A FÁBRICA DE CORAÇÕES
we're manufacturing hearts, we've got the perfect thing
the word on the street: we've got the new love machine
heart with an on/off switch and a remote control
now you can program how you feel before you walk out the door
well you can leave it hot and you can leave it cold
you can give 'em what you want and you can get up and go
you can take your heart out and you can put it back in
i think we found the way to put the fun back in sin
it's not like an organ more like valentine
it's cherry cherry red and it beats on time
we're trying to reduce the heart on heart crime
you bring your heart to us we'll get it purified
what are you waiting for?
SLEATER-KINNEY, “Heart Factory”
CONTO EM 3 PARTES e MEIA
[1] – A Novidade e Porquê Aderi ao Hype
[2] – Os Corações Zero-Quilômetro e suas Raças
[3] – A Clínica de Reabilitação Para os Corações Adoentados
[3.5] - e, como epílogo, um NÃO que é um SIM.
[1] – A Novidade e Porquê Aderi ao Hype
Estava nas páginas publicitárias de todas as revistas, nos reclames de todos os canais de televisão, anunciado em todas as principais avenidas do país em outdoors gigantescos: a Fábrica de Corações finalmente abria as portas a seus clientes! O povo comemorou como se fosse dia de vitória na Copa do Mundo. Finalmente! Após séculos e séculos de esforços conjuntos de inumeráveis cientistas na área da medicina, da biologia e da genética, as mentes mais brilhantes que a humanidade já conheceu, a boa nova chegava. Homens de todo o mundo, rejubilai! Os corações estão à venda, e feitos à imagem e semelhança de suas necessidades! Agora podemos programar o jeito que vamos sentir todas as manhãs, regular a temperatura de nosso coração como se fosse um forno, injetar nele alegria industrializada... A velha promessa do capitalismo, antes sempre feita em vão, tinha se concretizado: a felicidade estava sendo vendida no supermercado! O preço do produto, num primeiro momento, ainda era um tanto salgado, e a Fábrica de Corações se dirigia principalmente a um público consumidor de classe média alta pra cima. Infelizmente, os ricos iriam deter o monopólio dos bons corações.
Fui lá conferir. Meu coração fazia tempo que tava me irritando, meio que zoando da minha cara, me transtornando a vida, me colocando em enrascadas. Ficava se angustiando por bobagens, como se gostasse de misturar glóbulos de melancolia aos vermelhos e aos brancos e fazendo isso fluir e refluir pelas minhas veias. Ficava cheio de covardias idióticas e de sonhos impossíveis. E parece que só de sacanagem me fazia cair apaixonado sempre pelas garotas erradas – ou seja, ou as já comprometidas, ou aquelas que não gostam de mim, ou aquelas de quem eu nunca teria coragem de me aproximar. E o pior: esse maldito coração não obedecia as ordens dos seus superiores na hierarquia, aqueles que moram na cabeça; não havia rédea que bastasse para impedir a revolta desse corcel selvagem! Em suma: eu estava de saco cheio do meu coração. Queria fazer um upgrade.
Fiz os exames todos, as radiografias, os exames de sangue, as cardiografias, tudo tudo. Mas não acharam defeito. O cardiologista depois veio e disse pra mim, com aquele tipo de raiva que tem os médicos quando recebem doentes que não estão de verdade doentes: “Meu rapaz, não há nada de errado com o seu coração! Ele é perfeitamente saudável! Não há absolutamente nenhum perigo de enfarte, nenhuma dificuldade cardíaca, nada de anormal em seus átrios e ventrículos! Seu coração está perfeitinho, perfeitinho! Agora dê o fora daqui!” Comentei comigo mesmo que esse médico não sabia do que estava falando. Quem melhor do que eu poderia dizer que meu coração não estava legal? Exames idiotas.
No dia em que fui visitar a recém-inaugurada Fábrica de Corações, que tinha acoplado um HiperMercado Coraçológico, a abundância de consumidores era de espantar. Os carrinhos de supermercado eram tantos, e se chocavam uns aos outros tantas vezes, que aquilo parecia um parque de diversões enlouquecido com crianças brincando de carrinho bate-bate. Em ritmo frenético, os consumidores iam enchendo suas sacolas com vários estilos de coração expostos nas prateleiras. A empresa até mesmo oferecia um tour pelas imediações internas da fábrica, bem parecido com aquele que Willy Wonka e seus Oompa Loompas oferecia aos visitantes de sua chocolateria, e nesse passeio podíamos ver a fabricação dos coraçõezinhos, eles correndo em fila indiana nas linhas de montagem, sendo instalados no tórax dos bem-aventurados compradores, e depois sendo enviados para o setor de pinturas...
