quarta-feira, 22 de agosto de 2007

:: à la recherche du temps perdu ::


“Às vezes o cheiro de um sabonete (ou qualquer outra substância doméstica) traz, de repente, uma recordação desde há muito esquecida, vinda da infância. E é quando me ponho a imaginar quantas OUTRAS recordações se acham ocultas em mim, nos recantos de meu próprio cérebro; na verdade, o meu cérebro parecerá ser a última e grande TERRA INCOGNITA, e eu me encho de espanto, diante da perspectiva de, algum dia, descobrir mundos novos por lá. Imaginemos o continente perdido da Atlântida e todas as ilhas submersas da infância, bem ali, esperando serem achadas. O espaço interno que nunca exploramos adequadamente. Os mundos dentro de mundos dentro de mundos. E o maravilhoso é que estão à nossa espera. Se deixamos de descobri-los, é apenas porque ainda não construímos o veículo certo – espaçonave, submarino ou poema – que nos levará até eles.

É por esse motivo, em parte, que escrevo. Como posso saber o que penso, a menos que veja o que escrevo? Minha escrita é o submarino, ou espaçonave, que me leva aos mundos desconhecidos dentro de minha cabeça. E a aventura é infinita, inexaurível. Se eu aprender a construir o veículo certo, poderei descobrir ainda mais territórios. E cada poema novo é um veículo novo, destinado a mergulhar um pouco mais fundo (ou voar um pouco mais alto) do que o anterior.”

ERICA JONG

Ultimamente eu tenho me dedicado a explorar essa "Atlântida interior" de que fala a Erica Jong (como escreve essa mulher!): todas as "ilhas submersas" do reino imenso da memória... É uma jornada fascinante. E alegre, também, porque parece muito mais fácil olhar com o humor (e até um certo sarcasmo) para pessoas que você foi no passado distante do que para a pessoa que é agora. Só daqui alguns anos é que eu vou conseguir notar o quanto esse "eu" que estou sendo agora era ridículo e tolo... ;) Resolvi tentar escrever narrações mais longas, detalhadas e minuciosas sobre a minha infância e adolescência, agora que já sou, pelo menos nos registros oficiais, um adulto (apesar de frequentemente me sentir com a idade mental de um pirralho). E eu sei que é clichê e que muitos já disseram isso antes, mas eu fico boquiaberto de notar a quantidade de material que fica estocada em nosso cérebro (essa que é provavelmente a máquina mais fascinante de todo o universo), só aguardando resgate. E é incrível o quanto uma memória "puxa" outra, numa associação de idéias que parece não ter fim, até que, no final, você acaba perdendo horas e horas de sono viajando no parque de diversões da lembrança... O Proust, no começo do Em Busca do Tempo Perdido, come um mísero bolinho na hora do chá e o gosto do negócio faz com que ele desperte de sua aparente amnésia e sinta renascer todo o passado em Combray. Todo um mundo em ruínas, aparentemente esquecido, ressurgindo das cinzas por causa de um mero gosto familiar na língua... Quando eu li isso pela primeira vez, lembrei na hora dos bolinhos de chuva envoltos em açúcar e canela, saindo quentinhos do óleo, que minha avó Enid fazia de vez em quando, na chácara, mesmo em dias de Sol, para acompanhar nossos longos jogos de buraco - e um bolinho de chuva trazia para mim todo um mundo de volta... Enquanto eu vou trabalhando nos contos mais sérios e ambiciosos que estou tentando compor, vou compartilhar algumas memórias bem mais bestalhonas e tontas que eu consegui desencavar da minha toca e cristalizar em palavras. São bobagens, claro, mas e daí? Quem foi que disse que a gente só registra coisas "importantes"? A minha memória, ao menos, está entulhada de futilidades. Descrever essas memórias tolas é um pouco ridículo? Claro que sim! Mas eu me importo cada vez menos, e me esforço cada vez mais por não me importar. Concordo pelanemente com o que diz o Nelson Rodrigues, numa das frases mais geniais que eu li em muitos tempo: "Vivo a dizer que considero o ridículo uma das minhas dimensões mais válidas. O medo do ridículo gera as piores doenças psicológicas." Voilà, pois...

um pequeno inventário das minhas nostalgias (parte 1)!!!:


