quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

:: os filmes de janeiro ::


Compartilho aí minhas vastas explorações cinematográficas deste quase defunto mês de janeiro, tradicionalmente conhecido (at least on my neighborhood, fellas!) como o Mês do Bode e que costuma ter este mal-quase-mortal curado com o sempre eficaz remédio da cinefilia. Aliás, pretendo, ao fim de cada mês, daqui pra frente, pôr aqui um desses screenings ("relatório" para os que boiaram!) de filmes vistos, com uma nota numérica de 0.0 a 10.0 dada sem muito pestanejar, seguido por um pódio com meus 3 filmetos prediletos vistos no intervalo em questão. A medalha de ouro desse mês vai para duas garotas brilhantes por quem tenho caído esplendidamente apaixonado: Isabel Coixet, diretora espanhola que fez pelo menos uns 3 filmes lindos (os 3 que vi: Minha Vida Sem Mim, A Vida Secreta das Palavras e Coisas Que Nunca Te Disse), e Sarah Polley, atriz esplêndida (que já atuou em clássicos como O Doce Amanhã e que estreiou na direção ano passado com o singelo Away From Her) que é a principal responsável por fazer de My Life Without Me uma obra-de-arte tão mansamente comovedora. Voilà:

01. TERRA DE SONHOS (In America, de Jim Sheridan [dvd]) - 6.5
02. CHICO BUARQUE: VAI PASSAR (doc. [dvd]) - 7.8
03. MAYOR OF SUNSET STRIP (de George Hickenlooper [divx]) - 7.9
04. MINHA VIDA SEM MIM [2a] (de Isabel Coixet [dvd]) - 9.1
05. O MATADOR (de Richard Shepard [dvd]) - 8.1
06. NELSON FREIRE (de João Moreira Salles [dvd]) - 7.8
07. BEATLES ANTHOLOGY I
08. BEATLES ANTHOLOGY II
09. INVASÃO DE DOMICÍLIO (de Anthony Minghella, 2007 [dvd]) - 8.0
10. UM ESTRANHO NO NINHO [2a] (de Milos Forman, 1975 [dvd]) - 7.1

11. BEATLES ANTHOLOGY III
12. CASANOVA E A REVOLUÇÃO (de Ettore Scola [dvd]) - 7.1
13. MUTUM (de Sandra Kogut, Brasil, 2007 [CineBombril]) - 6.5
14. CONTROL (de Anton Corbjin [divx]) - 7.4
15. SUNSHINE - ALERTA SOLAR (de Danny Boyle, 2007 [dvd]) - 7.9
16. O ULTIMATO BOURNE (de Paul Greengrass, 2007 [dvd]) - 7.0
17. JOE STRUMMER: FUTURE IS UNWRITTEN (de Julien Temple [divx]) - 7.6
18. DESEJO E REPARAÇÃO (de Joe Wright, 2007 [Espaço Unibanco]) - 8.6
19. IN JULY (Im July, de Fatih Akin [divx]) - 5.5
20. MEDOS PRIVADOS EM LUGARES PÚBLICOS (de A Resnais [HSBC]) - 6.8


21. A ESPIÃ (de Paul Verhoeven, 2007 [Frei Caneca Arteplex]) - 4.0
22. DESPERTAR DE UMA PAIXÃO (de John Curran, 2007 [dvd]) - 7.5
23. GÂNGSTER (de Ridley Scott, EUA, 2008 [Villa-Lobos]) - 8.0
24. O TIGRE E A NEVE (de Roberto Benigni, 2007 [Mostra SBC]) - 8.2
25. THINGS I NEVER TOLD YOU (de Isabel Coixet [divx]) - 7.9
26. NACHO LIBRE (de Jared Hess, 2007 [dvd]) - 2.0
27. O ÂNCORA (de Adam McKay [dvd]) - 7.1

28. BLACK CROWES: WHO SHOT THAT BIRD ON THE WINDOWSILL (2004 [dvd]) - 7.7
29. BEATLES ANTHOLOGY IV
30. BEATLES ANTHOLOGY V


pódio do mês:
OURO: MINHA VIDA SEM MIM
PRATA: DESEJO E REPARAÇÃO
BRONZE: O TIGRE E A NEVE

(p.s.: os capítulos do Beatles Anthology não receberam notas pq prefiro dar uma pro treco inteiro, assim que acabar de assistir...)

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

:: sobras da garrafa de groselha ::


Eras geológicas atrás, talvez alguns s'alembrem, apareceu por aqui uma parte d'uma prolixa e detalhada gonzo reportagem sobre o Groselha Fuzz 2007, com a promessa de que o restante do materião sairia no e-zine Scream and Yell. A gente fez negociações com o Marcelo Costa, teve a contribuição acolhida, fomos atrás das fotinhas que não tiramos, enviamos tudo para o Chefe e 'távamos aguardando publicação, mas todo o processo todo foi tão lento que entrou 2008 e o assunto "esfriou" - de modo que não "vira" mais entrar por lá, num zine tão antenado com novidades e acontecimentos saídos agora mesmo do forno. Estou postando aqui, pois, tardiamente, o restante do textão meu e do Bernas dando nosso testemunho e nossa força para o excelente festival ribeirão-pretense que acabou com final infeliz. O fragmento inédito começa depois dos parágrafos dedicados aos nossos amigos do Plano Próximo (que fomos ver em Sampa esses dias, na Livraria da Esquina, junto com os Visitantes, descobrindo contentes que os membros das bandas nos reconheceram e quiseram bater agradáveis papos com seus aliados prediletos na imprensa!). O primeiro parágrafo da parte antes não-publicada começa falando sobre o Motormama, ótima banda (próximo destaque do "Criaturas da Indielândia" lá no Depredando), e depois vai embora com uma Investigação Criminal (quase uma CPI!) ao estilo do filme "Quem Matou o Carro Elétrico?", onde tentamos apontar quem foi o carrasco do nosso tão-querido Groselhão - e dá-lhe tomates pra cima dos grandes festivais patrocinados por multinacionais, pro público alienado que não cava o underground e, claro, muitos ataques de violência gratuita contra os micareteiros, raça com quem temos picuinha velha e antipatia incurável. São opiniões polêmicas de quem leva o amor à indiedade um pouco à sério demais, mas tudo bem - importa que foi uma gonzice escrita com paixão e no calor da hora. :)

Confiram o treco todo, pois, lá embaixão ou clicando aqui...

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

:: amazement ::


Diz o Quintana, sacaneando a arrogância dos Colombos e Cabrais desse mundo, que descobrir continentes é fácil como esbarrar num elefante. Já poeta é quem encontra uma moedinha de ouro perdida no chão, em alguma reentrância secreta da calçada, num lugar onde todos pisam, dia a dia, distraídos demais para atentar ou atentos demais ao hábito para se maravilhar.

Poeta é aquele que anda com o cabeça inclinada para o céu, espantado com o fato de existir algo ao invés de nada, e esmaga o nariz contra o poste, fazendo rir a empregadinha doméstica, que se acha muito mais esperta do que aquele avoado sonhador sem talento algum para a vida prática...

Poeta é quem descobre tesouro em algum canto não notado do mundo pisado e repisado pela multidão que sempre vai a algum lugar, que está sempre de passagem e que nunca entenderia que a viagem é que é a recompensa - e não o chegar a um lugar qualquer.

