segunda-feira, 30 de março de 2009

:: gritos ::


Confiram: na nova edição da Revista o Grito!, além do textão abaixo sobre o Radiohead, saiu um ensaio meu sobre "Gran Torino", o novo filme do Clint Eastwood. Glue there!

segunda-feira, 23 de março de 2009

:: god loves his children (YEAH!) ::


SALGANDO AS FERIDAS

- reinterpretando o legado do Radiohead após a turnê Brasil -


[ ALL THESE WEIRD CREATURES WHO LOCK UP THEIR SPIRITS ]

Elvis Costello brincava que “escrever sobre música é como dançar sobre arquitetura”, ou seja, uma tarefa inglória, difícil e talvez irrealizável, já que tentamos transpor para uma linguagem o que só pode ser comunicado em outra. O que “diz” um solo ou uma melodia é indizível em mil ou um milhão de palavras escritas. Do mesmo modo como os místicos retornam de seus “transes” incapazes de falar um “a” sobre os mistérios que desvendaram, é duro achar no dicionário os termos oportunos para descrever as sensações que só os poderes mágicos da música são capazes de desencadear em nós. Quando o desafio é escrever sobre o Radiohead, que acabou de passar pelo Brasil pela 1a vez em shows antológicos no Rio e em São Paulo, o enrosco parece até se agravar. Pois, mais que um show, este é um daqueles acontecimentos existenciais que nos deixam emudecidos. Estarrecidos. De almas boquiabertas. Penando para entender algo que é tão maior que nós e que acontece num domínio além da razão e da linguagem.

Ficamos batalhando com as palavras, tentando verbalizar uma experiência que transcende em muito o mundo verbal-racional, e sabemos, de antemão, que seria impossível transmitir com letrinhas uma avalanche sensorial e uma jornada sentimental tão inefáveis como aquelas que nos deu a banda inglesa. Perturbador, angustiante, surpreendente, hipnótico, desolador e infinitamente fascinante: só amontoando adjetivos hiperbólicos pra dar uma vaga idéia das sensações que estão em jogo num show do Radiohead!

Thom Yorke: “quem é esse homem?”, me pego perguntando, e estou certo de que não sou o único. E quem é que ousa decifrar esse mistério? Num ser tão complexo, de alma tão vasta e cheia de nuances, convêm entrar aos tateios, com calma, sem querer respostas fáceis, deixando de lado rótulos e preconceitos, para se aventurar no labirinto íntimo de uma criatura conturbada e genial. Talvez ele, vida afora, já tenha sido taxado com todos os termos pejorativos com que os normopatas denigrem a imagem dos que são diferentes da média: creep, weirdo, freak, loser, nerd, louco - e por aí vai, que a maledicência humana não tem limites. Um show do Radiohead, no entanto, faz com que a gente se pergunte: não é extremamente tênue a linha que separa o louco do gênio? Um “desajustado social” não está, muitas vezes, perto de se tornar um visionário que possui um olhar muito mais são do que a dos ajustadinhos? Este homem, que alguns podem ver como um compêndio vivo de dúzias de patologias psíquicas, não seria, na verdade, um dos artistas mais brilhantes de nosso tempo e uma das mais lindas vozes que já tivemos o prazer de ouvir com nossos tímpanos deliciados?...

O brilhante crítico de rock Simon Reynolds, no livro (de cabeceira!) Beijar O Céu, comenta: “Se o Radiohead é um caso de ‘ame ou odeie’ – e eles parecem induzir reações violentamente polarizadas – muito disso se deve à voz de Thom Yorke, a lástima que são seu tom e textura naturais. ‘Deprê’, ‘chorão’, e ‘torturado’ são os tipos de adjetivos lançados pelos que o hostilizam. Os fãs, em comparação, tendem a falar em ‘bela tristeza’. Essa resposta dividida lembra como Morrissey dividia os ouvintes em 1983, entre aqueles que consideravam sua voz um néctar para o ouvido e os que a achavam irritante como passar a unha na lousa.”

Verdade. Mas taxar a música do Radiohead de “deprê” e pensar que esse rótulo simplista dá conta de descrever todo o caleidoscópio de abismos, céus, vertigens, decolagens, quedas e montanhas-russas emocionais que a banda nos causa é muita rasidão.

É verdade que talvez não nos surpreenderíamos muito se, qualquer dia desses, os jornais do mundo anunciassem de repente que Thom Yorke, no rastro de Cobain, tornou-se o mais novo rock star suicidado que vai-se da Terra deixando uma multidão de órfãos desconsolados. Mas talvez é isso o que faz essa música ser tão comovente e angustiante: justamente essa sensação que podemos ter, ouvindo Radiohead, de que a morte de Thom Yorke sempre foi e é uma iminência. Há certas músicas tão aflitas que sentimos que aquele homem, que as canta, está por um triz – o túmulo aberto já o espera e tudo o que ele precisa é de um empurrãozinho para ali cair...