Não havia falta de opções em termos de coloração: corações pretos, verdes, azuis, mostarda, cor-de-rosa – tinha até corações arco-íris (uma viadice só), corações caleidoscópicos, corações que brilham no escuro... Ninguém parecia se dar conta de que pouco importava a cor do coração, já que ele, após ser devidamente instalado, estaria escondido detrás da muralha do peito, na escuridão do corpo, onde ninguém seria capaz de ver a cor dele. Nem no raio X ia aparecer, porque raio X é pebê (dããã). Mas as pessoas simplesmente gostavam da idéia de ter um coração colorido e se imaginavam felizes ao poderem dizerem umas às outras:
- Meu mais novo coração é metade preto e metade branco, homenagem imortal ao Eterno Alvinegro do Parque São Jorge!! E o seu?
- O meu é verde, seu corinthiano filho da puta!!
Alegres diálogos semelhantes se tornariam corriqueiros.
[2] – Os Corações Zero-Quilômetro e suas Raças
Os modelos eram inumeráveis. Tanto que a Fábrica de Corações havia contratado e treinado toda uma série de vendedores que acompanhavam os clientes através das vitrines e prateleiras, apresentando os diferentes modelos de coração, suas características e suas vantagens, seus preços e seus prazos de validade. O meu me pegou pelo braço e foi me conduzindo pelas prateleiras, berrando ao meu ouvido...
VENDEDOR: Veja esse aqui! É divino! Esse é o nosso modelo mais precioso, o Coração Tanque de Gasolina! Ele é a concretização de um velho anseio profundo da alma humana. Quem não quis que existisse uma Máquina de Amor como existem máquinas de refrigerante, de maços de cigarro e de bichos de pelúcia? A gente ia lá, comprava uma ficha, a máquina enfiava um tubo no nosso coração e enchia tudo de Amor, num piscar de olhos, como se nosso peito fosse tanque de combustível... Pois bem: está feito. Com esse coração, que tem um buraco aberto onde será inserido o tubo fornecedor de amor, você poderá passar nos Postos de Reabastecimento que nossa empresa está instalando em todo o país e, por uma quantia módica (bem mais barato que o litro de álcool, eu te garanto!), pode encher o seu mais novo coraçãozinho com um pouco de Amor Líquido da melhor qualidade!
A idéia era tentadora. Não me parecia nada má a idéia de que existisse um Posto de Gasolina de Amor. Aí sempre que a gente se sentisse mau-amado, sem ânimo, como um carro cansado que ameaça parar no acostamento e virar sucata, era só encostar e encher o tanque. E eu acho que devia ser de graça, pois não ia ser justo só rico poder ter. Mas eu não entendia a idéia direito.
EU: Mas como é que isso funciona? Onde já se viu a gente ter no corpo um buraco abrindo direto para o exterior? O perigo de infecção que ia ser!
VENDEDOR: Ora, e você acha que a sua boca e suas narinas são o quê?
Eu nunca tinha parado pra pensar nisso.
EU: Nunca tinha parado pra pensar nisso.
VENDEDOR: Pois bem, posso mandar embrulhar?
Eu considerei a idéia por alguns momentos. Com esse meu novo coração, muitas coisas mudariam na minha vida, com certeza. Eu provavelmente não teria mais nenhuma necessidade de pessoas. Não iria mais amar ninguém porque não teria mais necessidade de ser amado por ninguém. Iria provavelmente me trancar no meu mundinho e ficar só “curtindo a vida” e queimando meu combustível - o ideal da auto-suficiência finalmente concretizado. Mas algo em mim se revoltava contra essa idéia. Queria eu abandonar a humanidade, mesmo que para isso ganhasse a felicidade? Não seria um crime ser feliz sozinho? Não valia mais a pena continuar em meio aos humanos, e prosseguir na luta e na solidariedade, do que me agarrar a uma solução assim tão fácil? E, além do mais, conquistar a felicidade através de um meio tão científico e tão frio... Eu queria amor, sim, mas queria ir buscá-lo não nos postos de gasolina instalados pela Heart Factory Inc., não queria um amor líquido e industrializado que me fosse dado porque paguei o preço; queria ir conquistá-lo num outro lugar, retirá-lo de outro poço: em outros corações humanos!