Poeta é quem acha ouro onde ninguém vê e que, como dizia o Merleau-Ponty, "fixa e torna acessível aos demais humanos o espetáculo de que participam sem saber". Poeta é quem lança um jato de luz sobre uma pérola antes invisível para quase todos, perdida no meio do chão sujo do cotidiano.

E digo mais: poeta é quem viaja pra dentro. E essa, que é ao mesmo tempo a viagem mais crucial e a que menos as pessoas encaram, é a única viagem em direção ao realmente desconhecido que nos resta além da espacial. Porque na Terra tudo já está descoberto, mapeado, catalogado, nomeado, possuído, regulamentado – tudo tem um dono; em todas as coisas do planeta os homens colocaram suas etiquetas; tudo virou coisa que tem um nome, um possuidor, um preço; não há mais continentes a descobrir nem local inabitado a ser achado. A verdadeira Atlântida náufraga está no chão do oceano de nós mesmos, só aguardando que desçamos com nossas máscaras de mergulhador e câmeras de oxigênio para explorar esses arruinados resquícios do tempo.

Poeta é aquele que, mesmo mendigo e esfarrapado, dormindo debaixo das marquises ou nos bancos de praça, sente-se mais rico que qualquer imperador. Pois sabe habitar a Mansão do Universo e, olhando para o Céu, sente-se milionário de estrelas.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

:: mais uma das leituras das férias... ::




JOHN STEINBECK
"East Of Eden"

(A Leste do Éden)

(publicado originalmente em 1952.
Penguin Books Classics, 604 pgs.)

(Livro absolutamente sensacional, majestoso e riquíssimo do mestre Steinbeck! Daria para escrever um livro inteiro sobre esse livraço, que só me fez ficar ainda mais fã do autor de As Vinhas da Ira, que já comentei com muitos louvores tempos atrás. Por eqto, me contento em fazer uma espécie de brainstorming com impressões de leitura deste classicão da literatura americana, aproveitando que tudo ainda está fresco na memória, e meu envolvimento emocional com os personagens ainda está pulsando, para registrar toda essa Experiência Existencial (nada menos que isso!) de ler A Leste do Éden. Vou me esforçar pra colocar no papel o máximo possível de idéias e sentimentos e pensamentos que o livro causou em mim porque tenho um certo medo dos Super Poderes do Esquecimento - e se eu deixar para escrever sobre esse livro daqui um mês, muita coisa já terá se perdido nos cafundós escuros da minha caixa craniana. Melhor não arriscar. Não sei se isso aqui vai fazer muito sentido para quem não leu o livro ou não assistiu o filme [Vidas Amargas, de Elia Kazan e com James Dean, que é do caralho!], mas se eu conseguir empolgar alguém o bastante para que essa obra-prima vá ser lida, já foi um bom trabalho. Aí vai então a 1a parte das minhas Meditações Pessoais sobre East of Eden, tratando principalmente da Cathy Ames e do Adam Trask. Façam um grande favor a si mesmos: desliguem esse computador e corram pra biblioteca!)

* * * * *


“When a child first catches adults out – when it first walks into his grave little head that adults do not have divine intelligence, that their judgments are not always wise, their thinking true, their sentences just – his world falls into panic desolation. The gods are fallen and all safety gone. And there is one sure thing about the fall of gods: they do not fall a little; they crash and shatter or sink deeply into green muck. It is a tedious job to build them up again; they never quite shine. And the child's world is never quite whole again. It is an aching kind of growing.”

A DIABÓLICA CATHY AMES

Somos apresentados a Cathy num capítulo que começa com uma meditação do narrador sobre “os monstros nascidos de pais humanos”. Só isso já demonstra bem que Cathy Ames é desde o início tratada sem perdão pelo narrador: ela é a grande vilã da história - a satânica, a maquiavélica, a manipuladora, a assassina, o bicho-ruim encarnado, Cathy Ames!

Tanta maldade concentrada numa só criatura valeu a Steinbeck a crítica de ter criado uma personagem inverossímil – porque, dizia-se, ninguém é tão ruim assim! Talvez. Às críticas Steinbeck respondeu: “se você pode acreditar em santos, que são totalmente bons, também pode acreditar em alguém que seja totalmente má.” Pois é. Discordo de quem diz que é impossível existir uma pessoa assim, até porque o realismo sóbrio de Steinbeck nunca descamba pr'um enredo de filme de terror, onde a maldade é de fato gratuita e inexplicável. Cathy Ames não deixa de ser humana mesmo quando pratica os atos mais diabólicos. Cathy Ames é uma criação literária tão perfeita, tão crível, tão bem desenhada pela pena do Steinbeck, que ouso dizer que é uma das personagens mais fascinantes da literatura universal. She's a puzzle - let's decipher her!

Cathy é desde o começo descrita como uma aberração da natureza, como se Deus tivesse errado feio ao concebê-la e construi-la (“some balance wheel was misweighted, some gear out of ratio. She was not like other people, never was from birth.” - pg. 74). O narrador sugere até que, séculos atrás, uma garota como Cathy teria sido chamada de “possuída pelo demônio” e “teria sido exorcisada para expulsar o espírito mal, e se depois de muitas tentativas isso não funcionasse, ela teria sido queimada como uma bruxa para o bem da comunidade” (pg. 75).

O atentado contra Adam, uma das cenas mais dolorosas de se ler da história da literatura por mim conhecida, coisa de apertar o coração de qualquer insensível, pode parecer algo claramente injustificável, um ato de pura maldade, uma emanação satânica da alma doentia de Cathy Ames. Mas será realmente tão simples assim? O mais cômodo é mesmo dizer que Cathy Ames já nasceu com propensão para ser demoníaca, que a maldade estava em seus genes, que ela é um daqueles seres humanos que, apesar de não nascerem cegos, mancos ou paralíticos, nascem com uma deficiência ainda mais séria: uma alma mau-formada, totalmente incapaz de qualquer tipo de bondade, de qualquer sinal de grandeza, de qualquer lampejo de amor...

Mas, depois de meditar muito sobre isso, cheguei a uma conclusão bastante simples e com a qual qualquer leitor do livro acho que concordaria: Cathy Ames certamente não se sentia amada de verdade por Adam Trask, que na verdade nada conhecia de verdade sobre ela e estava totalmente cego pela própria idealização.

Adam Trask e Cathy Ames não são um casal de enamorados – na verdade, Steinbeck descreve um clássico caso de amor platônico extremo em que o cara fabrica para si uma deusa, que passa a adorar de joelhos e olhos vendados, mas que não tem lá muito a ver com a pessoa real a quem deveria corresponder. Adam Trask não amava Cathy Ames, eis o ponto – ele estava APAIXONADO. E, como é o caso em quase toda paixão, ele adorava uma criação de seu próprio coração e não um ser humano lá fora, no mundo. Adam Trask nem desconfiava que sua adorada podia ser, por dentro, um demônio; a wolf in sheep's clothes...

