segunda-feira, 27 de outubro de 2008

:: andré comte-sponville ::

(vai aí um pedacinho da minha pesquisa de iniciação científica...)

MESMO QUE O CÉU NÃO EXISTA
- A existência de Deus e a problemática da fé na obra de Sponville -


A obra toda de André Comte-Sponville está permeada por um esforço para pensar uma solução para a questão: “como viver após a morte de Deus e mesmo que o Céu não exista?” Trata-se de descobrir um meio de conviver, se possível de modo harmonioso e feliz, com essa “formidável ausência, em toda parte presente”, para usar uma expressão de Alain. Ao mesmo tempo em que ele sempre se confessou um ateu convicto, foi sempre um crítico ferrenho do niilismo e da destruição, por um lado, e do abandono das preocupações espirituais, por outro. “Tenho horror ao obscurantismo, ao fanatismo, à superstição”, comenta em O Espírito do Ateísmo. “Também não gosto do niilismo nem da apatia. A espiritualidade é importante demais para que a abandonemos aos fundamentalistas.”

Sponville nunca temeu dar testemunhos pessoais e auto-biográficos em sua obra, deixando claro que foi “criado no cristianismo” e acreditou em Deus (“com uma fé bem viva, permeada embora de dúvidas”) até “por volta dos dezoito anos” . Talvez esteja aí a chave para entender o porquê do seu respeito e sua fidelidade a suas raízes cristãs, que subsistem como um “resíduo” do passado. Longe de ser um “ateu de nascença”, Sponville é o que se poderia chamar de um apóstata. E ter tido fé talvez nos ajude a entendê-la, quando a perdemos, muito mais do que seria possível se nunca a tívessemos conhecido. Entendemos melhor, talvez, o que leva as pessoas a sentirem necessidade de crer, se já sentimos em nós mesmos a mesma necessidade, o mesmo anseio, a mesma tendência. Em seu testemunho pessoal, Sponville garante que perder a fé representou para ele uma “libertação”, um “rito de passagem” extremamente positivo, mas ele se abstêm de julgar que tal experiência possa valer universalmente.

“Era como se eu saísse da infância, dos seus sonhos e medos, dos seus suores, dos seus langores, como se eu entrasse enfim no mundo real, o dos adultos, o da ação, o da verdade sem perdão e sem Providência. Que liberdade! Que responsabilidade! Que júbilo! Sim, tenho a sensação de viver melhor – mais lucidamente, mais livremente, mais intensamente – desde que sou ateu. Mas isso não poderia valer como lei geral.”

Não há em Sponville um desprezo irado ou um combate feroz à religião. Ele expõe os argumentos e testemunhos que julga pertinentes em defesa do ateísmo, mas nunca com uma intenção expressa de “converter” os crentes à descrença, destruir cruelmente a fé, fazer tábula rasa dos valores religiosos. Ele reconhece o valor de muitos artistas e pensadores irremediavelmente ligados ao universo religioso (e o gênio de um Pascal, de um Santo Agostinho, de tantos outros, já é razão para que se evite uma condenação radical das doutrinas). E sabe também que “há mais santos entre os crentes do que entre os ateus; isso não prova nada quanto à existência de Deus, mas proíbe que se despreze a religião” (19).

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RAZÕES PARA NÃO CRER

1. O EXCESSO DO MAL

Sponville nunca negou que foi influenciado ao extremo pela argumentação de Marcel Conche, de quem foi aluno na Sorbonne de Paris e a quem considerava como um grande “mestre”. Conche encontrava na existência indubitável do Mal no real uma espécie de comprovação da inexistência de uma divindade bondosa e onipotente que teria criado e que estaria gerindo o Cosmos.

Mas de modo algum essa é uma descoberta recente, já que remete à Roma antiga (com Lucrécio) e à Grécia pós-aristotélica (com Epicuro), já que ambos se puseram a questão terrível: “como é que pode um mundo onde existe tanto sofrimento vão, tantas mortes inexplicáveis, tantas injustiças inaceitáveis, e no qual a natureza tantas vezes se manifesta como uma força cega e selvagem, ter sido criado por um ser infinitamente sábio e generoso?”