EU: Não. Esse eu não quero.
Prosseguimos para outra prateleira.
VENDEDOR: Temos várias outras opções, meu senhor... temos esse coração que vem acompanhado por um interruptor a ser instalado na sua cintura, e que permite ligar e desligar o órgão ao seu bel prazer. Quando você precisar, por exemplo, sentar-se para decifrar um texto de filosofia ultra-racional e não quiser que nada de sentimento ou de imaginação venha para te atrapalhar, você desliga o seu coração... Se, mais à noite, pra fazer a vontade da esposa ou da namorada, você vai ao cinema assistir uma comédia romântica água-com-açúcar, é só ligar o coração de novo e logo você estará derramando lágrimas a cada beijo melado da Meg Ryan com o... sei-lá-quem!
EU: Não sei se quero ser só razão nem só sentimento. Gosto que as coisas apareçam misturadas. Gosto de pensar com o coração e sentir com o cérebro. E isso de desligar o coração parece cômodo demais. Certamente isso me faria a vida mais fácil, mas não sei se quero uma vida fácil. Qual é a graça? Onde estará a Aventura de Viver? Sobrará algum espaço para a Adorável Imprevisibilidade do Futuro? Acho que também nesse modelo não estou interessado.
VENDEDOR: Bom, temos outros modelos interessantes. Esse aqui, por exemplo, é o Kit do Coração Descartável, que vem com uma dúzia de corações que podem ser facilmente arrancados do peito e jogados no lixo quando o cliente julgar mais conveniente. É um grande sucesso entre nossa clientela adolescente. Com essa nova invenção, você pode tranquilamente se apaixonar por uma pessoa numa noite, usufruir dela como bem entender, bem à maneira como fazemos com as bonecas infláveis, e, ao nascer do Sol, descartar juntamente a moça com quem se divertiu e o seu próprio coração descartável! Não é genial? Assim você não precisa se preocupar nada com essas coisas chatas que são o amor, o compromisso, a fidelidade, as promessas, os relacionamentos duradouros... Poderá se deixar conectar sabendo que não será incomodado depois por inadequados elos sentimentais! Pois o amor, meu caro senhor, é uma tragédia! E o coração descartável é a solução! De hoje em diante, só diversão! De hoje em diante, o mesmo princípio ético pode se aplicar tanto ao seu coração quanto a todas as pessoas ao teu redor: use uma vez e jogue fora! Esse é um dos nossos itens que vem fazendo mais sucesso popular! É o nosso verdadeiro Top de Linha! Posso mandar embrulhar?
Tive a sensação de que a qualidade do produto estava decaindo.
EU: Acho que não estou interessado.
VENDEDOR: Bom, temos também o Coração de Gelo, aquele que é completamente indiferente a tudo. Um verdadeiro achado! Com a aquisição de um Coração de Gelo, meu amigo, sua vida será muito mais tranqüila, serena e sem preocupações! Vou exemplificar algumas das vantagens desse produto... Veja bem, você por vezes não se sente com a consciência um pouco pesada, pensando no pouco que faz para ajudar a construir o tal do Mundo Melhor? Pois bem, temos a solução pra você! Com o Coração de Gelo, você poderá ver na televisão as criancinhas africanas sujas e esfomeadas agonizando sem alimento e sem remédio, e você poderá ver vídeos do Holocausto, dos campos de concentração e das covas de massa, e poderá ver os mais sangrentos e dolorosos filmes de guerra, e nada, absolutamente nada perturbará a serenidade da sua alma! Você, bem-aventurado comprador de nosso Coração de Gelo, não sentirá absolutamente nenhuma piedade, nenhuma compaixão – e vai simplesmente trocar para o canal esportivo ou pôr um filme erótico. E vai continuar se achando um ser humano muito bom. Não é genial?