A chama da paixão de Adam tinha sido acesa pela visão de uma Cathy frágil, desmantelada e indefesa, que chegou rastejando em sua vida, coberta de sangue e hematomas, ferida como um cachorro atropelado. É a visão daquela mocinha destruída e necessitada que faz com que se erga nele um ímpeto de compaixão e de bondade irresistível... Ele sente que quer ajudar aquela pobre garotinha injustamente maltratada; quer velar o sono dela, levar-lhe remédios, consolar suas dores, insuflar otimismo pelo futuro, oferecer sua mão como acompanhante na longa estrada da convalescença... Em nenhum momento ele se pergunta se Cathy tinha sido espancada quase até a morte daquele jeito por algo de muito ruim que cometera. Adam jamais chegaria a pensar que seu anjinho de asas quebradas pudesse ter merecido aquela sova monumental que tomou! Adam Trask tinha o coração puro demais para sequer conceber as maldades que Cathy Ames já tinha deixado pelo caminho. Enfeitiçou-se, tristemente, pela pessoa errada.

Adam Trask põe sua compaixão e sua paixão no liquidificador junto com altas doses de delírio e põe-se a viver uma doce vida de daydreamer... Ele confessa, num trecho crucial: “I mean to make a garden of my land. Remember my name is Adam. So far I've had no Eden...”. E ele, Adam, pensa ter achado sua Eva e se decide a reconstruir uma réplica do Éden em Salinas Valley, Califórnia. Eles teriam filhos dos mais lindos, iniciando toda uma dinastia dos Trask... Os campos verdejantes, e os moinhos, e os cursos d'água, e as montanhas no horizonte, tudo seria uma beleza de ser ver... E Cathy, sua linda Cathy, o amor de sua vida, estaria lá, angelical, auréolas brilhantes sobre a cabeça, coroando esse Paraíso Terreste que Adam pensa poder construir...

"Burned in his mind was an image of beauty and tenderness, a sweet and holy girl, precious beyond thinking, clean and loving, and that image was Cathy to her husband, and nothing Cathy did or said could warp Adam's Cathy..." (pg. 135)

O grande problema é que ele se engana, e se engana feio. Ele se apaixona mais por compaixão do que por verdadeira “admiração” pela pessoa que ela é. Ele se compadece da fraqueza dela e começa a “amar” uma garota que não conhece, que não tem a mínima idéia de quem é, e isso só porque ela apareceu toda estropiada em sua porta... Se Cathy Ames aceita a proposta de casamento, certamente não é por se sentir amada e reconhecida, pois ela obviamente sabia melhor que ninguém o quanto Adam Trask delirava em sua paixão lunática. Durante o casamento todo, Adam Trask não deixou por um instante sequer de ser um escravo de sua própria alucinação.

Claro que, sem dúvida, não há nada de reprovável ou desprezível nesse súbito enternecimento que leva Adam Trask a querer ser o mais bondoso dos homens com uma criatura desconhecida que se acha em sérios apuros – muito pelo contrário! É bonito e comovedor que ele se sensibilize e se comprometa ao invés de largar a moça à sua própria sorte – ou seja, à sua própria morte, pois ela não teria sobrevivido sem a mãozinha de Adam. E não há dúvida de que o leitor sente um imenso aperto no coração vendo tanta bondade desperdiçada e tanto carinho recebido com indiferença.

Steinbeck nos faz sentir pena da pobre vítima Adam Trask, tão cruelmente dilacerado por esse monstro de frieza e desconsideração que é Cathy Ames... Tanto que a descoberta súbita da “Maldade Incorrigível” da esposa é algo tão traumático que causa quase a morte de Adam. Depois do choque, ele passa a caminhar pelo mundo como um zumbi ou um sonâmbulo, se desinteressando de tudo. Os campos são deixados sem cultivo. Os gêmeos são praticamente abandonados. Nem sequer recebem nomes.

O maior dos ferimentos não é o causado pela bala de revólver – isso sara, cicatriza, esquece-se... - mas a chaga aberta de uma decepção monumental. Quando o véu cai e Adam Trask finalmente vê a verdadeira face da pessoa que ele pensava amar, ele vai a nocaute com o choque. Poucos episódios na literatura universal descrevem tão bem essa dialética fatal entre idealização e desencanto, paixão e decepção... Depois do baque, Adam Trak cai num longo período de patologia psíquica (“seeing the world through grey water”...) que poderia muito bem estar como um “estudo de caso” no Luto e Melancolia de Freud. Adam Trask tinha rasgado a máscara esplêndida e angelical que ele mesmo havia confeccionado para Cathy e pregado ao rosto dela, e o rosto demoníaco que ele viu foi uma punhalada tão grande em seu coração que ele nunca mais se recuperou de fato. Iria certamente morrer de desgosto e deixar os meninos Cal e Aron órfãos se não fosse a intervenção firme e salutar de Samuel Hamilton.

Conheço poucas obras de arte que retratem tão bem o quanto uma paixão avassaladora, quando acaba num súbito desencanto, deixa o coração e a mente do ex-apaixonado em frangalhos a ponto de ele cair quase morto. A insanidade da paixão é um caminho que frequentemente deságua no abismo da morte. Adam Trask quase caiu nele. Seu filho Aron, negando a teoria de que a geração mais jovem age melhor que a antiga, cairá. Mas isso é outra história...

* * * * *

Mas seria Cathy essa terrível criatura que RECUSA o amor mais puro e dedicado deste mundo? Que é tão gélida que jamais pôde se comover com todos os agrados e chamegos que o bom Adam lhe ofertava? Que é tão desumana a ponto de não conseguir sentir um pingo de gratidão e reconhecimento por seu bondoso benfeitor? Aparentemente é isso mesmo: Cathy Ames tem o coração completamente congelado; não se comove com nada; nenhum amor a aquece; nenhum carinho a retira da apatia; nada a empolga, nada a eleva. Ela é feita de cinzas, de gelo, de pedra. Um iceberg em forma de mulher.

A única desculpa que Cathy tem é esse fato: Adam NÃO a amava de verdade – mesmo que ele não soubesse disso. Ela sabia. Cathy sabia o quanto ela era diferente da pessoa que Adam imaginava. E sabia que ele seria incapaz de amá-la como ela de fato era. A verdade revelada só traria Desencanto e nunca o Amor Verdadeiro. Tudo bem que ela poderia ter tido mais gentileza e cuidado no trato com o pobre apaixonado, mas Cathy era uma mulher grosseira e que não tinha o mínimo pudor de machucar. E "era preciso". Pois aquele casamento não passava de uma cadeia para ela. Imaginem o terror de sentir aquela horrível solidão cotidiana de sentir e saber que Adam não olhava para ela, não amava a ela, de verdade, mas àquela outra Cathy que só existia na fantasia dele. Imaginem o fardo que era ser sempre convidada a assumir um papel que ela não queria no Filme de Amor Perfeito e Correspondido no Éden Americano que Adam Trask queria que ela interpretasse. Imaginem o quanto Cathy se sentia quase “traída” por Adam – que amava um fantasma angelical e mal conseguia ver a pessoa real à sua frente. Ela se cansa e estoura a farsa com um disparo. Todo um mundo desmorona. And then the godess comes crashing down.... Não são só as crianças que perdem deuses, afinal.