KINDER OVO. Ah, houve uma época na história universal dos chocolates em que eu (e mais uma multidão de gente) achava que não havia prazer culinário equivalente ao Kinder Ovo. Podiam chamar o gourmet francês mais fodão do universo e pedir que ele fizesse o prato mais suculento que ser humano já provou, e eu diria: não chega aos pés da delícia kinderiana. Não me lembro de nenhum outro fenômeno gastronômico tão grande na minha infância: aquele ovinho estava em todos os lugares e todos os cantos: nos outdoors, nos comerciais de TV, em toda e qualquer padaria, banca de jornal ou loja de conveniência. Foi um fenômeno sociológico. Bons tempos aqueles, antes da explosão de acnes da adolescência, onde devorar chocolates era liberadíssimo e não havia medo algum de ver a sua cara ser tomada por bolas lotadas de pus! Nossas línguas diziam, unânimes, no auge da kindermania, que nada chegava aos pés do Kinder Ovo – nada da Copenhagen, nem da Ferrero Rocher; nem Soufflair, nem Sonho de Valsa ou Diamante Negro... sem chance! Primeiro porque, como Freud certamente explicaria se estivesse vivo e atendendo casos patológicos de maníacos por Kinder Ovo (eu era um dos que precisava de ajuda profissional), o “barato” da coisa estava em ganhar um Ovo de Páscoa em miniatura, e isso sem precisar aguardar a chegada daquela época do ano em que houve a tal da ressureição do Cristo. O Kinder Ovo nos trazia saborosas reminiscências de Páscoas do passado. E aquele chocolate, preto por fora, branco por dentro, mais ou menos do tamanho de seu símile original (o ovo de galinha), gerava volúpias no paladar tanto quando mastigado tanto quando chupado como uma bala. Eu até deixava derreter no leite quente, dando uma turbinada no meu Nescau. Mas é óbvio que o mais exuberante dos atrativos do Kinder Ovo era o brinquedinho secreto que vinha escondido em suas entranhas de cacau. Como é que os fabricantes de Ovos de Páscoa nunca haviam pensado que poderiam esconder coisas bem mais interessantes do que meros bombons no interior de suas chocolatices redondosas? Eu ficava louco de felicidade quando o meu pai chegava em casa trazendo de presente alguns Kinder Ovos novos – lembro até que teve uma época em que ele, empolgado com a alegria que podia me dar com esses doces, comprou toda uma bandeja deles (devia custar uma fortuna!), que eu provavelmente iria assaltar e devorar em dois dias se ele não mantivesse escondido dos meus braços. Se me lembro bem, acho que era um Kinder Ovo por dia, no máximo, e somente se eu de fato o merecesse pelo meu bom-comportamento e eficácia nos estudos. Nunca existiu instrumento mais eficaz de chantagem moral. Eu, que já era um bom menino, me tornei um santinho perfeito, que podia pular direto do mundo para dentro de um vitral de igreja, tudo tendo em vistas o prêmio paradisíaco do Kinder Ovo. O melhor de tudo é que, ao prazer efêmero que a língua sentia com o chocolate, e que durava no máximo uns 30 segundos, tamanha minha voracidade, se somava o prazer, muito mais duradouro, de colecionar os brinquedinhos. Eu achava todos “uma gracinha”. Tinha uma prateleira no quarto toda apinhada de surpresas de Kinder Ovo. De longe, o que eu mais curtia era uma coleção toda emo de leõezinhos, a família inteira, que tinham apelidos como "Simba" e "Mustafá" - mas não havia nenhum brinquedo que eu achasse feio de verdade. Que ódio furibundo e destruidor ao receber um novo Kinder Ovo e descobrir que era uma surpresa repetida! A fúria por uma figurinha repetida era bem menor. Mas do Kinder Ovo eu exigia sempre algo novo para a minha coleção. Fazia todo um suspense antes de separar as duas metades daquele cilindro amarelinho que vinha circundado pelo ovo chocoláteo, prolongava um pouco o mesmo suspense olhando para o papelzinho que fatalmente vinha junto, e aí então, olhava, palpitante de expectativa, para o meu novo treco kinderiano. Nem do invólucro amarelo do brinquedo eu queria me desfazer – fiz coleção daquelas mega-pílulas idênticas umas às outras e cheguei até à ter a idéia brilhante de enchê-las de água potável, pôr no freezer e usá-las como forma pra fazer gelo. Pena que não sobraram rastros dessa minha velha mania. Abomino eternamente a pessoa que se livrou da minha coleção quando eu cresci e pareci me desinteressar dessas “bobeiras”... Queria tanto poder encontrar no fundo de algum armário lá em casa todos aqueles trocinhos! :/