Chega a ser quase um choque notar que ele é um sobrevivente e que provavelmente vai continuar no reino dos vivos ainda por muito tempo (tomara que sim!). Ele parece fazer arte para não morrer, e não morrer somente por ter a arte como aliada e como tábua de salvação. Ele parece fazer música para não sufocar, agarrando-se a ela como um asmático à sua bombinha de oxigênio. E é esse tipo de expressão aquela que mais nos comove: sabemos que ele não está de brincadeira e que essa criação, para ele, tem uma importância existencial incomensurável. Talvez por isso o Radiohead seja um oásis de autenticidade num mundo pop saturado de lixo fake e Thom Yorke uma das fontes mais puras de emoção genuína em meio a tantos corações enregelados e brutos.


[ ICE AGE COMING, ICE AGE COMING! ]

Os “papas da música eletrônica”, os alemães do Kraftwerk, já devidamente consolidados na história do pop como cruciais precursores, ficam parecendo ninharia em contraste com o Radiohead: dá para reconher a importância histórica que tiveram, mas não podemos evitar a sensação de que foram superados. Soam hoje como um Atari perto de um Playstation III ou um vinil ao lado de um iPod. Com seu kraut-rock burocrático, mecânico e gélido, onde o artificialismo soterra qualquer sonoridade mais cálida e genuína, o Krafktwerk é a música que faria o planeta Terra se fosse completamente dominado por robôs e computadores, com a raça humana e sua voz subjugados e silenciados para sempre. Apesar de ser possível dançar ao som de Kraftwerk, essa música não soa nada hedonista: ao invés de convidar à farra, os caras parecem instigar uma reflexão sobre a natureza da tecnologia e nossa relação com ela. Estaremos de fato no controle ou seremos derrotados e barbarizados por nossas próprias criações, como sugeria toda a paranóia de Matrix? O levante dos robôs tomará conta também do ramo da música?

O Kraftwerk é uma profecia tenebrosa do que seria o futuro humano se a Tecnocracia vencesse a Batalha Final. Profecia, aliás, que vem sendo comprovada pelo andar da carruagem dos tempos! É música que parece provir de algum filme sci-fi distópico e desesperançado, onde só as máquinas fariam música e o coração humano não mais cantaria (muito menos os rouxinóis!). A imobilidade dos membros da banda no palco, como se fossem meros empregadinhos assalariados de PCs, notebooks e sintetizadores, é um símbolo de uma humanidade desumanizada e mecanizada que não serve mais pra muita coisa além de apertar botões em um controle remoto. Neste inferno de gelo de batidas repetitivas e desumanas chegamos a rezar por um solo de violino ou uma voz de mulher, doce e melodiosa, que nos salve de tanto negrume e tanto ritmo sem doçura.

E não foi à toa que a organização do festival escalou o Kraftwerk para abrir o show do Radiohead: quando os ingleses subiram ao palco, não deu pra sentir nenhuma “ruptura” radical entre as duas bandas. Era como se fossem da mesma laia, da mesma turma, da mesma família - como um avô antiquíssimo comparecendo ao ritual de consagração de seu neto mais brilhante. Kraftwerk abrindo para o Radiohead é um emblema muito simbólico: os precursores alemães, vindos dos primórdios do pop com sua visionária tosqueira tecno, abrindo alas para os ingleses que, a partir dos anos 90, tornaram-se a mais fina vanguarda tanto do rock quanto da eletrônica mais underground - sem nunca terem esquecido de reconhecer a dívida que tinham com aqueles que abriram antes caminhos e atalhos. Um show desses mostra que chamar o Radiohead de uma “banda de rock” é uma impropriedade, ainda mais considerando que nesta década que se acaba em 2009 a ênfase principal deles foi na Eletrônica Experimental e não nos guitarrismos característicos do brit-pop.

Simon Reynolds comenta que, na fase pós-OK Computer, “saturado de música contendo guitarras e voz, Thom Yorke adquiriu todo o catálogo da Warp e começou a comprar discos obscuros de IDM (Inteligent Dance Music) pela internet. Por muito tempo durante as sessões de Kid A ele tinha perdido o interesse por melodia, explorando apenas textura e ritmo.” O Radiohead, depois de ter levado o britpop até seu pico, cometendo um clássico inigualável em OK Computer, afundou-se num outro mundo: o sentimentalismo deu lugar a uma certa “serenidade” e o experimentalismo tomou conta e chutou pra muito longe qualquer migalha de comercialismo. A banda que antes dizia-se influenciada por R.E.M., Joy Division, Elvis Costello e Talking Heads começou a desejar ser como Aphex Twin, Autechre e Tricky. Penetrando cada vez mais no deserto, longe dos holofotes do pop, Thom Yorke saturou sua alma com audições de Charles Mingus e Miles Davis e chegou a inventar um jazz dos infernos para a era da eletrônica (“The National Anthem”).