Cathy é uma espécie de “prova” de que ser “objeto de idealização” é bem diferente de ser “objeto de amor”. (Se é que um personagem literário pode “provar” algo sobre a natureza humana! Mas Steinbeck, homem de experiência e psicólogo de primeira, não faria sua personagem agir de modo completamente inverossímil dentro dum romance tão realista – e as ações de Cathy são monstruosas, sim, mas ao mesmo tempo humanas, demasiado humanas.) A PESSOA IDEALIZADA NÃO SE SENTE AMADA. Especialmente se a pessoa notar uma discrepância muito grande entre a imagem e a realidade – o que, neste caso, é enorme: a Cathy que Adam tem dentro de si é radicalmente diferente da Cathy de verdade. Ele delirava. Para Cathy, viver com um louco não seria muito diferente. Ela não atira no homem que ama; atira no homem que tinha se enganado grotescamente sobre ela e tinha fabricado uma imagem dela completamente distorcida – distorcida “pra cima”, “pra melhor”, “para o Bem”, é verdade, mas não deixa de ser uma distorsão e uma ilusão.

Talvez seja mais fácil compreender Cathy com isso em mente: ao invés de ser amada, ela estava sendo confundida com outra; ao invés de ser aceita pelo que é, estava sendo convidada a ser o que nunca poderia ser; ao invés de se sentir lisonjeada pela paixão tão pura e doce de Adam, ela se sentia sufocada e aprisionada. Que Cathy tenha atentado contra Adam por não se sentir amada de verdade não é algo que Steinbeck diga explicitamente (mas muita coisa em “A Leste do Éden” fica “em aberto”), mas é uma conclusão plausível.

O problema é que Cathy não sai pelo mundo em busca de um novo amor, um amor melhor, um amor que fosse por ela e não por uma imagem – ela vai direto ao puteiro, onde poderá observar de camarote o espetáculo diário da degradação humana e se convencer de suas teorias de que, afinal de contas, a humanidade é mesmo canalha e que, no fundo, ninguém presta. Talvez seja isso o que faça de Cathy Ames um personagem tão diabólico: ela não crê sequer na possibilidade de alguém ser bom e justo e caridoso. Ela tem uma visão de mundo extremamente fechada e preconceituosa que pretende que os homens não passam de máquinas egoístas e taradas, escravas do instinto sexual e do interesse ególatra, e não há nada mais além disso.

“Cathy learned when she was very young that sexuality with all its attendant yearning and pains, jealousies and taboos, is the most disturbing impulse humans have. And in that day it was even more disturbing than it is now, because the subject was unmentionable and unmentioned. Everyone concealed that little hell in himself, while publicly pretending it did not exist – and when he was caught up in it he was completely helpless. Cathy learned that by manipulation and use of this one part of people she would gain and keep power over nearly everyone. It was at once a weapon and a threat. It was irresistible. And since the blind helplessness seems never to have fallen on Cathy, it is probable that she had very little of the impulse herself and indeed felt a contempt for those who did. And when you think of it in one way, she was right. (...) What freedom men and women could have, were they not constantly tricked and trapped and enslaved and tortured by their sexuality! The only drawback in that freedom is that without ir one would not be human. One would be a monster.” (77)

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O narrador só pincela os fatos da infância de Cathy, mas já sugere muitas hecatombes espirituais dentro da alma da pequenina Ames. Não há sinal algum de que Cathy se sentisse amada de verdade por seus pais, colegas e concidadãos. Ela parecia ser muito mais esperta que todos ao redor e, como diz o narrador, “she climbed into clouds where her parents could not follow” (81). E bem cedo na vida dela parece ter havido um despertar sexual um tanto precoce, justo numa época ainda puritana em que a sexualidade era tabu e “os pais, negando-a em si mesmos, ficavam horrorizados ao encontrá-la em seus filhos” (pg. 77).

Cathy, pêga no flagra com dois meninos fazendo “coisas indevidas” para uma mocinha de sua idade, acaba recebendo todo um imenso despejo de repressão social da sexualidade. “Punições eram mais selvagens naquela época do que são agora”, comenta o narrador, “e um homem realmente acreditava que o chicote era um instrumento de virtude” (79).

Cathy Ames teve sua sexualidade mutilada quando criança e viu a libido ser "demonizada" pela família e por toda a sociedade, que manda para o reformatório os jovens "taradinhos" e faz o maior fuzuê com a "vergonha" que são crianças brincando "dessas coisas" muito "antes da hora". Prova de que Cathy teve traumas de infância suficientes para nunca mais poder ter uma vida sexual natural e nunca mais poder acreditar que a sexualidade poderia ser um impulso absolutamente sadio e natural, ao invés de ficar com a idéia, nela implantada pela “Sociedade”, de que o sexo é coisa do Demônio e precisa ser radicalmente exterminado. Seu “monstruoso” assassinato incendiário só se explica pela inanição afetiva que ela sentia, pela solidão imensa de sentir que os pais não a conheciam de verdade (nem um pouco!) e pelo ódio por receber chibatadas e inaceitação ao invés de amor e reconhecimento. Isso não desculpa seus crimes; mas pelo menos pode fazer com que a vejamos sob uma luz um pouco mais misericordiosa...

Fica a impressão de que esfregaram na cara dela que a "Libido é do Mal", e depois Cathy foi lá, como uma discípula de Freud, e investigou os homens e mulheres só para descobrir que não há muita coisa além de libido motivando nossos atos. Daí para pular para a conclusão de que os homens são movidos por um instinto totalmente mau e são, portanto, todos canalhas, foi um pulo. Daí para a idéia de chefiar um puteiro só para ter provas contundentes da canalhice humana foi outro pulo - e bem sabemos que ela reúne "material" suficiente para desgraçar a reputação de uma pá de gente graúda em Salinas Valley. E da idéia de que todos são canalhas para a permissão dada a si mesma para também ser, e inclusive para se permitir o assassinato, mais um pulinho...

("Cathy had the one quality required of a great and sucessful criminal: she trusted no one, confided in no one. Her self was an island." - pg. 160)

Talvez esteja aí a “essência da monstruosidade” de Cathy Ames: no fato de que ela parece não se importar nada com o amor humano. Ela dá a impressão de ser uma daquelas pessoas que diz com toda a convicção que o amor não existe e que tudo, no fundo, é decorrência da libido e do instinto sexual. Cathy cospe com desprezo sobre o Amor. Ela machuca de propósito todas as pessoas que gostam dela e procuram transmitir a ela algo que uma pessoa normal consideraria Afeto Verdadeiro – como Faye e Adam. E ela machuca sempre usando o mesmo instrumento de tortura: a verdade subitamente revelada causando o terrível terremoto do Desencanto. É como se ela punisse os outros por não conhecerem-na direito. Mas ela usa esse engano a seu favor por quanto tempo lhe convêm, assumindo o papel que o idealizador lhe fornece, colocando gás na ilusão, só para que o estrondo do estouro da bexiga seja maior quando ela vier com o alfinete em mãos para o novo ataque sádico...

Se Steinbeck está certo ao sugerir (pg. 414) que todo ser humano, lá no fundo, deseja ser bom e deseja ser amado, então o que faz Cathy Ames ser “desumana” e “monstruosa” é a aparente indiferença completa que ela demonstra por amar e ser amada. Como se achasse uma besteira se preocupar com isso. Como se fosse uma pessoa daquelas que é capaz de dizer com toda a convicção: “Não estou nem aí se as pessoas me amam ou não... tô me lixando!” A Leste do Éden nos deixa com a impressão de que a pessoa mais horrível, mais diabólica e mais egoísta de todas é aquela que vira as costas para o amor e se entrega àquela mistura amarga de cinismo e niilismo que transforma a vida numa longa temporada no inferno.