Epicuro manifestava esse assombro supondo 4 hipóteses sobre Deus, todas igualmente absurdas:

“Ou Deus quer eliminar o mal e não pode; ou pode e não quer; ou não pode nem quer; ou quer e pode. Se quer e não pode, é impotente, o que não corresponde a Deus; se pode e não quer, é mau, o que é estranho a Deus. Se não pode nem quer, é ao mesmo tempo impotente e mau, logo não é Deus. Se quer e pode, o que corresponde somente a Deus, de onde então vem o mal ou por que Deus não o suprime?”


Lucrécio, o maior herdeiro de Epicuro no mundo romano, e que escreveu toda sua obra na intenção de divulgar e enaltecer o epicurismo, também sugeria, como comenta Sponville, que “a natureza mostra bastante bem, com suas imperfeições, 'que não foi criada para nós por uma divindade'. O poeta, sobre esse tema, encontrará um dos seus mais belos e mais trágicos timbres: a vida é difícil demais, a humanidade é fraca demais, o trabalho é extenuante demais, os prazeers vãos ou raros demais, a dor é demasiado frequente ou demasiado atroz, o acaso é demasiado injusto ou demasiado cego para que se possa crer que um mundo tão imperfeito seja de origem divina!”

Todas as soluções teístas para esse problema parecem inaceitáveis para Sponville. É inaceitável o mito do Pecado Original, que procura condenar a humanidade em massa a fim de salvar a pele de Deus (pois se somos todos pecadores, todos os sofrimentos que padecemos são, de certo modo, merecidos...). Pascal, que sustentava que era preciso que o homem nascesse já conspurcado pelo pecado, pois de outro modo Deus é quem seria o culpado por um mal que nos atingiria injustamente, segue demasiado rigorosamente o cristianismo neste ponto e acaba caindo numa certa necessidade de condenação que é uma das marcas mais amargas desta religião. Mas quem teria coragem, frente a uma mãe em luto, que acabou de perder seu filho pequeno para uma doença ou acidente qualquer, dizer que seu bebê merecia morrer por ter nascido com a marca do Pecado Original?

Também é inaceitável a sugestão de que o mal seria “meramente aparente” e que “Deus escreve certo por linhas tortas” - algo como dizer: o mal é só uma etapa, um acontecimento episódico, mas tudo está sendo conduzido em direção a um Bem final que se perpetuará. Teríamos que esperar o fim chegar para checar a verdade dessa asserção, e enquanto isso o sofrimento continuaria a chover em tempestades sobre a humanidade... Sponville fala com um certo desdém das “justificativas indecentes de um Leibniz” (111). Também lhe parece uma fantasia sofisticada mas insustentável a doutrina de Simone Weil, que propõe que a Criação, para Deus, é um ato de esvaziamento, de retirada, de apequenamento de seu ser – Deus teria criado o Universo e Dele se retirado para não nos pesar nas costas com sua envergadura demasiado imensa...

“Há horrores demais neste mundo, sofrimentos demais, injustiças demais – e muito pouca felicidade – para que a idéia de ele ter sido criado por um Deus onipotente e infinitamente bom me pareça aceitável. Claro, muitas vezes os responsáveis por esses sofrimentos e essas injustiças são os homens. Mas quem criou os homens? Os crentes vão me responder que Deus nos criou livres, o que supõe que possamos praticar o mal... Isso nos remete à aporia já evocada: somos então mais livres do que Deus, que só é capaz – perfeição obriga – de praticar o bem? E mesmo deixando de lado essa dificuldade, por que Deus nos criou tão fracos, tão covardes, tão violentos, tão ávidos, tão pretensiosos, tão pesados? Por que tantos canalhas ou medíocres, tão poucos heróis ou santos? Por que tanto egoísmo, inveja, ódio, tão pouca generosidade e amor? Banalidade do mal, raridade do bem!”

A evidência da presença do mal é evidência da ausência de Deus.

