domingo, 21 de setembro de 2008

:: redação inquieta ::



DEVANEIOS SOBRE "REDAÇÃO INQUIETA",
LIVRO DE GUSTAVO BERNARDO


"Ler bem pode ajudar a viver, porque o sujeito se informa, se identifica, se transfere, principalmente se anima. Mas o que leva as pessoas a escrever é uma angústia diferente destas: a angústia de riscar um destino, interferir na história, se colocar no campo de jogo.

Logo, ler não é condição para escrever, mas sim munição para viver, e para escrever também. A atitude de ler é metonímia da vontade de entender o mundo. A atitude de escrever, por sua vez, é metonímia da pretensão legítima e transcendente de transformar o mundo."


Esses dias tive uma das mais intensas “alegrias de sebo” dos últimos tempos - aquela euforia quase carnavalesca por encontrar, numa prateleira não muito promissora, uma pérola em meio à lama. Eu, que ando perambulando quase diariamente pelas dúzias de sebos da Av. Pedroso de Morais, que fica pertinho do trampo, deparei com um livro que muito procurei e achava que nunca iria encontrar. Tava ali, abandonado e carente, sem chamar a atenção de ninguém, disponível por uma dúzia de módicas unidades reais, o Redação Inquieta, do Gustavo Bernardo – a obra que contêm um dos textos que mais me marcou na vida, nos áureos tempos juvenis onde eu ainda tinha a sensação de penetrar em certas páginas como se passassse por um portal em direção a um reino todo de sabedoria.

O texto “Espelho” (leia abaixo) caiu em minhãs mãos uns 10 anos atrás, num velho xerox que o professor Robinson Bucci, vulgo Tibúrcio, passou pra turma no primeiro ano do colegial, prodigalizando elogios às idéias ali contidas. Gostei naqueles tempos, gosto até agora: um texto de estimação. Acho tudo o que ali se diz extremamente pertinente e profundo - e melhor: dito em linguagem simples e límpida, compreensível por qualquer um. Acho mesmo que os livros que lemos, os textos que escrevemos, podem (e devem!) servir de espelhos, clarificando mais ou menos a resposta para as perguntas fundamentais: “quem sou eu? De onde vim? Pra onde vou? Que diabos estou fazendo aqui?” Questões irrespondíveis, mas enigmas inevitáveis.

Na época em que li este texto pela primeira vez, eu ainda não tinha um Diário e provavelmente, se me perguntassem, diria que achava isso uma baita coisa de maricas, de desocupados ou de menininhas sentimentalóides – e por que eu me ocuparia com algo tão besta? Quando era pivete, sempre tinha me saído bem nas redações escolares, e às vezes era até convidado pra transcrevê-las nuns cartazes enormes, decorados com borboletinhas, sóizinhos e outras viadices, que ficavam colados na parede da sala para dar um “bom exemplo” para os que escreviam mal. Mas disso nunca me gabei - me envergonhava, até. Nunca tinha me preocupado muito com isso - só escrevia se obrigado, na prova ou na lição de casa - e não tinha ambição alguma de me tornar escritor, que me lembre. Só ficava feliz de passar com 10 em Redação com tanta tranquilidade, enquanto era um trabalho de Hércules não ser chutado para a recuperação em Matemática...

Anos depois, quando as angústias e solidões da adolescência foram se acumulando, as dúvidas existenciais se exacerbando, as dores de amor desesperando, me vi procurando de repente este auxílio tão imprevisto: o do papel. Como quem descobre uma nova droga, um novo remédio, um novo brinquedo genial, descobri que eu podia fazer magia dentro de mim mesmo escrevendo. E bastava escrever: não precisava mostrar aquilo pra ninguém. Não precisava ser admirado pelo que tinha composto. Não escrevia pedindo por palmas. Como quem chora no escuro de um quarto trancado e depois se sente mais leve, eu escrevia minhas intermináveis e piegas dores até que tudo por dentro ficasse mais leve e pacificado.

Aliás, foi uma excelente precaução esta, a de manter tudo bem guardadinho no esconderijo... “Acontece de pensarmos borbotões de coisas, e se expressarmos o borbotão todo nos internam rapidinho” (pg. 36). Se alguém me tivesse roubado o Diário adolescente, eu provavelmente teria passado uma temporada adolescente no hospício ou no Prozac. As ôtoridades se assustariam. Mamãe e papai ficariam chocados. A diretora da escola provavelmente pediria minha transferência, achando que eu tinha uma personalidade muito Columbine e que qualquer dia podia entrar na sala com uma metralhadora e fazer miséria numa carnificina daquelas...