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CAIM E ABEL REVISITED

East Of Eden é um livro ricamente alegórico, que lança uma nova luz sobre certas parábolas bíblicas (se bem que adaptadas para o EUA rural do começo do século 20), especialmente a do Pecado Original e a saga de Caim e Abel. São “duas histórias que nos assombraram e nos seguiram desde o início”, carregadas como “rabos invisíveis” pelos homens de todos os tempos – é o que sugere Samuel Hamilton. Daria pra dizer, forçando um pouco a barra, que Adam interpreta um Adão que é expulso do Éden de sua paixão platônica pelos atos diabólicos de sua Eva Cathy Ames; e que os dois filhos do casal, Cal e Aron, vão representar de novo o drama de rivalidade e ciúme de Caim e Abel (“such a short story to have made so deep a wound!” - comenta um personagem).

Na contra-capa da edição da Penguin Books, está escrito que Steinbeck explorou em East Of Eden alguns de seus temas mais duradouros, entre eles “the murderous consequences of love's absence”. Achei a expressão perfeita. Pois, pensando bem, o que é o assassinato de Abel exatamente isso, uma consequência sanguinária da ausência de amor sentida por Caim? E não deixa de ser interessante que um “conto” como esses seja uma das histórias mais conhecidas da história da humanidade, ainda viva depois de milênios, o que dá muito o que pensar. Samuel Hamilton filosofa sobre isso num trecho crucial:

“I think this [Cain and Abel] is the best-known story in the world because it is everybody's story. I think it is the symbol story of the human soul. (...) The greatest terror a child can have is that he is not loved, and rejection is the hell he fears. I think everyone in the world to a large or small extent has felt rejection. And with rejection comes anger, and with anger some kind of crime in revenge for the rejection, and with the crime guilt – and there is the story of mankind. I think that if rejection could be amputated, the human would not be what he is. Maybe there would be fewer crazy people. I am sure in myself there would not be many jails. It is all there – the start, the beggining. One child, refused the love he craves, kicks the cat and hides his secret guilt; and another steals so that money will make him loved; and a third conquers the world – and always the guilt and revenge and more guilt. The human is the only guilty animal.” (pg. 271)

Esse me parece um dos parágrafos mais ricos da obra-inteira e uma das chaves para entendê-la. O anseio por amor, quando não é satisfeito, quando a pessoa se sente rejeitada, acaba se transformando em vingança, mágoa, ressentimento e, frequentemente, violência. É uma história que se repete milhões de vezes: a criança vê seus pais dando mais atenção e carinho para seus irmãos e fica enlouquecida de ciúme; quer destruir o irmãozinho, cortá-lo em pedaços, rezar para que ele suma do Universo e nunca volte... Sentimento que é reprimido, claro, e que gera culpa. E a culpa gera a angústia e, às vezes, algum desejo de “reparação”. Nada melhor para que alguém entre no caminho da filantropia do que uma consciência pesada... É o que diz Lee numa frase genial: "There's no springboard to philanthropy like a bad conscience." (pg. 379)

É uma perspectiva extremamente realista e trágica a que Steinbeck expõe aqui. Porque costumamos pensar no Amor como um sentimento obviamente positivo, nobre e edificante, como algo indubitavelmente do Lado do Bem, mas raramente notamos o quanto o anseio por amor (que talvez seja universal e presente na natureza humana), pode trazer as consequências mais sangrentas quando é insatisfeito. Quantas das violências, dos crimes passionais, das vinganças cruéis, não foram praticadas por força dessa ausência do amor onde ele era esperado e não apareceu? É o caso de Caim sendo rejeitado por Deus e ficando louco de ciúme contra o seu irmão Abel, injustamente preferido! Caim mata não porque ele é “extremamente maldoso” - ele mata como uma revolta pelo amor desejado e não recebido. História da humanidade.

Tudo bem que, pensando bem, a revolta de Caim estaria muito melhor dirigida se tivesse como alvo o próprio Deus, que, como o próprio Adam Trask diz, agiu de um modo extremamente arbitrário e injusto aceitando Abel e rejeitando Caim – é mais um daqueles momentos de cúmulo de sadismo do velho Jeová. Mas as criaturas não costumam ter coragem de questionar o Criador. É o “concorrente ao amor do Pai” quem paga o preço.

O que é o crime de Caim senão a revolta contra a injustiça do Pai na distribuição dos afetos? Que é o crime de Caim senão a revolta do mau-amado contra o bem-amado? Claro que o mais simples é dizer que Caim mata por ciúme, por inveja, por egoísmo, sendo irremediavelemente culpado e sujo e merecedor das punições que caem sobre ele. Mas é uma perspectiva muito radical. O tom condenatório se amaina se pensarmos que foi a carência afetiva que o levou para o “caminho do Mal”, que foi a incompreensível arbitrariedade no comportamento do Pai que gerou a “revolta” - afinal, por que o presente de Abel é acolhido com alegria e gratidão e o presente de Caim é desprezado? E como não se revoltar contra comportamento tão desigual? Tudo que Caim queria era ser tão amado e reconhecido quanto seu irmão era pelo Pai. É a fome de amor não satisfeita o que dana Caim. Abel, o filho bem-amado, falece. Caim, o assassino enciumado, sobrevive. Dele descende toda a humanidade. Somos todos filhos de Caim. A idéia parece ser que a humanidade repete inumeráveis vezes a saga de Caim e Abel – única razão para que, depois de dois mil anos, ela não tenha morrido ou sido esquecida.

Do anseio insatisfeito por amor nasce o ciúme, a inveja, a violência, a depressão e tantos outros males que assolam tantos personagens de East Of Eden. Isso fica claro nas duas histórias envolvendo irmãos que Steinbeck narra – Charles e Adam Trask, Caleb e Aron. O anseio por amor , quando insatisfeito, é o que dana Charles Trask, que sai atrás de de seu irmão Adam Trask com uma machadinha e impulsos assassinos quando descobre que o vira-latas que seu mano deu de presente para o velho agradou muito mais do que a faca que ele, Charles, presenteou ao ancião Cyrus Trask.

Na próxima geração, a maldição se repete. Caleb Trask, endoidecido de ciúme pelo irmãozinho mimado que chega para visitar o pai e é ultra bem-recebido, roubando o dia, comete sua “maldade suprema” de destruir de um só golpe a mais doce ilusão do pequeno Aron: a angelidade de sua própria mãe. Provavelmente Cal não sabia disso, mas o golpe que deu no irmão foi quase fatal. Quando Aron se filia ao exército, parece ao mesmo tempo um ato suicida (não vale mais a pena viver depois que a imagem da Mãe Angelical é destroçada em mil pedaços) e a expressão de uma vontade homicida louca (já que o mundo é essa porcaria, vou lá meter bala em todo mundo...).

East Of Eden está povoado com exemplos das tais de “murderous consequences of love's absence”. A ausência de amor se transformando em violência e sofrimento está por todo lado. Está no atentado que Charles Trask perpetra contra Adam. Ela está na angústia extrema que assola Cal quando ele percebe que o presente que ela tanto trabalhou para dar ao pai (toda a grana que o velho tinha perdido com o fracasso de seu empreendimento com legumes congelados!), é recusado e desprezado. Ela está na desolação de Aron ao descobrir que sua mãe, Cathy Ames, é um ser humano horrendo e absolutamente incapaz de amar. Ela está também na melancolia dos apaixonados desiludidos, que esperaram ser felizes ao lado de suas amadas (Adam ao lado de Cathy Ames, Aron ao lado de Abra), mas que descobrem que não são amados de volta pelas deusas que idolatram.