E também o seu relacionamento com outras classes, dentro da sociedade, será muito melhorado e não haverá mais raiva ou desprezo em seu coração. Ao andar nas ruas, os mendigos e os alcóolatras vão te pedir trocados para o pão ou para a cachaça e você não vai se incomodar; não vai se irritar, não vai chamar a polícia, não vai xingar e cuspir no pobre diabo... Não: seguirá em paz seu caminho. Nenhum remorso ou sentimento de culpa turvará sua consciência sempre tão limpa. E não se trata somente de uma frieza que se refira somente aos pobres e deserdados desta Terra, não, não, não: se refere a todos! Se porventura você machucar alguma das pessoas que ama, não será invadido pelo arrependimento nem pela necessidade de pedir perdão. Estará em paz com todos os seus atos. Aliás, não amará ninguém de verdade, o que muitos clientes consideram uma benção! Não é providencial? Alguns de nossos clientes mais ricos estão comprando com furor e êxtase esse modelo de coração! Nos dizem eles que hoje dormem muito mais tranquilos à noite! Dormem o Sono dos Justos!!!!
Mas me permita ser sincero com o senhor: nossa empresa se sente um tanto decepcionada com as vendas alcançadas por esse produto... Ele realmente não vem fazendo muito sucesso popular...
EU:: Não acho que seja porque as pessoas não querem um coração desse tipo: é que muitas delas já tem um muito parecido!!
VENDEDOR: E o senhor, gostaria de ter um parecido? Mando embrulhar?
EU: Não, não, não! Muito obrigado... Preferiria uma coração de fogo, sempre em chamas, do que esse freezer horroroso que você quer me enfiar no peito.
VENDEDOR: Ok, então passemos adiante. Você pode ver aqui à sua frente o Coração das Torturas, um item que muitos clientes adquirem para oferecer como presente para seus inimigos e desafetos. Ele vem acompanhado por esse genial Controle Remoto dos Suplícios, através do qual você pode selecionar o tipo de dor que quer infligir ao portador do coração. Veja os botões: CULPA – PAVOR – PÂNICO – ANGÚSTIA... Sem falar nos simulacros de dores físicas e doenças: CHUTE NO SACO – CÁRIES – DIARRÉIA – FRATURA EXPOSTA. O produto é tão comprovadamente eficaz, meu senhor, que certos clientes, após presentearem seus inimigos com o coração, conseguiram com que seus desafetos se suicidassem em menos de 24 horas...
EU: Meu Deus, mas isso é assassinato! Eu deveria ligar para Polícia!
VENDEDOR: Suicídio não é assassinato, meu amigo. Os portadores dos corações se matam porque estão infelizes, e até onde eu sei a infelicidade não é proibida. Se ser infeliz desse cadeia estaríamos quase todos presos.
EU: Mas isso é vender um serviço institucionalizado de sadismo e crueldade! Vou procurar a justiça para que as devidas medidas legais sejam tomadas contra essa empresa nojenta de voc...
VENDEDOR: Não há nada que a lei possa fazer contra nossa empresa: só fornecemos um serviço muito legítimo para que certos clientes dêem vazão a seus sentimentos. E além do mais só seguimos a lei da oferta e da procura. E o senhor muito se surpreenderia ao saber da quantidade de pessoas que desejam machucar outras.
Aquela Fábrica de Corações estava me dando nos nervos.
EU: Não quero.
[3] – A Clínica de Reabilitação Para os Corações Adoentados
VENDEDOR: Bom, se o senhor sente dificuldades em se interessar por qualquer dos corações zero-quilômetro que oferecemos, há ainda uma outra opção: o senhor pode se internar na nossa Clínica de Reforma de Corações e dar um jeito no seu. É como se você levasse seu carro para a oficina mecânica para uns ajustes, uma troca de óleo, uns aperfeiçoamentos básicos...
EU: Compreendo. E que tipo de... melhoramentos... a empresa forneceria ao meu coração?
VENDEDOR: Podemos blindá-lo. Daí em diante ele passaria a resistir a tiros de 38, de automáticas 9mm e outras armas pequenas. Ainda estamos desenvolvendo a nossa técnica de blindagem para que ela aguente AR-15s e bazucas, mas o senhor não me parece ser o tipo de pessoa que seria um alvo potencial deste tipo de armamento.
EU: Um coração blindado? Mas eles sempre podem atirar na minha cabeça.
VENDEDOR: Outras empresas vão cuidar de fabricar uma blindagem para cabeças, meu senhor, fique sossegado. O estado de nossa nação o exige! Logo logo estaremos todos nós andando por aí com nossos rostos escondidos detrás de capacetes à prova de balas e com nossos peitos dotados de corações blindados.