“...há todos esses sofrimentos, desde há milênios, pelos quais a humanidade não é responsável. Há todas essas crianças que morrem de doenças, muitas vezes com sofrimentos atrozes. Esses milhões de mulheres que morreram de parto (que às vezes ainda morrem), com a carne e a alma dilaceradas. Há as mães dessas crianças, há as mães dessas mulheres, quando ainda vivas, incapazes de ajudá-las, de aliviá-las, que só podem assistir, impotentes, ao horror... Quem ousaria lhes falar de pecado original? Há um número incontável de cânceres (nem todos se devem ao meio ambiente ou ao modo de vida). Há a peste, a lepra, o impaludismo, a cólera, o mal de Alzheimer, o autismo, a esquizofrenia, a mucoviscidose, a miopatia, a esclerose múltipla, o mal de Charcot, a coréia de Huntington... Há terremotos, maremotos, furacões, secas, inundações, erupções vulcânicas. Há a desgraça dos justos e o sofrimentos das crianças. Ao que o pecado original dá uma explicação ridícula ou obscena. 'Tínhamos de nascer culpados, ou Deus seria injusto', escreve Pascal. Há uma outra possibilidade, mais simples: que Deus não existe.”


2. A MEDIOCRIODADE DO HOMEM

Não se trata de misantropia pura e simples, gratuita, sem nexo, que espalharia uma condenação massiva (é essa, muito mais, a atitude cristã!). Trata-se apenas de reconhecer que o ser humano, como a sua História prova com tão incontáveis exemplos, é frequentemente capaz do pior – e que pode ser, tantas e tantas vezes, irracional, insensato, agressivo, assassino, egoísta, vulgar, vicioso, medíocre.... Como conciliar a idéia de um Deus perfeito e infinitamente sábio criando criaturas tão imperfeitas, tão egoístas, tão auto e mutuamente destrutivas?

“A idéia de que Deus tenha podido consentir em criar tamanha mediocridade – o ser humano – me parece, mais uma vez, de uma plausibilidade baixíssima. 'Deus criou o homem à sua imagem', lemos no Gênesis. Isso nos faz duvidar do original. Parece-me muito mais concebível, muito mais sugestivo, muito mais verossímil que o homem descenda do macaco.” “A miséria do homem, como diz Pascal, me parece muito mais incompatível com sua origem divina do que sua grandeza com sua origem natural! O fato de sermos capazes de amor e de coragem, de inteligência e de compaixão, isso a seleção natural pode bastar para explicar: são vantagens seletivas, que tornam a transmissão dos nossos genes mais provável. Mas que sejamos a tal ponto capazes de ódio, de violência e de mesquinharia, isso (que o darwinismo explica sem dificuldade) me parece exceder os recursos de qualquer teologia. É inútil explicar que não sou exceção. Quanto mais eu me conheço, menos posso crer em nossa origem divina. E, quanto mais conheço os outros, menos a coisa se arranja... Crer em Deus é pecado de orgulho. Seria atribuir a nós mesmos uma causa muito grande para um efeito tão pequeno. O ateísmo, ao contrário, é uma forma de humildade.”

Como criações divinas, os homens são incompreensivelmente diabólicos. Como animais, são muito mais compreensíveis. “O mesmo homo sapiens, que não seria mais que uma imitação grotesca de Deus, é o mais extraordinário, de longe, de todos os animais: ele tem um cérebro espantosamente complexo e eficiente; é capaz de amor, de revolta, de criação; inventou as ciências e as artes, a moral e o direito, a religião e a irreligião, a filosofia e o humor, a gastronomia e o erotismo..”



3. O PERIGO DO FANATISMO

Que todas as religiões têm sangue nas mãos, isso é inegável. Mas isso prova que Deus não existe? Não. Mas é um bom sinal de alerta.

“A Inquisição ou o terrorismo islâmico, para tomar esses dois exemplos, ilustram claramente a periculosidade das religiões, mas não dizem nada sobre a existência de Deus. Toda religião, por definição, é humana. O fato de todas terem sangue nas mãos poderia tornar alguém misantropo, mas não bastaria para justificar o ateísmo – o qual, historicamente, tampouco está isento de recriminações, especialmente no século XX, nem de crimes.