Em todo lado, a mesma história: um anseio por amor, mesclado com o medo da rejeição (“rejection is the hell he fears...”), acabando por gerar rivalidade, ciúme e pensamentos/atos que enchem o ser humano de culpa (“what burden of guilt man have!”). Steinbeck, que não é muito fã de finais felizes, não nos concede muitas esperanças ao fim de East of Eden – parece que somos todos filhos de Caim e iremos repetir a mesma saga de geração em geração. "Timshel!" é uma esperança, uma promessa de "superação do pecado", mas nada que nos garanta que um dia a humanidade poderá viver em paz - sempre haverá peitos esvaziados demais para que a guerra e a violência não se alastrem mundo afora.

Um coração que ronca de fome é uma fera perigosa.

* * * * * *

Apesar disso, Steinbeck, longe de ser um misantropo ou um pessimista se abandonando ao derrotismo, demonstra em vários momentos ser um autor cheio de compreensão e de misericórdia pela humanidade. O trecho que segue é boa prova disso e uma boa pedida para finalizar esse texto com um certo brilho no fim do túnel:

"I am certain that underneath their topmost layers of frailty men want to be good and want to be loved. Indeed, most of their vices are attempted short cuts to love. When a man comes to die, no matter what his talents and influence and genius, if he dies unloved his life must be a failure to him and his dying a cold horror. It seems to me that if you or I must choose between two courses of thought or action, we should remember our dying and try so to live that our death brings no pleasure to the world." (pg. 414)

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

:: uma das leituras das férias... ::


KEN KESEY
"Um Estranho no Ninho"

(One Flew Over The Cuckoo's Nest, originalmente publicado em 1962, Ed. Best Bolso, 418 páginas, 18 reais, tradução de Ana Lúcia Deiró.)

Poucos sujeitos marcaram tanto a contracultura dos anos 60 quanto Ken Kesey (1935-2001). O cara, com seu jeitão de lutador de luta livre ou de vaqueiro sulista fanfarrão, conseguiu a proeza de ser ao mesmo tempo um autor americano de renome, um polemista de plantão e um ícone da juventude beatnik e hippie. A lista de suas proezas é imensa - conto só as principais: junto com Timothy Leary, Ken Kesey foi um dos “gurus do LSD” que, a partir do começo da década de 1960, ajudou a espalhar a Epidemia do Ácido que iria varrer o mundo a partir de 1965; junto com sua gangue de Merry Pranksters, viajou num ônibus doidão por 6 meses, atravessando a América de Costa a Costa como se vivesse dentro dum road movie psicodélico; virou personagem principal de uma histórica gonzo reportagem de 500 páginas escrita por Tom Wolfe (“O Teste do Ácido do Refresco Elétrico”); quase foi eleito o Messias de uma Nova Religião Juvenil; teve problemas com as autoridades e deu um tempo brincando de fora-da-lei foragido no México, mas depois acabou indo em cana nos EUA por posse de maconha (e na cadeira escreveu Diários do Cárcere). Mas sua maior contribuição à cultura americana foi mesmo seu primeiro romance, Um Estranho no Ninho, livro elogiadíssimo pela crítica e adaptado para o cinema no clássico de Milos Forman que dispensa apresentações.

Tom Wolfe conta que Kesey “escreveu muitas passagens do livro sob o efeito de peiote e LSD” e que, feito um William Burroughs e outros beatniks, “escrevia feito um louco sob o efeito de drogas. Depois que terminava o efeito, via que boa parte daquilo era lixo. Mas alguns trechos – como os do Cacique em seus delírios esquizofrênicos – provavam ser verdadeiras VISÕES, um pouco do que a gente podia ver se abrisse as portas da percepção, cara...” (57) Conta-se também que Kesey chegou a trampar em um hospital psiquiátrico, podendo observar de camarote os procedimentos internos de uma instituição do tipo e podendo conhecer gente real que inspiraria seus personagens. E pode ser boato, mas conta-se ainda que “chegou mesmo a fazer com que alguém o submetesse ao tratamento de choque clandestinamente” para escrever com maior verossimilhança sobre os efeitos do treco sobre os personagens do romance. Um mártir da literatura! E muito louco.

Neste caso, a comparação entre filme e livro não é somente um recurso cômodo, mas algo essencial e fundamental. Porque é bem provável que a adaptação cinematográfica talvez tenha deixado uma cicatriz mais profunda na Cultura Contemporânea do que o próprio livro, valendo a pena fazer a velha pergunta: o filme faz jus à obra-literária a ponto de dispensar a leitura? E neste caso a resposta é um veemente “não!” - não, o filme não chega aos pés do que Ken Kesey arquitetou e ler o romance é uma experiência muito mais que válida - é enriquecedora até pra quem já conhece de cor e salteado a versão hollywoodiana.

O filme de Milos Forman, que papou quase todos os Oscares Fodões de seu ano (filme, diretor, ator, atriz e roteiro adaptado), empalidece e decepciona quando comparado com o magistral romance de Ken Kesey. Jack Nicholson pode ter encarnado McMurphy com muita garra e tesão, numa das performances mais clássicas de sua carreira, mas o McMurphy de Ken Kesey é um personagem muito mais poderoso, melhor delineado e mais digno de um “status mitológico” do que o arruaceiro meio ingênuo que vemos nas telas.

Quem assiste ao filme de Forman pode ficar com a impressão de que McMurphy não passa de um fora-de-lei malandrão, que arranjou um atalho fácil para fora da prisão se fingindo de doido varrido, e que no fundo não passa de um brutamontes tosco com titica no cérebro. Ao ler o livro de Kesey, a “estatura” de McMurphy aumenta incrivelmente e ele se torna algo muito mais colossal e grandioso – não somente um Cara Muito Esperto e Sagaz, não somente um Jato Contínuo de Lucidez Irreverente, mas uma espécie de Mártir que deixa o mundo dos reles mortais para entrar no reino dos Modelos Éticos. A impressão que fica é que Todos os homens deveriam aprender a ser mais como McMurphy, parece nos dizer Ken Kesey. Ah, como o mundo seria melhor...

McMurphy é o cara que vai pôr às claras para todos os internos do Hospício toda a hipocrisia envolvida nos procedimentos diários daquele lugar, desmascarando uma falsa democracia, acusando a existência de um Estado Policial e conclamando todos a um Justíssimo Levante de Escravos. As sessões de discussão em grupo passam a ser tidas como “festas de bicadas” e a Chefona uma “capadora de colhões” - “que tenta fazer com que você fique fraco para que possa obrigá-lo a entrar na linha, a seguir as regras deles, a viver como eles querem que você viva” (89). Num diálogo magistral, que infelizmente foi omitido no filme, os pacientes discutem com lucidez ímpar sua própria situação existencial comparando-se com coelhos que se assustam com os lobos. Harding, por exemplo, comenta: “O ritual de nossa existência está baseado no fato de os fortes ficarem mais fortes por devorarem os mais fracos. (...) Os coelhos aceitam seu papel no ritual e reconhecem o lobo como o forte. Para se defender, o coelho torna-se esperto, assustado, arredio e cava buracos e se esconde quando o lobo está por perto. E ele resiste, vai continuando. Conhece seu lugar. É absolutamente certo que ele não irá desafiar o lobo para um combate” (94). McMurphy é o valentão que vai tentar convencer esses fracotes homens-coelho que eles devem se erguer e enfrentar o lobo.

