na direção contrária da intenção dos teístas. O argumento da improbabilidade, empregado de forma adequada, chega perto de provar que Deus não existe. O nome que dei à demonstração estatística de que Deus quase com certeza não existe é a tática do Boeing 747 definitivo.” (154)
A discussão é: um furacão, ao passar por um ferro-velho, poderia construir um Boeing 747? Em termos mais abstratos: poderia o acaso construir, tendo como matéria-prima um amontoado de materiais, algo tão complexo quanto um avião moderno? Obviamente a resposta é não. E os teístas adoram transpor esse exemplo para o domínio da vida, “para se referir à evolução dos seres mais complexos”: “a chance de se montar um cavalo, um besouro ou um avestruz plenamente funcionais misturando aleatoriamente suas partes pertence ao mesmo terreno do 747. Esse, em termos muito resumidos, é o argumento favorito dos criacionistas – um argumento que só poderia ter sido pensado por uma pessoa que não entende o essencial da seleção natural: alguém que acha que a seleção natural é uma teoria do acaso, quando se trata do contrário” (155)
O furacão que constrói de repente um Boeing é uma péssima metáfora para a descrição do procedimento da seleção natural, já que nesta nada acontece repentinamente – muito pelo contrário! “O entendimento profundo do darwinismo nos ensina a desconfiar da afirmação fácil de que o design é a única alternativa para o acaso, e nos ensina a buscar rampas gradativas de uma complexidade que aumente lentamente.” (156)
Portanto, quanto aos organismos mais magníficos e complicados que conhecemos, “é claro que não aconteceu por acaso” (164). “O design inteligente não é a alternativa adequada para o acaso. A seleção natural não é apenas uma solução parcimoniosa, plausível e elegante; é a única alternativa viável ao acaso a ter sido sugerida.” (164) Sem falar que supor um projetista inteligente não resolve o problema, mas nos coloca mais um: quem projetou o projetista? Hilda Hilst brincou com isso quando escreveu, sobre suas questões metafísicas de infância: “eu toda lilazinha me perguntando: mãe, Deus tem pai? Depois disso não parei mais...”.
A cegueira do teísta está em não ser capaz de imaginar um longo processo gradual de evolução, em que o poder do acúmulo impera. A natureza não dá saltos espantosos – faz tudo degrau a degrau. Como diz Dawkins, não se trata de subir num pulo só do pé da montanha até o cume, mas sim de pegar a “subida amena” (e lenta) até o topo. Até estruturas incrivelmente complexas, como olho do ser humano, podem ser explicadas como resultado de um processo de evolução natural que durou milhões e milhões de anos, lentamente desenhando e rascunhando organismos cada vez mais espantosos. “O próprio Darwin”, comenta Dawkin, “disse isso: 'Se fosse demonstrado que qualquer órgão complexo existisse e que ele não pudesse ter sido formado por numerosas, sucessivas e pequenas modificações, minha teoria absolutamente ruiria. Mas não consigo encontrar nenhum caso assim.' Muitos candidatos a esse santo graal do criacionismo já foram sugeridos. Nenhum resistiu à análise.” (170)
Por outro lado, considerado a imensidão do Universo, não se torna tão improvável assim que em pelo menos um dentre milhões de planetas as condições climáticas e químicas fossem favoráveis para o surgimento de complexos seres de carbono e água. “Já se estimou que haja entre 1 bilhão e 30 bilhões de planetas em nossa galáxia, e cerca de 100 bilhões de galáxias no universo. Eliminando alguns zeros por mera prudência, 1 bilhão de bilhões é uma estimativa conservadora do número de planetas disponíveis no universo.” (187) E o mais incrível: “Se a probabilidade de a vida surgir espontaneamente num planeta fosse de uma em um bilhão, mesmo assim esse evento embasbacadoramente improvável teria acontecido em 1 bilhão de planetas.” (187)
Também é bom frisar: a origem da vida foi um evento que só precisou ocorrer uma vez; já a evolução da vida é um “acontecimento” constante, cumulativo, que não pára jamais. “Independentemente de com quantos planetas estejamos lidando, o acaso jamais seria suficiente para explicar a luxuriante diversidade de organismos complexos na Terra do mesmo modo que o utilizamos para explicar a existência da vida aqui. A evolução da vida é um caso completamente diferente do da origem da vida, porque, repetindo, a origem da vida foi (ou pode ter sido) um evento singular, que teve que acontecer apenas uma vez. A adaptação das espécies a seus diversos ambientes, por outro lado, ocorreu milhões de vezes, e continua ocorrendo.” (189)
“A seleção natural é o maior guindaste de todos os tempos. Ela elevou a vida da simplicidade primeva a altitudes estonteantes de complexidade, beleza e aparente desígnio que hoje nos deslumbram.” (109)“A seleção natural funciona porque ela é uma avenida de de mão única, cumulativa, para o aperfeiçoamento. Ela precisa de alguma sorte para ser iniciada, e o princípio antrópico dos 'bilhões de planetas' nos assegura tal sorte.” (191)
Dawkins comenta, em The Root OF All Evil, que a religião, além de oferecer explicações ilusórias, fictícias e deturpadas para os fenômenos da natureza, que só a razão e a ciência são capazes de desvendar de modo lúcido e confiável, diagnostica ainda que a fé torna as pessoas dependentes, intolerantes, infantilizadas e propensas à sérias dificuldades a lidar com o diferente. "People lean on their faith like a crutch", comenta, e já chegou a hora de retirar dos mancos suas bengalas para que eles passem a utilizar suas pernas atrofiadas! Ecoando a mensagem de Freud em “O Futuro de Uma Ilusão”, que chamava a humanidade a crescer e superar o infantilismo psíquico que é a crença religiosa, Dawkins diagnostica também que a fé deixa a humanidade "stuck in a permanent state of infancy". Sem falar do terrorismo com fontes religiosas, um dos mais graves problemas do começo deste século e do fim do último, que aparentemente só começou a causar os infindáveis estragos que certamente continuará a desencadear na geopolítica global. "Far from being beaten, militant faith is on the march, all around the world, with terrible consequences..." Que soem os alarmes!