EU: Não sei se gosto muito da idéia... Adoro respirar ar livre, sentir a brisa matinal acariciando o meu rosto, e os raios de Sol me aquecendo a pele desnuda e vulneráv...
VENDEDOR: (entra cortando, sarcástico...) O senhor é realmente um poeta, mas hoje em dia, do jeito que anda este país, é bom deixar de lado esses romantismos bestas! Todos estão fazendo o mesmo, o senhor vê... Estão todos tomando medidas drásticas para se protegerem. E estão muito certos, eu lhe digo! Nossa elite já está tratando de criar bunkers e quartos-do-pânico em suas mansões, sem falar na instalação das câmeras de vigilância, dos seguranças particulares e das BMWs blindadas... O senhor já deve ter ouvido falar que o Brasil tem a maior frota de carros blindados do mundo? E por que não expandir esse negócio para nossos corações e mentes, meu caro? Temos que blindar tudo, tudo, tudo!
EU: Cada um na sua jaula, certo? Cada um na sua jaula...
VENDEDOR: Cada um usufruindo do sublime sentimento de segurança, meu senhor! Isso sim!
EU: Cada um se auto-enjaulando numa cela fechada, vivendo no cagaço, e o cada-um-por-si cada vez mais exagerado... isso sim!
VENDEDOR: Mas é preciso, senhor! É preciso! Hoje em dia a gente não pode conversar inocentemente com ninguém porque qualquer um pode ser um bandido, um assassino, um estuprador! É preciso considerar que todos os desconhecidos têm secretas más intenções até prova em contrário! Até mesmo com nossos conhecidos temos sempre que estar alertas, com um pé atrás e com a paranóia fervendo sempre em nossas panelas! Não podemos revelar nada do nosso íntimo porque não sabemos o que farão com essa informação! Pode ser que planejem sequestros! É um perigo, digo a você, senhor, é preciso se proteger...
EU: Me proteger do quê, cara? Que tenho de importante que me possam roubar? Qualquer coisa que possuo não tem muita importância. Tudo o que o tem um preço não tem muito valor. Que me roubem um relógio, uma carteira, um carro, que me importa? Vou me auto-emprisionar só por medo de que me tirem coisas que, no fundo, nada importam? Prefiro confiar nas pessoas. Por que não apostar mais na inocência do que no vício? Por que não considerar que todos são inocentes e confiáveis até prova em contrário?
VENDEDOR: Sim, seu tolo, confie sim nas pessoas e veja a tragédia que vai ser! Você vai andar por aí com o coração desprotegido e a cabeça sem capacete, e sabe o que vai ganhar com isso? Vai morrer cedo! Baleado, esfolado, esfaqueado! A cidade é uma selva, meu amigo! Então o senhor não quer mandar blindar seu coração, hein? Quero ver o que o senhor vai pensar sobre isso no dia que for assaltado e tomar um tiro no peito... O que vai pensar, hein senhor? Hein?!
EU: Merda acontece.
VENDEDOR: Vejo que o senhor gosta de viver perigosamente...
EU: Não é o melhor jeito de viver?
VENDEDOR: Viver bem não é viver bem protegido, senhor?
EU: Tem gente que tem tanto medo de morrer, tanto medo de não sofrer, que acaba por não viver - e chama esse não-viver de “se proteger”... Precisamos ficar nus na tempestade da vida!!
VENDEDOR: Não quero entrar em discussões existenciais, meu senhor, não passo de um mero vendedor de corações. Mas vejo que convencê-lo é dureza. Mas temos ainda outros serviços a oferecer em nossa Clínica... O senhor pode, por exemplo, nos contratar para que façamos uma sessão de drenagem do seu coração.
EU: Uma o quê? Uma drenagem?
VENDEDOR: Sim, nós desenvolvemos técnicas que possibilitam intervenções químicas que fazem com que o coração seja purificado de certos males... Se você está se sentindo temeroso, agoniado, solitário, por exemplo, é só vir e pedir que drenemos completamente esse lixão de seu coração. Se você é alguém que tem certas tendências a ser melancólico e angustiado (e leio nos seus olhos, meu caro, que esse provavelmente é o seu caso!), basta se internar na clínica por uma hora que drenaremos tudo... Não é maravilhoso?
EU: E eu escreveria com o quê, depois?
