domingo, 19 de outubro de 2008

:: oh, let me dream if I want to... ::




:: sonhinhos ::

um dia eu ainda vou ser um sambista carioca da ralé, criado na favela com muito pão-com-manteiga e pingado, muito pagode na mamadeira, muitos tragos de cachaça barata, virados sem cara-feia em botecos do morro desde tenra idade. o gogó abençoado - de nascença e de tanto Velho Barreiro! Os lençóis sempre sujos de frenéticas paixões com mulatas retintas e desavergonhadas. do tipo que samba desde o berço e que continua feliz, sorridente e bailando quando o Sol se põe na Quarta-Feiras de Cinzas.

um dia ainda vou ser um bluesman do tennessee na década de 1930. vou trabalhar em campos de algodão em jornadas estafantes com a nobreza e a dignidade de um personagem de Steinbeck. a tal da depressão será um talho na minha carne e não uma estatística econômica que os graúdos lêem nos jornais com semblantes preocupados. na plantação cantaremos em coro os mais lindos spirituals e worksongs, enquanto o Sol torna ainda mais torrada nossa pele escura como o breu.

pegarei muita carona clandestina em trens de carga que fedem à gado e alpiste. viajarei rumo ao sonho dourado da califórnia. lavarei meu suor nas águas do mississipi. terei um avô que morreu lutando na guerra civil para defender a abolição da escravatura e algum talismã - anel, carta ou mecha de cabelo - que ele me legou. em uma noite escura qualquer, irei até a encruzilhada para vender minha alma para um demônio poderoso, capaz de me fazer tocar violão como um endemoniado. serei entendido em feitiçarias. tomarei bourbon em saloons empoeirados e mau-iluminados. serei o gatilho mais rápido do Oeste (que só vai virar "Velho" muito depois d'eu morrer - de cirrose hepática, na lama, aos 35, beneath the howlin' moon).

um dia serei um sábio contemplativo budista ou hindu, nem sei a diferença, que atingiu o nirvana e vive numa bowa. terei uma janela ampla e sem grades, que se abre para uma linda paisagem, bucólica ou litorânea, tanto faz. mas fervilhante de vida. e vou me perder, eu que sou moeda de 1 centavo, lá fora. pois o lá fora vale muito mais. no acolhimento do silêncio, vou ficar em meditações e devaneios longos, maconhado, semi-bêbado, nas asas do LSD ou ébrio simplesmente da chapação de estar-vivo.

só sentindo a brisa e a carícia do Sol na face. terei um chão de grama sem formigas saúvas onde vou poder me deitar de costas, a altas horas da madrugada, para ser esmagado pela visão do beautiful cosmos. e abrindo os ouvidos com igual amplidão para o desfile de velhos sambas do Chico... não viverei mais numa cidade cinza e feia, de ar e mentes poluídas, onde todo mundo se fode e ninguém se ama, onde as janelas são todas gradeadas por causa do medo de bandido, onde as portas estão repletas de cadeados e trincos, assim como as almas, assim como os corações, far away from these creatures who lock up their spirits, drew holes in themselves and live for their secrets... e eu vou ficar lá, em lua-de-mel com o universo, de portas abertas a um convidado que, apesar de ser do tamanho de tudo o que existe, cabe muito bem dentro desta minha humilde casa.

qualquer dia vou dar um rolê nos meus tempos de menino. vou ter de novo uma lancheira do jaspion, uma fantasia de batman e toda uma imensa coleção de brinquedinhos do kinder ovo. vou escrever carta pro papai noel e levantar bestificado na manhã do 25 por ter meus quereres atendidos pelo gordão do saco vermelho e das renas, que apesar da falta de chaminé na minha goma pôde vir fazer de suas bondades. na escola, muita bolacha traquinas, bolinho ana maria e leite com nescau no intervalo. futebolzinho na quadra de areia até que a inspetora viesse nos arrastar pelas orelhas de volta para a sala de aula. rindo à toa com o chaves à espera da buzina da perua.

o maior suspense da minha vida voltaria a ser: conseguirão os cavaleiros do zodíaco sobreviver às 12 casas? conseguirei eu descobrir o assassino antes de hercule poirot? e aquela prova de matemática que se aproxima, vou me lascar? me juntaria no banheiro com os outros moleques, louco de excitação, na muvuca frenética ao redor da primeira playboy - ao redor dela, pequenos olhos arregalados de pequenos tarados de cuecas infladas, observando aquilo com mais fascinação do que se vissem uma aurora boreal ou o pouso da grande nave-mãe alienígena. vou de novo rasgar meu joelho caindo da bicicleta, quebrar o braço depois de tomar uma rasteira e andar no fusquinha barulhento da velha Enid. vai ser aquela fase antes de eu estragar, pois acham que estraguei, e meus pais ainda vão estar me amando, como um dia fizeram, eu bem me lembro. em mil noites de interminável revêrie, vou sonhar os mais castos e pios sonhos com a natália - nome do meu primeiro amor, de quem ninguém nunca soube. nem ela.


de volta àquele lindo tempo em que tudo ia dar certo.

("que culpa temos nós dessa planta da infância,
de sua sedução, de seu viço e constância?")

[jorge de lima, infenção de orfeu]

um dia vou ser um daqueles poetas piegas e sentimentalóides do século... sei lá! aquele século lá onde as pessoas ainda acreditavam no amor, como houve eras em que acreditou em bicho papão, saci-pererê, coelho da Páscoa, monstro do Lago Ness, anjos exterminadores, súcubos e íncubus. hoje em dia do amor só existem ateus, agnósticos e crentes perdendo a fé. tá osso! vou viver olhando as estrelas e tropeçando nas pedras do caminho, sem me importar. que importa o chão? e acharei uma mocinha toda feita de doçura, que vá se deixar lamber toda como um brigadeiro, que vá se pôr debaixo da minha chuva de mel, com prazer. que comerá do meu amor como uma esfomeada e me amará como uma freira ama a seu deus. e pra quem escreverei os mais melosos e delicados versos da mais completa adoração. tão idealistas que vão achar que me enamorei de um anjo. serei pródigo em juras de afeto eterno. sem ti não vivo. se você morresse, o sol se apagaria, as marés parariam, as montanhas virariam pó, na garganta dos pássaros o canto iria morrer. as musas vão adorar sussurrar versos aos meus ouvidos. meus poemas serão meus buquês de rosas e caixas de bombons. os olhos dela falarão mais que mil bibliotecas. os lábios dela terão o sabor de dez mil morangos banhados em leite condensado. e eu serei uma pessoa que sabe o que significa ouvir "eu te amo".