Não é a fé que leva aos massacres. É o fanatismo, seja ele religioso ou político. É a intolerância. É o ódio. Pode ser perigoso crer em Deus. Vejam a noite de São Bartolomeu, as Cruzadas, as guerras de religião, o jihad, os atentados de 11 de Setembro de 2001... Pode ser perigoso não crer. Vejam Stálin, Mao Tsé-Tung ou Pol Pot... Quem vai calcular os mortos, de um lado e de outro, e o que eles poderiam significar? O horror é incalculável, com ou sem Deus. Isso nos ensina mais sobre a humanidade, infelizmente, do que sobre a religião.”



4. A FRAQUEZA DA EXPERIÊNCIA

O argumento que tenta fazer com que a existência de Deus decorra do mero fato de existir a idéia de Deus dentro do homem é rapidamente descartada por Sponville, já que “ é sempre ilegítimo passar do conceito à existência” (pg 80). Além disso, a falta de provas empíricas é gritante. Deus, se existe, brinca de esconde-esconde com a humanidade desde o começo dos tempos – não se deixa ver, não se faz ouvir, não se pode tocar. A imensa maioria dos homens que já viveu, se for sincero com seu testemunho, irá dizer que nunca teve nenhuma experiência sensível direta de Deus. E aqueles que dizem terem-no visto podem ser muito plausivelmente loucos, charlatões ou delirantes..

“O que vocês pensariam de um pai que se escondesse dos seus filhos? 'Não fiz nada para manifestar minha existência, eles nunca me viram, nunca me encontraram', ele contaria a vocês. 'Deixei-os crer que eram órfãos ou filhos de pai desconhecido, para que fossem livres de acreditar ou não em mim...' Vocês achariam que esse pai é um doente, um louco, um monstro. E teriam toda razão. Que Pai seria este para se esconder em Auschwitz, no Gulag, em Ruanda, quando seus filhos são deportados, humilhados, esfaimados, assassinados, torturados? A idéia de um Deus que se esconde é inconciliável com a idéia de um Deus Pai.” (96)


5. DESEJO E ILUSÃO

Seguindo os passos de Freud em seu clássico ensaio O Futuro de Uma Ilusão, Sponville também aponta que a religião está sob suspeita de ter sido inventada pelos homens como um discurso que nos diria exatamente o que desejamos ouvir. O fato dela ser tão conveniente, tão reconfortante, tão consoladora, tão congruente com nossos anseios, é muito mais uma razão para que fiquemos alertas quanto ao seu valor de verdade do que algo que nos garantiria sua veracidade.

"No fundo, o que é crer em Deus? Crer em Deus é crer que o essencial de nossos desejos, de nossos desejos mais fortes, será satisfeito, ou até mesmo já está satisfeito. O que desejamos, no fundo, acima de tudo? Não morrer, reencontrar aqueles que perdemos, ser amados... E o que nos diz a religião? Que não morreremos, ou não verdadeiramente, que vamos resuscitar; que reencontraremos aqueles que amamos e perdemos; enfim, que somos amados para além de toda a esperança. Como gostaria que isso fosse verdade!”

Justamente pelo fato de que gostaríamos que fosse verdade aquilo que a religião nos diz que é verdade, é de se suspeitar que estamos sendo vítimas de uma ilusão.

Em resumo, Sponville sintetiza suas razões para não crer:

“...não creio primeiro porque nenhum argumento prova sua existência; depois, porque nenhuma experiência o atesta; enfim, porque quero permanecer fiel ao mistério, ante o ser; ao horror e a compaixão, ante o mal; à misericórdia ou o humor, ante a mediocridade; enfim à lucidez, ante nossos desejos e nossas ilusões.”

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O ATEU FIEL


Nietzsche, quando fez seu diagnóstico sobre a queda brutal da crença religiosa na Europa de seu tempo, fenômeno sintetizado no seu marcante lema “Deus está morto”, sugeria não somente que a fé religiosa estava entrando em descrédito, mas que todo um sistema de valores ligado a ela sucumbia junto. Em Sponville não há necessariamente um vínculo entre os dois fenômenos - o abandono da crença em Deus não exige o abandono de todos os valores que vinham acoplados à religião. Estes podem – e devem! - sobreviver. Trata-se de manter-se fiel ao que há de louvável nesta tradição e não lançá-la inteira no lixo – e aqui a fidelidade é entendida como um apego, um comprometimento, um reconhecimento, um ato de gratidão para com a tradição, a valores que a religião fazia seus, mas que são de todos.