Se eu não escrevia para ser lido, então pra quê? Escrevia pelo desabafo, pelo transbordamento, pela liberdade de dizer tudo aquilo que me afligia, me revoltava, me indignava, me fascinava, me desconcertava, me oprimia - e que eu, na Sibéria da adolescência, sem muitos amigos, sem namorada e sem nenhum diálogo familiar, não tinha pra quem dizer. Era o meu modo de não explodir. O meu modo de não me matar. A única coisa que deve ter me impedido de imitar Kurt Cobain e Ian Curtis, de quem eu era tão fã quando tinha 16 anos de idade, deve ter sido a descoberta da catarse psíquica imensamente purificadora que um Diário realmente secreto possibilita. Foi ele que me impediu de morrer. E foi ele que me permitiu viver melhor. Tão melhor.

Não vai entender isso quem nunca escreveu uma carta de suicídio. Se eu já? Muitas. Não que eu tenha preparado o revólver, a cicuta ou a forca e tenha me posto a escrever um bilhete de despedida. Não foi assim. Mas sempre que cheguei ao fundo do poço, na maior das fossas, consegui me reerguer assim: escrevendo, como um maníaco, toda aquela bile negra que me contaminava a alma, tudo o que eu nunca tinha dito a ninguém, tudo o que ninguém nunca tinha se interessado em receber, com uma intensidade tamanha que só consegue aquele que não acredita mais que exista um amanhã. Hoje tenho uma teoria maluca: os suicidas só se matam pois não sabem escrever boas cartas de suicídio. Pois uma boa carta de suicídio, com um desabafo realmente extremo, uma tempestade do inconsciente genuinamente chovida, salva e purifica. Os céus nublados da minha alma, eu os limpo através da chuva de palavras.

“O diário corresponde, na fala, à conversa com os próprios botões. (...) A conversa consigo mesmo, da qual as crianças são mestras, indica claramente a presença de uma falta. Um tanto paradoxal esta expressão: 'presença de uma falta'. Porém, precisa. A falta que todo homem carrega consigo o tempo todo, tanto dos outros quanto daquele que ele podia ser mas ainda não é, se faz uma presença viva, perceptível no papo das crianças com seus amigos imaginários, no sonho dos adultos com seus desejos frustrados, na insônia dos apaixonados em suas camas de solteiro. A falta que todo homem carrega consigo o tempo todo é aquela que explica e dá sentido a boa parte dos seus atos e lapsos. Eis a palavra, testemunhando a ausência e a falta. A falta depositada nos diários testemunha a falta do autoconhecimento e, é claro, a necessidade de auto-afirmação. Mas não nos falta apenas conhecer-nos. Falta-nos conhecer a todos e tudo.” (31)

E foi mais ou menos assim que finalmente entendi perfeitamente todo hino em louvor ao “Diário” que tinha feito o Professor Bernardo. Que isso de ter um Diário não significa escrever dia-a-dia o que se comeu no café-da-manhã ou a cor da camiseta que se vestiu - futilidades assim nunca vão salvar ninguém. Mas sim derramar os recantos mais profundos da mente sobre aquela tela branca do papel, onde vai ficar desenhada uma imagem que talvez sirva como espelho - ou mesmo como bóia deopis do naufrágio. Descubro quem sou ao escrever-me. A sensação é a que fui um desconhecido de mim mesmo até que, dessa massa confusa e escura de sentimentos e memórias e desejos, conseguisse algum tipo de ordenação e de faxina e de purificação – através da escrita. E isso se tornou um vício – um lindo vício. Mais terapêutico que o divã. Mais essencial que pão.

"Quem faz diário escreve para se afirmar, para se equilibrar frente aos desafios do dia - desafios propostos pelo outro, ou pela rua, ou mesmo por suas dúvidas mais íntimas. Escreve para se responder quem é. Ao fazê-lo, empresta uma forma a sentimentos confusos, e a partir de então descobre o que sentia, pois o gesto de escrever lhe disse."

Perfeitamente dito: dou forma a sentimentos confusos e descubro com clareza o que sentia com confusão – pois o gesto de escrever me conta sobre mim. Frente a isso, que bestice parece aquele pedaço de vidro refletor que tenho no banheiro e que só me deixa ver minha casca, meu embrulho, minha superfície! O que vejo no espelho é mero muro, casulo, casco que me esconde, como se eu fosse a tartaruga e ele o que, sólido e opaco, me reveste e recobre. É no que escrevo que eu te fato me espelho. E aí que me procuro. Mesmo que o “quem sou eu?” permaneça eternamente irrespondível. Como conhecer um rio sempre movente, que não se imobiliza para facilitar o serviço do investigador? Seria mais fácil entender as estátuas e as pedras. Mas prefiro o destino de nunca me entender por completo, podendo estar sempre no meu rastro, Sherlock Holmes do meu próprio mistério, vivendo a vida livre das correntezas e das cachoeiras, e em eterno estado de perplexidade.