VENDEDOR: Com o quê escreveria? Hmm... Com uma caneta, eu suponho. Ou com um computador. Suponho que sejam esses os acessórios que se costuma usar para escrever...
EU: Não no meu caso.
VENDEDOR: (constrangido) Bem, o senhor tem todo o direito de não querer ter a angústia drenada de seu coração (com cara de tem-maluco-pra-tudo-nesse-mundo...). Mas deixe que eu lhe mostre outras opções – temos, é claro, o nosso Setor de Remendos e Costuras aos Corações Partidos… Esse setor também utiliza uma técnica de drenagem para retirar de seu coração todas as mágoas amorosas, depois utilizando a Super Pritt Cardíaca para recolar os pedaços... Agora é verdade o que Cobain cantava: “My heart is broke, but I have some glue!” Quer tentar?
EU: Não quero. Um coração partido é um ótimo professor.
VENDEDOR: Temos uma máquina de amnésia, também... Tiramos à idéia do Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças. Somos capazes de eliminar quaisquer memórias de coisas que você viveu com pessoas de quem hoje não gosta. Apagar todos os seus arrependimentos, todos os seus remorsos, todas as suas memórias dolorosas, todos os seus traumas. Sua vida inteira completamente purificada de tudo o que você fez de errado!!
EU: Meu Deus, apagar todos os meus erros? E o que sobraria de mim? Eu perderia 90% do que sou! Talvez tudo! Me deixe em paz com meus erros, meu caro vendedor. Não quero apagar nenhuma pessoa da minha memória. E meus erros também são excelentes professores. Quero guardá-los dentro de mim como se fossem troféus!
VENDEDOR: O senhor é de fato o consumidor mais bizarro que já pisou nessa Fábrica de Corações.
Meu entusiasmo pela Heart Factory Inc. se fora completamente e eu não aguentava mais.
EU: Adeus, senhor. Acho que não vou levar nada.
E me mandei.
[3.5] – Epílogo contendo um NÃO que é um SIM.
Saí dali com o meu velho coração batendo firme e forte no meu peito, o mesmo coração covarde, idiota, ranheta e cheio de vazio que eu horas atrás odiava com toda a força e queria ter substituído por algo melhor. E me peguei pensando comigo mesmo: “ah, ele até que não é tão mau assim... Acho que vou ficar com ele”.
E fiquei.
VENDEDOR: (entra cortando, sarcástico...) O senhor é realmente um poeta, mas hoje em dia, do jeito que anda este país, é bom deixar de lado esses romantismos bestas! Todos estão fazendo o mesmo, o senhor vê... Estão todos tomando medidas drásticas para se protegerem. E estão muito certos, eu lhe digo! Nossa elite já está tratando de criar bunkers e quartos-do-pânico em suas mansões, sem falar na instalação das câmeras de vigilância, dos seguranças particulares e das BMWs blindadas... O senhor já deve ter ouvido falar que o Brasil tem a maior frota de carros blindados do mundo? E por que não expandir esse negócio para nossos corações e mentes, meu caro? Temos que blindar tudo, tudo, tudo!
EU: Cada um na sua jaula, certo? Cada um na sua jaula...
VENDEDOR: Cada um usufruindo do sublime sentimento de segurança, meu senhor! Isso sim!
EU: Cada um se auto-enjaulando numa cela fechada, vivendo no cagaço, e o cada-um-por-si cada vez mais exagerado... isso sim!
VENDEDOR: Mas é preciso, senhor! É preciso! Hoje em dia a gente não pode conversar inocentemente com ninguém porque qualquer um pode ser um bandido, um assassino, um estuprador! É preciso considerar que todos os desconhecidos têm secretas más intenções até prova em contrário! Até mesmo com nossos conhecidos temos sempre que estar alertas, com um pé atrás e com a paranóia fervendo sempre em nossas panelas! Não podemos revelar nada do nosso íntimo porque não sabemos o que farão com essa informação! Pode ser que planejem sequestros! É um perigo, digo a você, senhor, é preciso se proteger...
EU: Me proteger do quê, cara? Que tenho de importante que me possam roubar? Qualquer coisa que possuo não tem muita importância. Tudo o que o tem um preço não tem muito valor. Que me roubem um relógio, uma carteira, um carro, que me importa? Vou me auto-emprisionar só por medo de que me tirem coisas que, no fundo, nada importam? Prefiro confiar nas pessoas. Por que não apostar mais na inocência do que no vício? Por que não considerar que todos são inocentes e confiáveis até prova em contrário?