“...a Europa crê cada vez menos. Será uma razão para jogar fora o bebê com a água da banheira? Há que renunciar, ao mesmo tempo que ao Deus socialmente morto (como poderia dizer um sociólogo nietzschiano), a todos esses valores – morais, culturais, espirituais – que foram ditos em seu nome?”

A resposta a essa questão, para Sponville, é obviamente não. Quer se creia em Deus ou não, valores como a caridade, a sinceridade, a coragem, a generosidade, a justiça, o amor, continuam sendo valores dignos de serem louvados e perseguidos. Em sua obra mais conhecida e de maior sucesso popular, O Pequeno Tratado Das Grandes Virtudes, ele deixou bastante claro que uma vida virtuosa era totalmente independente da religião e que as grandes virtudes continuavam tão preciosas e elogiáveis quanto sempre foram, sem que necessitassem de qualquer tipo de fé para fundamentá-las.

“Sinceramente, será que você precisa acreditar em Deus para pensar que a sinceridade é melhor do que a mentira, que a coragem é melhor do que a covardia, que a generosidade é melhor que o egoísmo, que a doçura e a compaixão são melhores do que a violência ou a crueldade, que a justiça é melhor que a injustiça, que o amor é melhor do que o ódio? Claro que não! (...) Os que não têm fé, por que seriam incapazes de perceber a grandeza humana desses valores, sua importância, sua necessidade, sua fragilidade, sua urgência, e respeitá-los por isso?” (30)

Nisso se manifesta uma das principais divergências entre o pensamento de Nietzsche e Sponville - que, aliás, têm um longo artigo publicado na coletânea anti-nietzschiana Por Que Não Somos Nietzschianos?, onde sistematiza todas as objeções e reprovações que tem a fazer contra a obra do filósofo alemão. Para Nietzsche, os valores judaico-cristãos deveriam ser abandonados junto com a crença no Deus Único, e deveríamos proceder a umas “transvalorização de todos os valores”, à criação de um sistema axiológico completamente novo, onde as virtudes cristãs – tais como a esperança, a resignação, o desprezo pelo mundo físico, a repressão dos instintos sexuais e vitais – fossem totalmente abolidas em nome de outras virtudes.

Que Sponville tenha uma certa dívida com essa revolução moral pretendida por Nietzsche, não há dúvida – ele mesmo admite que o “hedonismo” que parecia emanar da doutrina nietzschiana trazia para o ar dos tempos um “vento tonificante e libertador”, já que a moral judaico-cristã era tantas vezes tida como “repressiva, castradora, culpabilizadora” (42). Mas em Sponville, apesar de existir sim uma crítica intransigente da esperança e da resignação, tão elogiadas no cristianismo, não há a sugestão de que se deveria fazer completa tábula-rasa desse passado que nos foi legado pela tradição judaico-cristã.

“Não se trata de 'inverter todos os valores', como queria Nietzsche, nem mesmo, no essencial, de inventar novos. Os valores são conhecidos; a Lei é conhecida. Faz pelo menos vinte séculos, em todas as grandes civilizações existentes na época, que a humanidade 'selecionou', como diria um darwiniano, os valores fundamentais que nos permitem viver juntos. (...) Não se trata, salvo exceção, de inventar novos valores; trata-se de inventar, ou reinventar, uma nova fidelidade aos valores que recebemos e que temos o encargo de transmitir.”

A religião pode cair, mas a moral não necessariamente cai junto. O Ivan Karamazov de Dostoiévski e Nietzche erravam quando sugeriam, quase que se manifestando como aliados de uma mesma doutrina, que “se Deus não existe, tudo é permitido” e que “nada é verdadeiro, tudo é permitido”.