A era glacial está chegando e o Radiohead surge sugerindo: “throw it in the fire!” (“taque-a no fogo!”) Os versos de “Idioteque” são sintomáticos: ela, uma das músicas mais saturadas de eletrônica que a banda já compôs, traz ao mesmo tempo a melodiosa e pungente voz de Yorke em levante contra a frieza maquinal que vem em maré montante em nosso mundo de airbags, aviões e Ok Computers. É como se eles tremessem e sentissem calafrios com a chegada das nevascas, e a música fosse um levante do fogo contra as forças do gelo.

E foi esta a banda que desembarcou no Brasil: a banda experimental de vanguarda, radicalmente à frente de seu tempo, incoverizável e inimitável. A banda que não faz concessões e que consegue permanecer fidelíssima a uma proposta artística original e pra lá de relevante, ainda que tenha que conviver com todas as cruéis engrenagens do mundo do pop, do hype e do showbizz. Grandes hits foram tocados (“Creep” e “Fake Plastic Trees”), mas a essência do show foi outra: mais arte que entretenimento, mais perturbação do que conforto, muito mais uma tentativa de nos angustiar e estarrecer do que um espetáculo de entretenimento de massas.

“Acusações de falta de senso de humor são frequentemente lançadas ao Radiohead, mesmo considerando que em entrevistas eles são caras bem espirituosos”, comenta Reynolds. E de fato pudemos comprovar: um show do Radiohead não tem nada de “divertido” ou “simpático”, mas esse hedonismozinho de meia-tigela que motiva muita gente que frequenta shows parece uma besteira frente à Arte Provocativa e Dilacerante de Thom Yorke e companhia. “É exatamente o fato de o grupo ter invocado outra vez a seriedade art rock e sua rejeição à leviandade e à frivolidade que na verdade representa o diferente na cultura pop atual, impregnada que está de gritaria machona e sem cerimônia, de afetação heterossexual (de Robbie Williams a todos aqueles programas de nostalgia dos anos 1980) e de ceticismo desconfiado que banaliza a intensidade ou qualquer tipo de procura por uma visão”, sugere Reynolds. “Mas Yorke diz que consegue entender a demanda por entretenimento leve. 'O motivo pelo qual as pessoas querem tanto escapar é que têm muita coisa do que fugir. De certa forma, a última coisa que qualquer um precisa é de alguém salgando as feridas, que é meio o que estamos fazendo.'

* * * * *

[ BRUISES THAT WON'T HEAL ]

À frente do Radiohead, Thom tornou-se mais um desses anjos caídos ou seres desajustados que vira “porta-voz de uma geração”. O sucesso estrondoso da banda mostra o grau extremo de identificação por parte de todos aqueles que se sentem excluídos, renegados, mau-amados, horrendos, angustiados, melancólicos, confusos e solitários – enfim, todos que conhecem alguma das diversas maneiras de se sentir “como se não pertencêssemos a este lugar”. O mundo visto como um purgatório gelado, um exílio onde padecemos mais do que nos deliciamos, à espera de uma libertação que não chega jamais, enquanto cantamos e dançamos como desesperados à beira de um despenhadeiro.

Os antropólogos e psicológos de 2100 (ou além) talvez olhem para trás e enxerguem no Radiohead – que é a História da Cultura acontecendo perante nossos olhos e ouvidos! - um sintoma de uma época espiritualmente doente: saturada de confusão, desnorteamento e ruas sem saída de melancolia. Mas talvez notem também que ergueu-se desse pântano de desconforto um canto de beleza tão elevada, uma música tão profunda e comovente, que chegamos a pensar que, de fato, só faz boa arte aquele que sofre como um desgraçado. E que figura, na arte dos nossos tempos, é maior que Thom Yorke como um exemplo monumental do que significa “Angústia Existencial”?

O fato dessa música ser inegavelmente comovente, aventureira e instigante não impede, porém, que se coloque em questão a “mensagem” do Radiohead para o mundo moderno. Reynolds arrisca um comentário sociológico-político: “Yorke está literalmente dando voz a sentimentos contemporâneos de deslocamento, ausência de posse, apatia, impotência, paralisia; impulsos amplamente sentidos de se retrair e se desengajar que são reações perfeitamente lógicas e desanimadas à falência das políticas de centro, que asseguram que todos permacem igualmente desencantados e aflitos.” O fanatismo exagerado não deve nos cegar contra essa dimensão “perigosa” do Radiohead: a de uma banda capaz de disseminar “apatia, impotência, paralisia”, como sugere Reynolds.