* * * * *



Sobre Redação Inquieta: eis um livro de um professor de redação, que o escreveu com um certo propósito didático, o que eu confesso não ser a coisa que mais instigue uma leitura. Mas eu o recomendo com entusiasmo. Nele o prof. Bernardo pretende devanear sobre a arte da escritura, sempre com uma visão altamente crítica de todas as fórmulas prontas e receitinhas culinárias que pretendem ensinar alguém a escrever. Ele não cai na arrogância fácil do professor sabido que vai reclamar do quanto os alunos conseguem ser incrivelmente imbecis nas coisas que escrevem, articulando mal o pensamento, repetindo frases feitas ou enchendo lingüiça de modo descarado. Que a situação seja um tanto desesperadora, não há dúvida, como mostram os “bestialógicos” que mostram alguns dos mais incríveis deslizes da moçadinha no vestibular. Na Internet se encontram muitas frases hilárias que o pessoal tem escrito por aí - como as seguintes, minhas prediletas do momento:

- “Batuta é aquela varinha que os maestros usam para ameaçar os músicos, caso estes toquem errado.”
- “Ecologia é o estudo dos ecos, isto é, da ida e vinda dos sons.”
- "As plantas se distinguem dos animais por só respirarem à noite."
- "O Chile é um país muito alto e magro."
- "A arquitetura gótica se notabilizou por fazer edifícios verticais."
- "Os egípcios antigos desenvolveram a arte funerária para que os mortos pudessem viver melhor."

Claro que a culpa é generalizada, aponta ele. A culpa é da escola, “que fragmentou o conhecimento em disciplinas estanques” e que adotou um sistema de avaliação behaviorista: “a nota é igual ao torrão de açúcar e/ou ao chicote do urso amestrado. Quem enquadra se enquadra – que o digam os carcereiros, presos nas mesmas grades dos seus presos.” A culpa é da família, “que lê nada e escreve nada de nada, e depois reclama da juventude que não lê”. A culpa é do Estado, “que encosta a educação no canto das verbas, censura as poucas palavras que escapolem das universidades e dos artistas, e depois faz ironias sobre a geração da gíria”. E a culpa é do analfabetismo e da falta de leitura, males ainda tão difundidos.

“Não existe hábito de leitura porque a maioria do povo é analfabeta, ou semi-analfabeta. Não há bons livros por isso também, e pelo perigo que trazem os bons livros. Não há dinheiro para comprar pão ou livros porque vivemos num regime onde são muito secundários o direito de escolher e a liberdade de decidir, tanto quanto a de desejar. Falta de dinheiro e falta de interesse pelo mundo e pelos livros são sintomas de um grande desrespeito humano institucionalizado. A instituição do desrespeito, que "escolhe" por nós todos e a todos interdita o desejo, é o nervo da questão - e não a falta de tal ou qual hábito.”

A culpa também é a noção de que escrever é um dom ou depende da possessão por essa entidade completamente ilusória que se chama de “inspiração”. E a culpa é também da separação entre teoria e prática. “No século passado, Marx observava que o ser humano , em geral, não existe numa situação de contemplação: o modo normal do homem existir é o de uma contínua intervenção ativa no mundo. (...) A tarefa de interpretar o mundo não é anterior nem posterior, mas parte intrínseca da tarefa maior de modificá-lo.” (22-23)

A culpa também é da superficialidade da nossa expressão, sempre tão cheia de frases-prontas, sentenças populares, gírias comuns, como se só soubéssemos usar cédulas gastas, de tanto que passaram de mão em mão, sem nunca encontrarmos uma linguagem plenamente nossa, individual, idiossincrática, adequada à nossa insubstituível e só-por-nós-mesmos-expressável individualidade. “Nós preguiçosamente colhemos as sentenças emprestadas (ou furtadas) do meio à volta.... Resulta que o problema real não é apenas a dificuldade de escrever, mas sim a dificuldade mesma de PENSAR PELA PRÓPRIA CABEÇA.” (pg. 70).