ELIFOOT – Minha geração, nascida no começo dos 80, foi a primeira a se interessar mais por videogames do que por televisão ou livros, talvez. É claro que eu não fugi à regra: cresci jogando video-games até os dedos ficarem vermelhos e acompanhando admirado o veloz desenvolvimento da tecnologia que nos deixou a todos boquiabertos com o melhorando dos gráficos e da complexidade dos consoles e cartuchos. Comecei no velho Alex Kidd no Master System, passei pelo Sonic e pelo Gran Monaco GP no Mega Drive (saudades da McLaren branca e vermelha de Airton Senna), cheguei ao indispensável Super Mario World no Super NES, pirei com a louca evolução que nos deu o Meia-Quatro (e joguei Mario Kart até enjoar de todas as fases e dar as sovas mais humilhantes na minha irmãzinha nas batalhas, principalmente naquela fase que tinha uns quatro blocões coloridos de Lego como cenário). Mas, por incrível que pareça, acho que um dos jogos eletrônicos que me deixa mais nostálgico é mesmo o clássico da tosqueira total, Elifoot, versão original. Pareço aqueles loucos que preferem o Pong do Atari ou coisas como Pac Man e Tetris aos recentes jogos de Playstation II ou algo que o valha? Sou mesmo. Na primeira vez que instalei essa PORRA no meu PC, quase dei risada do amigo que tinha me recomendado o negócio. Parecia trote. Para quem estava acostumado com todos esses games muito mais complexos e visualmente sedutores que eu citei, para quem já tinha jogado no computador coisas como Phantasmagoria, Twinsen's Odyssey e Full Throttle, aquilo parecia uma imensa bobagem. Eu devo ter pensado: “mas essa merda é uma tosqueira só!” O jogo tinha um fundo verde-bosta horrendo, era todo feito com cores berrantes e os “jogos de futebol” eram “narrados” numa tela cheia de retângulos coloridos, mostrando as quatro divisões do campeonato e um reloginho girando. Muito amadorístico. Eu quase mandei à merda e pensei que meu amigo que tinha recomendado o troço (acho que foi o Gustavo, lá na Metô) - tava tentando me sacanear. Porra, eu era craque no Fifa Soccer no Super NES (fazia altos gols de cabeça!), e o cara me falando que esse jogo estúpido do Elifoot valia a pena?! Aí eu comecei a jogar, louco de raiva porque queria escolher logo o Coringão, entrar logo na disputa pelo título de Campeão Brasileiro, e descobri que o programa me obrigava a começar num timeco de várzea da quarta divisão – tipo o Criciúma. Parecia que o programa tava zoando com a nossa cara. Você sempre caía num time chumbrega, num tinha um tostão furado e seu elenco só tinha nego podre – o “poder” dos caras num chegava no nível 5, quando os artilheiros do campeonato tinham tudo nível 30, 40. E aí você, no papel de técnico e de cartola, ia experimentando diferentes escalações, ia negociando outros jogadores com outros times, melhorando a tua situação... Apaixonei pelo negócio. Ficava louco de alegria sempre que algum time resolvia contratar os meus imensos talentos! Me sentia um Luxemburgo ou um Parreira sendo finalmente descoberto e alçando degraus rumo à glória do futebol nacional. Quando eu vi, estava perdendo horas e horas jogando Elifoot, berrando com o computador a cada gol sofrido ou feito, com uma angústia de técnico que não pode influir no jogo mas só assistir passivamente ao desenrolar da partida. Nem sei quantas vezes acabei campeão brasileiro. Fiquei pró no bagulho. Tive certos times tão foda que nem dava graça. Metia 5 a zero no segundo colocado do campeonato fácil e tinha sempre o maior artilheiro. Mas minha ferida mais incurável é nunca ter conseguido “zerar” chefiando o Corinthians.