Fica claro, por exemplo, que o filme não soube dar a devida ênfase à imensa transformação positiva que a chegada de McMurphy gera naquele ninho de loucos. Durante o filme inteiro fica-se com a impressão de que aquelas pessoas naquela zona de manicômio já são todas um tanto insubmissas, desobedientes e intratáveis e que McMurphy, apesar de mentalmente são, está “entre iguais”. Já a impressão que deixa o livro de Kesey é totalmente diferente: McMurphy chega num hospital psiquiátrico que é todo certinho, asseado e comportado, lotado de pacientes submissos e trêmulos, que não são sequer capazes de dar risada ou cantar. Todos ali percebem que o forasteiro ele é diferente de todos ao redor, superior a todos ao redor, muito mais livre, espontâneo e irreverente do que todos, e que, aos poucos, vai exercer uma influência extremamente benigna sobre os coelhinhos obedientes que ali viviam através de suas seminais aulas de Desacato à Autoridade e Questionamento Vigoroso das Regras Vigentes.

No livro de Ken Kesey, antes de McMurphy o hospício se parecia com uma espécie de convento cheio de ovelhinhas medrosas e sérias, que tremiam de pavor frente à autoridade da Chefona e que se submetiam às maiores barbaridades com um conformismo absoluto. Depois de McMurphy, o hospício vai gradualmente ganhando vida e os internos vão ganhando independência, irreverência, individualidade e coragem. O McMurphy de Kesey É um Libertador de Almas Aprisionadas. É um Instrutor de Vôo que quer ensinar aqueles passarinhos enjaulados a baterem suas asas para longe de suas gaiolas. É quase um Ícone Contracultural que percebe os descalabros cometidos pela Sociedade Como um Todo – sociedade esta que procura padronizar comportamentos e mentalidades e acaba por condenar o “diferente” com o rótulo de “louco”. O McMurphy de Kesey é um cara que “a Liga não apanhou com seus controles”. Nada disso fica devidamente evidenciado pelo filme de Milos Forman. Os loucos de Milos Forman não parecem ter o mínimo brilho intelectual ou lucidez; já os loucos de Kesey são frequentemente brilhantes ao ponto de serem quase Gênios Incompreendidos – só ver o narrador Chefe Bromden ou o intelectual Harding.

Quando a gente lê o livro de Kesey, fica com o sentimento de que estamos frente a uma luta colossal entre o Bem e o Mal – e que aquele valentão irlandês, o desordeiro incorrigível McMurphy, na verdade é o representante do Bem e do Certo, enquanto que a Chefona seria a carrasca a quem a sociedade deu o poder de “programar” certos indivíduos que saíram dos padrões adequados. “A enfermaria é uma fábrica da Liga”, escreve Kesey. “Serve para reparar os enganos cometidos nas vizinhanças, nas escolas e nas igrejas, isso é o que o hospital é. Quando um produto acaba, volta para a sociedade lá fora – todo reparado e bom, como se fosse novo, às vezes melhor do que se fosse novo, traz alegria ao coração da Chefona; algo que entrou deformado, todo diferente, agora é um componente em funcionamento e bem ajustado, um crédito para todo o esquema e uma beleza para ser observado” (62).

Muitos leitores talvez não percebem todo o sarcasmo que existe por trás dessas palavras – mas quem sabe quem é Ken Kesey sabe também o ódio que ele tinha contra esse Complô Social para o Extermínio da Diferença e sabe que, nesta magistral metáfora que é Um Estranho No Ninho, ele estava metendo o dedo fundo na ferida da sociedade americana, que desejaria fabricar na linha de montagem indivíduos que estivessem felizes com uma vida de Trabalho Assalariado, Patriotismo Impecável, Passeios no Shopping e no Mercado e Boliche aos Fins-de-Semana – The American Dream... McMurphy, para Ken Kesey, é muito mais do que um espertalhão que acabou caindo num hospício – ele é um tipo que representa “uma ameaça a toda a organização bem lubrificada do esquema” (64). E não há dúvida de que Kesey gosta pra diabo desse herói iconoclasta e rebelde que criou e que se lança num louco atentado contra o Sistema! Nós, leitores, também acabamos gostando muito mais dele do que da antipática Chefona. Missão cumprida, Kesey – onde assino o formulário para entrar em vosso Exército de Merry Pranksters?

* * * * *

O VILÃO MENOR E O VILÃO MAIOR

No filme de Milos Forman, a Chefona não chega nunca a ser realmente alçada ao status de uma Grande Vilã, muito menos descrita como a representante de uma Instituição Social bem mais vasta que Kesey vai chamar de Liga. Já quando a gente lê o livro de Kesey, percebe que ele despejou uma imensa quantidade de Cólera e Desdém sobre o personagem altamente Demonizado da Chefona, que acaba nos parecendo uma pequena Hitler arrogante e metida a besta que controla com rigidez férrea uma espécie de Campo de Concentração onde “o Sistema” procura extirpar o vírus da individualidade e tornar-nos todos seres idênticos uns aos outros.

A Chefona de Kesey é uma agente secreta do Lado de Fora que está ali contratada para ajustar aqueles do Lado de Dentro às “regras do sistema”. E não é preciso dizer o quanto de desdém que Ken Kesey, esse grande rebelde beatnik da contracultura dos anos 60, tinha contra o tal do “Sistema”. Estabelecer um paralelo com o Laranja Mecânica de Burgess/Kubrick não é nada difícil.

A Chefona, escreve Kesey com ferocidade, “está sonhando um mundo de precisão, eficiência e limpeza, como um relógio de bolso com o fundo de vidro, um mundo no qual a programação é intocável e todos os pacientes que não estão do Lado de Fora, obedientes sob o seu comando, são Crônicos em cadeiras de rodas com sondas que descem direto de cada perna para o esgoto sob o assoalho” (47).

O inimigo é “a Liga inteira, a Liga de proporções nacionais, a força realmente grande” - sendo que “a enfermeira é apenas um de seus oficias de alta patente” (248). O Chefe Índio, por exemplo, ao sair do manicômio para dar uma volta pela cidade, nota o quanto o Lado de Fora também tinha sido moldado e controlado pela Liga. “Por todo o caminho em direção à costa, eu podia ver sinais do que a Liga havia conseguido fazer desde que eu estivera por ali pela última vez, como, por exemplo, um trem parando numa estação e despejando uma fileira de homens de ternos de um mesmo feitio e chapéus feitos em série; despejando-os como uma ninhada de insetos idênticos...” (308).

É por isso que, para Kesey, o comportamento criativo, original e irreverente de seu herói McMurphy é completamente elogiável e merecedor de imitação. Kesey parece dizer que é só assim que pode-se derrotar o Sistema de Homogeinização Social que está rolando por aí e que nós ter todos iguais em mentalidade, em costumes e em comportamento. McMurphy traz de volta a irreverência e o bom humor, usando o sarcasmo como uma arma de guerra; faz com que erga naqueles homens sem gosto de viver a vontade de festejar e fazer orgias e bagunçar o coreto; luta contra a repressão sexual como um Libertador de Libidos Recalcadas; manda todo mundo ser autêntico e ser si-mesmo ao invés de agir de acordo com demandas sociais... McMurphy é o sujeito que não quer permitir que nenhum homem aja como um coelho apavorado, uma ovelinha mariazinha-vai-com-as-outras ou como qualquer animal de rebanho des-individualizado e amestrado.