VENDEDOR: Sim, seu tolo, confie sim nas pessoas e veja a tragédia que vai ser! Você vai andar por aí com o coração desprotegido e a cabeça sem capacete, e sabe o que vai ganhar com isso? Vai morrer cedo! Baleado, esfolado, esfaqueado! A cidade é uma selva, meu amigo! Então o senhor não quer mandar blindar seu coração, hein? Quero ver o que o senhor vai pensar sobre isso no dia que for assaltado e tomar um tiro no peito... O que vai pensar, hein senhor? Hein?!
EU: Merda acontece.
VENDEDOR: Vejo que o senhor gosta de viver perigosamente...
EU: Não é o melhor jeito de viver?
VENDEDOR: Viver bem não é viver bem protegido, senhor?
EU: Tem gente que tem tanto medo de morrer, tanto medo de não sofrer, que acaba por não viver - e chama esse não-viver de “se proteger”... Precisamos ficar nus na tempestade da vida!!
VENDEDOR: Não quero entrar em discussões existenciais, meu senhor, não passo de um mero vendedor de corações. Mas vejo que convencê-lo é dureza. Mas temos ainda outros serviços a oferecer em nossa Clínica... O senhor pode, por exemplo, nos contratar para que façamos uma sessão de drenagem do seu coração.
EU: Uma o quê? Uma drenagem?
VENDEDOR: Sim, nós desenvolvemos técnicas que possibilitam intervenções químicas que fazem com que o coração seja purificado de certos males... Se você está se sentindo temeroso, agoniado, solitário, por exemplo, é só vir e pedir que drenemos completamente esse lixão de seu coração. Se você é alguém que tem certas tendências a ser melancólico e angustiado (e leio nos seus olhos, meu caro, que esse provavelmente é o seu caso!), basta se internar na clínica por uma hora que drenaremos tudo... Não é maravilhoso?
EU: E eu escreveria com o quê, depois?
VENDEDOR: Com o quê escreveria? Hmm... Com uma caneta, eu suponho. Ou com um computador. Suponho que sejam esses os acessórios que se costuma usar para escrever...
EU: Não no meu caso.
VENDEDOR: (constrangido) Bem, o senhor tem todo o direito de não querer ter a angústia drenada de seu coração (com cara de tem-maluco-pra-tudo-nesse-mundo...). Mas deixe que eu lhe mostre outras opções – temos, é claro, o nosso Setor de Remendos e Costuras aos Corações Partidos… Esse setor também utiliza uma técnica de drenagem para retirar de seu coração todas as mágoas amorosas, depois utilizando a Super Pritt Cardíaca para recolar os pedaços... Agora é verdade o que Cobain cantava: “My heart is broke, but I have some glue!” Quer tentar?
EU: Não quero. Um coração partido é um ótimo professor.
VENDEDOR: Temos uma máquina de amnésia, também... Tiramos à idéia do Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças. Somos capazes de eliminar quaisquer memórias de coisas que você viveu com pessoas de quem hoje não gosta. Apagar todos os seus arrependimentos, todos os seus remorsos, todas as suas memórias dolorosas, todos os seus traumas. Sua vida inteira completamente purificada de tudo o que você fez de errado!!
EU: Meu Deus, apagar todos os meus erros? E o que sobraria de mim? Eu perderia 90% do que sou! Talvez tudo! Me deixe em paz com meus erros, meu caro vendedor. Não quero apagar nenhuma pessoa da minha memória. E meus erros também são excelentes professores. Quero guardá-los dentro de mim como se fossem troféus!
VENDEDOR: O senhor é de fato o consumidor mais bizarro que já pisou nessa Fábrica de Corações.
Meu entusiasmo pela Heart Factory Inc. se fora completamente e eu não aguentava mais.
EU: Adeus, senhor. Acho que não vou levar nada.
E me mandei.
[3.5] – Epílogo contendo um NÃO que é um SIM.
Saí dali com o meu velho coração batendo firme e forte no meu peito, o mesmo coração covarde, idiota, ranheta e cheio de vazio que eu horas atrás odiava com toda a força e queria ter substituído por algo melhor. E me peguei pensando comigo mesmo: “ah, ele até que não é tão mau assim... Acho que vou ficar com ele”.
E fiquei.
...THE END...
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