Para Sponville é uma evidência que a perda da fé não conduz o indivíduo, de maneira alguma, a uma anarquia moral completa em que ele se permitiria fazer todos os atos que antes se proibia. Onde já se viu alguém tornar-se ateu e, por causa disso, começar a realizar tudo o que antes se proíbia (como estuprar estranhas na rua, a roubar o pertences legítimos de seus concidadãos, a assassinar seus desafetos)? Chega a ser uma suposição ridícula. É esse niilismo – considerado no sentido mais restrito: de uma atitude que pretende abolir completamente todos os valores – que Sponville vê como um perigo tão grande e que procura combater com tanta força. Para ele, é óbvio que diz uma tolice quem sugere que tudo é permitido se Deus não existe. Existem as leis da sociedade, e os métodos punitivos e preventivos que ela possui, por um lado; e existem as leis morais, e com elas o desejo do indivíduo de se sentir digno de sua própria humanidade. Isso basta.

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O ATEÍSMO CONDUZ AO NIILISMO?

Talvez seja esse um dos grandes temores que atormenta a alma daqueles crentes que sentem, por vezes, a fé vacilar e ser posta em xeque, com desconfiança... Se a crença caísse, ela não levaria a pique, junto com ela, num naufrágio completo, todo valor? Que valor pode ter a vida, o mundo, o universo, quando se reconhecesse que Deus não existe? A morte da religião dentro dum espírito não conduziria necessariamente ao niilismo?

André Comte-Sponville e toda sua obra, e toda a sua vida, é uma negação encarnada dessa tese. Seu combate contra o niilismo sempre se manteve firme e forte e ele nunca aceitou que nenhuma gota desse veneno viesse contaminar sua doutrina. “O niilista, na linguagem corrente, é aquele que não acredita em nada, que não respeita nada, que não se impõe nem proíbe nada”, define ele. “Filosofia do tudo se equivale (já que nada vale), do para quê, da inanidade de tudo, da renúncia, do abandono... Paul Bourget, que tomou a palavra emprestada de Nietzsche, definia-a como 'um mortal cansaço de viver, uma sombria percepção da vaidade de qualquer esforço...”.

Que o niilismo seja uma “tentação” ou um “perigo” que ronda os ateus, principalmente aqueles que foram crentes e perderam sua fé, Sponville não o nega. Mas o combate contra essa tendência à apatia ou à anarquia moral sempre foi um de seus principais objetivos. Sobre este tema, ele se expressou brilhantemente em seu artigo O Niilismo e Seu Contrário, presente na coletânea de ensaios Bom Dia, Angústia!, onde sugere, num parágrafo extremamente denso, as razões para o niilismo. Segundo ele, seria um mero efeito da existência prévia de idealismo e religião. Por termos concentrado todo o valor em Deus ou em dimensões extra-terrenas de existência, esvaziamos de valor o mundo como ele é e como nos aparece – o único que de fato existe. O niilismo seria mero efeito do desapontamento.

“Conhece-se o diagnóstico nietzschiano. O niilismo resulta diretamente da morte de Deus, e, portanto, indiretamente, da religião. Depois de ter esvaziado o mundo de todo valor, depois de tê-lo depreciado em proveito dos retromundos metafísicos ou morais (o Ser, o Bem, o Absoluto, etc.), depois de ter concentrado em Deus toda plenitude e todo significado, a humanidade, incapaz de acreditar por mais tempo nesses fantasmas que criou, já não encontra diante de si senão esse mundo desvalorizado, senão esse mundo vazio e vão, sem condições de corresponder a nossas esperanças ou de oferecer um objetivo às nossas ações. Nieztsche se explica em A vontade de poder: 'Que significa o niilismo? Que os valores superiores se depreciam. Faltam os fins. Não há resposta para esta pergunta: 'para quê?' Isso era sem dúvida inevitável. Desde que se ponham os valores morais acima do mundo, o mundo só pode parecer imoral. Desde que se ponham as esperanças pessoais acima do real, o real só pode parecer decepcionante. Como Camus, comentando Nietzche, havia observado: 'o niilista não é quem não acredita em nada, mas quem não acredita naquilo que é'. Melhor: é porque não acredita no que é (idealismo, romantismo, religião, etc.), que acaba por não acreditar em mais nada (niilismo). O mundo é pegar ou largar. Enquanto se prefere alguma coisa ao real, vai-se rumo ao niilismo. Enquanto se prefere alguma coisa ao todo, prefere-se o nada.”