ANTI-PSIQUIATRIA

O livro de Kesey também era um contundente ataque às instituições psiquiátricas e seus métodos altamente discutíveis de tratamento daqueles diagnosticados como doentes. Como diz Joel Birman no prefácio,

"...interrogar-se efetivamente sobre o que seria a loucura evidenciava o desejo de afirmação da liberdade, numa atmosfera sufocante de controle social generalizado. Neste sentido, a contestação anti-psiquiátrica se conjugou inicialmente com o movimento beatnik e posteriormente com o movimento hippie. O que estava em pauta era a transvalorização do mundo, com vista a construir a contracultura como um outro estilo de existência. Com efeito, se o uso costumeiro de drogas psicodélicas era um antídoto contra os eletrochoques e psicofármacos, não se pode esquecer que uma revolução dos costumes estava em marcha, que teve nas gigantescas manifestações contra a Guerra do Vietnã, na rebelião estudantil de maio de 1968 e no feminismo os seus signos mais ostensivos." (11)

No começo dos anos 60, havia todo um movimento "anti-psiquiátrico" que questionava se era ético e aceitável submeter os pacientes a procedimentos como a Terapia de Choque e a Lobotomia, que poderiam até gerar seres humanos domesticados e pacíficos e pouco perigosos (“mais um robô para a Liga”, diria Kesey) , mas que aniquilavam a individualidade e a vontade própria de um modo que muitos consideravam grotesco. Ken Kesey não poupa sua cólera, chamando de “pútrida sala assassina de cérebro” (pg. 30) a Sala do shock treatment - “um engenho que faz o trabalho dos comprimidos para dormir, da cadeira elétrica e da roda de tortura” (pg. 101).

“Você é amarrado sobre uma mesa, ironicamente em forma de cruz, com uma coroa de fusos elétricos em lugar de espinhos. Você é ligado de cada lado da cabeça com fios. Zap! A eletricidade atravessa o cérebro e administram-lhe conjuntamente a terapia e uma punição por seu comportamento hostil de 'Vá para o inferno', além de ser posto fora das vistas de todos de 6 horas a 3 dias... Mesmo quando você recobra a consciência, fica em estado de desorientação durante dias. Fica incapaz de pensar com coerência. Não consegue lembrar-se das coisas. Certa repetição desses tratamentos poderia fazer um homem ficar igualzinho ao Sr. Ellis, um idiota sonâmbulo, molhador de calças aos 35 anos...” (101)

Quando McMurphy e o Chefe são levados para terem os cérebros fritos pelo eletrochoque, há uma nova descrição irônica do procedimento: “Aquelas almas afortunadas lá dentro estão recebendo uma viagem à Lua de graça. Não, pensando bem, não é completamente gratuita. Você paga pelo serviço com células cerebrais em vez de dinheiro, e todo mundo tem simplesmente bilhões de células cerebrais disponíveis. Você não sentirá falta de algumas delas.” (244)

Afinal de contas, o livro, além de um manifesto anti-psiquiátrico, pode ser considerado uma Tragédia Moderna que retrata com crueza e pessimismo o modo como um homem tem seu cérebro triturado e reduzido a pó pelos mecanismos do Poder – ou seja, da Liga. McMurphy, como sabemos, acaba recebendo as mais severas punições – eletrochoque e lobotomia! - por seu comportamento teimosamente desobediente e acaba, por fim, por virar também uma ovelhinha comportada e condicionada, quase um vegetal. É isso que explica o desfecho um tanto-misterioso da obra, quando o Chefe Índio se decide a um estranho sacrifício do seu “ídolo”. O que no filme não ficava muito bem explicado, no livro é límpido: “eu só tinha uma certeza: não iria deixar uma coisa daquelas ficar deitada ali na enfermaria com seu nome pregado nela por 20 ou 30 anos, para que a Chefona pudesse utilizá-la como exemplo do que pode acontecer se você contestar o sistema.” (414)

McMurphy, que poderia ter virado nada mais que um valentão e arruaceiro que chega pra bagunçar o coreto e depois paga um preço alto demais por sua insubmissão, acaba virando, depois de sacrificado, uma espécie de Mito. Uma Lenda. Um Símbolo. Algo construído por Kesey para servir como um Exemplo de Conduta Irreverente e Combativa que merece ser imitado. Talvez seja por isso que o autor o condene a um destino de Mártir, feito um Jesus Cristo dos Hospícios em plena Contracultura dos anos 60.

"Um Estranho no Ninho", sugere Joel Birman, "restitui esse cenário mágico de um mundo em franca subversão contra os guardiões da ordem e das seduções do consumo, fazendo palpitar corações e mentes de que o sonho prometéico ainda continua pulsante" (11). No fim-das-contas, o mundo inteiro é um imenso Hospício e a Liga expande suas garras pra todos os lados querendo aniquilar as diferenças, homogeneizar comportamentos e instalar programações (de Consumo e de Obediência) em nossas mentes de ovelhinhas submissas. E é na selva aqui de fora que McMurphy é um exemplo de como tentar escapar das garras da Liga Diabólica – ou um exemplo de como morrer tentando.

domingo, 6 de janeiro de 2008

:: simpatia pelo demônio ::

(sugestão de acompanhamento musical: ler ao som de Fiona Apple, "A Mistake" ["i wanna make a mistake, i wanna do it on purpose... unpave my path..."]).


CARTA PRO DÊMO:

"...e foi me dando uma irritação, fui pensando na minha vida e me lembrei que vou ao supermercado toda segunda, e faço a unha toda terça, e toda quarta-feira minha sogra almoça conosco, e me deu uma raiva desses compromissos que a gente inventa para se sentir com os pés no chão e para evitar sair por aí fazendo besteira, então eu pensei: vou fazer besteira, vou fazer. Tive vontade de quebrar a casa toda. Derrubar os enfeites da cristaleira, quebrar tudo que fosse de vidro, jogar cadeiras pela janela, só pelo prazer do estrondo, mas antes que eu iniciasse minha carreira de vândala comecei a chorar, e foi um choro tão sentido que você até riu de mim, pensou "hoje ela se entrega, hoje ela cai", mas eu não caí, e meia hora depois estava dobrando as roupas das crianças que estavam todas esparramadas pelo chão.
(...) Você é forte, demônio. Eu também sou. Mas rogo por trégua, jogo a toalha, te peço de joelhos: tome um chá de sumiço, vá dar uma volta, aportar em outra alma, que esta minha já está gasta e não vê graça alguma nas suas provocações. Quero que você me deixe, porque simpatizo cada vez mais com você."

Da Martinha Medeiros, em "Tudo Que Eu Queria te Dizer".

And if you ask me, ela é um dos maiores jovens talentos das letras nacionais. Adoro. Até o Caio Fernando Abreu pagava-pau!

...e como já dizia BOB DYLAN (e o Homem vem aí!):

YOU CAN'T HIDE IN A DARK STREET FROM THE DEMON WITHIN.