Por isso o Prof. Gustavo defende o RASGO e o MERGULHO. “As primeiras sentenças que fluem da cabeça e do braço são as que se encontram na superfície de nós. São aquelas que nos transmitiram desde pequenos, as que ouvimos e lemos à volta, as que não são nossas mas estão coladas em nós. Se elas forem rasgadas, surgem outras, que devem vir de outro lugar: um lugar em que as falas do mundo se transformaram no cadinho fervente de um ego, e desde então são outras falas: as falas daquele ego. Rasgar a superfície é rasgar os traços de dependência social e mental” (pg. 38). Isso implica em RESISTÊNCIA e INSISTÊNCIA: “Resistência aos que nos querem tirar a voz para pôr no lugar uma de papagaio. Insistência no rasgar as palavras superficiais, no escarafunchar as nossas, especiais.” (pg. 40)

No fundo, Gustavo Bernardo parece assinar embaixo do que disse Nietzche: “De tudo o que se escreve, só aprecio aquilo que foi escrito com o próprio sangue”. Como discordar? “Escrever com sangue vem a ser viver o que nos corre nas veias, pondo-nos para fora, pondo-nos para o outro. E pôr sangue fora dói. Colocar a verdade pulsante que nos dá sentidos assim, para fora, dói. (...) E não nos cabe fugir da dor. Necessário se faz dialogar com ela, quase amigavelmente, de forma a, ao menos, tocar na verdade andando, pulsando. (...) O sangue do sujeito que sangra – metonímia da pessoa que se busca, independente do que possa encontrar em si, falando aos outros o que aprendeu a se dizer. Recusando repetir. Recusando se dissolver no rebanho.” (118)

Isso significa também a defesa de um discurso extremamente pessoal, que quebre completamente com a ilusão de “impessoalidade” que normalmente se pede da escritura, como quando se condenam os alunos, mesmo aqueles que tenham idéias brilhantes, só por terem dito “eu acho que...” ou por usarem abundantes pronomes pessoais da 1a pessoa do singular. O direito de um eu expressar sua individualidade e sua diferença deve ser defendido com unhas, dentes e verbos! “A luta política pela igualdade abstrata entre os homens, entre os sexos, entre as nações, pode estar nos afastando de uma luta mais radical, mais totalizante, mais importante: pela sobrevivência das diferenças, em todos os níveis possíveis.” (148)

E é aí que o livro sobe até dimensões éticas, passando a ser bem mais do que um compêndio de sugestões sobre a arte de escrever, atingindo uma especulação filosófica instigante que dá o que pensar sobre a megalomania humana, o pavor da diferença e a necessidade de uma auto-crítica constante. Deixo o trecho abaixo como mais um aperitivo de um livro que vale a pena devorar:

“Quanta arrogância, a deste bichinho bípede. À época dos descobrimentos, quando a Europa resolveu se espalhar pelo mundo, essa arrogância transformou-se em genocídio. A 'raça' européia, caucasiana, se pôs como o centro da espécie humana, num etnocentrismo de consequências claras. Frente a outras raças e outras culturas, a postura não foi de curiosidade, mas de pavor – como podia existir a diferença? Não podia, não devia. A tarefa central tornou-se a de exterminar as diferenças. As diferenças religiosas, pela violência da catequesa católica. As diferenças culturais, pela violência da escravidão e da servidão. As diferenças corporais, pela violência do álcool e das doenças 'civilizadas'. As diferenças em si, pela violência genocida, que exterminou em poucos séculos os astecas, os maias, os tupis, os guaranis, através de todas as armas referidas – pólvora, álcool, catequese, micróbios.

Creio que o pavor da diferença permanece. Vejo-o na expressão do nosso pensamento. Redações que tomam a sua própria existência reduzida como padrão universal, quando o autor decide que o seu umbigo é o centro do mundo e se recusa a investigar, a duvidar, a admitir a própria perplexidade.

Certo, é muito difícil pensar para além da experiência própria. Mas o problema não é esse. O problema está no colocar a própria experiência como a total, a central. O problema é não admitir a perplexidade. Daí, cada redação fica parecendo uma bíblia sagrada que deve ser aplaudida e seguida sem contestação pelos leitores embasbacados.

Junto com a tradição antropocêntrica, nós herdamos a arrogância. Podemos enfrentá-las, tradição e arrogância, construindo a cumplicidade entre os escritores e os leitores. Escritores se esforçando para explicitar as marcas da sua individualidade, diluindo os indicadores megalomaníacos através da auto-ironia, da preocupação auto-crítica, observando cuidadosamente os próprios preconceitos. Leitores se esforçando para se deslocarem da posição passiva, boquiaberta, buscando se relacionar com o texto e com os escritores de frente, ironizando criticamente seus conceitos complicados e seus preconceitos atrapalhados.

Mais difícil e mais importante do que criticar a ideologia alheia é observar e desvendar a própria ideologia. Saber que se fala não de um lugar desinteressado e neutro mas sim de um lugar exato, interessado, nada neutro: o lugar da nossa classe social, da nossa idade, do nosso sexo, da nossa riqueza e pobreza, do nosso conhecimento e desconhecimento, da nossa história pessoal, da tensão entre as nossas resistências e as nossas rendições.”
(205-207)