GTA – Outro dos games inesquecíveis. Grand Theft Auto é perfeito para mentes perturbadas, perversas e sórdidas. Eu nunca antes tinha conhecido um jogo que nos desse tanta liberdade para realizar os atos mais nojentos, sangrentos e gratuitos: cê podia (e devia!) roubar carros, bater à toda velô em outros veículos, abrir fogo com metralhadora contra os pedestres, atropelar velhinhas inocentes sentadas no banquinho da praça, plantar bombas em lugares os mais estapafúridos – e nem era proibido o genocídio de policiais! Demais! Claro que eu já tinha jogado outros games sangrentos, como aqueles em primeira pessoa que você só via a sua arminha e tinha que matar tudo que surgisse na sua frente (eu sou do tempo do Doom, manjam? Counter Strike já é moderninho demais pro meu gosto...), mas nunca tinha encontrado nada tão perfeitamente satânico quanto a primeira versão do GTA. Eu me apaixonei pelo GTA mais do que por qualquer outra coisa diabólica que eu conheci: mais que Iron Maiden, Metallica, Motorhead, Slayer, Contos da Cripta, Freddy Kruger, Pânico de Wes Craven (curtia tudo – mas GTA superava). O jogo era uma verdadeira Disneilândia da Violência. Se Quentin Tarantino tivesse criado um jogo, provavelmente teria inventado Grand Theft Auto. Minha amiga Aline, dia desses, descreveu com perfeição o charme irresistível do jogo e todo o potencial psicoterapêutico daquele treco: “Assim, com tanta raiva no coração, eu tenho que descontar em algo, e GTA é lindo! Jogo só pela maldade e um dia fiquei muito feliz que eu achei uma comunidade no orkut com gente que também compartilha da minha opinião: o jogo é realmente só pela maldade, com maldade e pela maldade (adorei esse estandarte!), porque o mais legal é realmente o do gráfico tosco, cheio de pixel, muito quadrado, sangrento, sanguinário, sórdido, baixo, lindo!” Lembra quando, na tua infância, naquelas horas em que você ficava enraivecido, a sua mãe recomendava que você desse uns murros num travesseiro ou comprasse um saco de pancadas de boxista? Pois GTA serve à mesma nobre finalidade, mas num grau muito superior: serve pra gente descarregar nossas iras represadas e nossos instintos anti-sociais sem ter medo de ir pra cadeia. GTA era um paraíso para que a gente fosse diabólico à vontade e o quanto quisesse. Eu nunca joguei as versões mais recentes. Gosto mesmo do original. Pode ser mais tosco, mas (ou: por isso mesmo!) é mais legal. A coisa que mais me enchia de alegre euforia era um bagulho chamado KILL FRENZY, que era tipo um brinde que o jogo te dava: um baita duma metralhadora giratória cospe-balas para matar, rapidinho, um monte de palhaços que corriam em linha indiana. Se você conseguisse não deixar nenhum sobrevivente, seus pontos explodiam. Depois descobri um excelente esquema para fazer os pontos se multiplicarem: era só roubar muitos carros, estacionar um ao lado do outro, bem coladinhos, e meter bala em qualquer um deles até que explodisse. Aí, por efeito dominó, o carro do lado explodia, que explodia o carro colado a ele, e assim por diante, num imenso pandemônio incendiário. Era um orgasmo. Pois eu também assino embaixo do estandarte: GTA, eu só jogo pela maldade! [risada diabólica]






TELEFÉRICOS - Já fui a Playcenters e Hopi-Haris, já embarquei em rodas-gigantes e carrosséis, já despenquei de elevadores em queda-livre, já enfrentei montanhas-russas cheias de loopings, já engoli meu cagaço para entrar em túneis-fantasma e casas mal-assombradas, mas nada chega perto da minha nostalgia por teleféricos. Na minha vida, dois teleféricos marcaram: o da Cidade das Crianças, em São Bernardo, onde eu era levado frequentemente quando era bem criança, muitas vezes passeando sentado nos ombros do meu pai, e o (clássico) de Campos do Jordão, que subia uma montanha. Minha mãe, que sempre teve medo de altura, ficava horrorizada com aquele brinquedo – e eu sentia mais vontade ainda de ir ao notar que ela era tão covardona. Sentia vontade de ser valente e mostrar que eu não tinha frescura não e que ia sem tremer naquela cadeirinha suspensa por um fio, que viajava por aí. No começo, claro, eu ia no colo do meu pai, se me lembro bem, todo agarrado a ele, de medo difícil de disfarçar. Depois de uns anos, ficando mais crescidinho, ganhei permissão de ir sozinho. Que clímax na minha vida o momento em que eu pude finalmente me sentar sozinho num teleférico e ir-me embora, tremendo feito epilético, sentado todo tremendo na minha cadeirinha alada, mas deliciado. Já o embarque era um frisson: você não ia lá e simplesmente se sentava na cadeirinha, tranquilamente - a bichinha vinha correndo e você tinha que ficar de pé no X para ser meio que "colhido" ou "ceifado" por ela. E aí decolava... Eu era fissurado naquilo - as pessoas lá em baixo progressivamente se transfomando em mini-criaturas parecidas com formigas... o silêncio que vigorava lá em cima, como se eu estivesse vendo o planeta do espaço... E o medo de que algo desse errado e eu estivesse perto dos últimos momentos da minha tão breve existência. Imaginava mil possibilidades de catástrofe: e se de repente desse um beclaute na cidade ou no parque de diversões e minha cadeirinha ficasse parada lá em cima? O desespero que num ia dar! Iam me resgatar de guindaste? Ou iam instalar uma rede de circo lá em baixo para que eu me jogasse lá de cima? E se desse alguma treta e o fio que sustentava todos os assentos fosse cortado em qualquer lugar de sua longa extensão, num ia ser uma baita duma tragédia em massa? E se eu, sozinho, despencasse lá de cima, escorregando por debaixo da barra de segurança, indo sujar de sangue o pobre solo do parque, meus ossos transformados em mingau? Por isso o grande barato do passeio nem era tanto a possibilidade dum passeio turístico todo feito com uma visão panorâmica ótima da paisagem, mas enfrentar o medo de altura e de morte: chegar vivo no outro lado era o grande prazer e o maior alívio. Hoje em dia, claro, acho que não veria graça nenhuma num passeio de teleférico. Qualquer dia tento um bungee jump.