É como se o Radiohead fosse a banda-símbolo de uma geração nascida depois do crepúsculo das utopias, que pegou carona na ressaca do grunge sem ter mais ideais no horizonte. A fúria foi substituída pela tristeza, a revolta pelo chororô e a luta pelo cansaço. O espírito transformador e entusiástico do Maio de 68 francês, ou do Verão do Amor hippie, ou do levante punk de 77, estão completamente ausentes daqui. E, apesar do Radiohead ser, no fundo, uma banda de uma dimensão política considerável (nem tudo são lamúrias sentimentais: há toda uma vasta crítica cultural na arte da banda!), no fundo parece que sobressai um clima apático e melancólico ao invés de um espírito de pegar em armas (ainda que poéticas!) para derrubar os poderes malignos que nos prendem nas teias da tristeza. O Radiohead é o símbolo máximo de uma geração que, se fosse pra se tornar junkie de algo, seria de Prozac e não de Marx.

Sim: o Radiohead está aí para salgar nossas feridas, para abrir novas e para espalhar pelo ar da cultura um prolongado canto de lamúria, desencanto e protesto. É com certeza a banda mais complexa, fascinante, inspiradora e histórica de nossos tempos. Dá pra dizer sem muito exagero que o impacto que tiveram os Beatles no cenário cultural dos anos 60, o Led Zeppelin nos 70, os Smiths nos 80 ou o Nirvana no dos anos 90 é equiparável à influência do Radiohead no nosso zeitgeist. A angústia existencial e a longa batalha contra a melancolia, além dos temores em relação ao futuro tecnocrático digital, que nos transformaria em “andróides paranóicos” e robozinhos sem coração, dá o tom de uma arte que é o nosso retrato, o nosso abismo e a nossa comoção.

domingo, 22 de março de 2009

:: ! ::




quinta-feira, 19 de março de 2009

:: la seule réponse saine et satisfaisante au problème de l'existence humaine ::


Alguns trechinhos notáveis deste belo livrito (em francês, que é mais chique!):

“Toute notre culture se fonde sur un appétit d'achat, sur l'idée d'un échange mutuellement profitable. L'homme moderne trouve son bonheur à regarder avec frénésie les vitrines des magasins et à acheter tout ce que ses moyens lui permettent d'acquérir, en argent comptant ou à tempérament. Il (ou elle) regarde les gens de la même façon. (...) Ainsi deux personnes tombent-elles amoureuses lorqu'elles ont le sentiment d'avoir découvert le meilleur objet disponible sur le marché, compte tenu des limitations de leur propre valeur d'échange.” (...) “...malgré un insatiable appétit d'amour, profondément enraciné, presque tout le reste passe pour plus important: le succès, le prestige, l'argent, le pouvoir – nous consacrons la presque totalité de notre énergie à apprendre comment atteindre ces objectifs, et nous n'en réservons quasi pas à apprendre l'art d'aimer.”

* * * * *

“L'homme est doué de raison; il est vie consciente d'elle-même... Cette conscience de lui-même comme entité séparée, la conscience de la brièveté de sa propre vie, du fait qu'il a été engendré sans sa volonté et qu'il meurt contre sa volonté, qu'il mourra avant ceux qu'il aime, ou eux avant lui, la conscience de sa solitude et de sa séparation, de son impuissance devant les forces de la nature et de la societé, tout ceci fait de son existence séparée, désunie, une prison insupportable. Il sombrerait dans la folie s'il ne pouvait s'évader de cette prison et tendre vers l'avant, s'unir sous une forme ou sous une autre avec les hommes, avec le monde extérieur.” (...) “La conscience de la séparation humaine, sans réunion par l'amour – est source de honte. Elle est en même temps source de culpabilité et d'angoisse. Ainsi doc, le besoin le plus profond de l'homme est de surmonter sa séparation, de fuir la prison de sa solitude. L'échec absolu à atteindre cet objectif signifie la folie...”

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“...l'amour accompli est une union qui implique la préservation de l'integrité, de l'individualité. L'amour est chez l'homme un pouvoir actif; un pouvoir qui démantèle les murs séparant l'homme de ses semblables, qui l'unit à autrui; l'amour lui fait surmonter la sensation d'isolement et de séparation, tout en lui permettant d'être lui-même, de maintenir son integrité. Le paradoxe de l'amour réside en ce que deux êtres deviennent un et cependant restent deux.”

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“...il y a un autre chemin menant à la connaissance du 'secret': c'est l'amour. Il consiste en une pénétration active d'autrui dans laquelle mon désir de connaître s'apaise par l'union. Dans l'acte de fusion je vous connais, je me connais, je connais chacun – et je ne 'connais' rien. Je connais de la seule manière dont il est possible à l'homme de connaître ce qui est vivant – par l'expérience de l'union – non par une connaissance émanant de la pensée.” (...)“La seule manière de connaître totalement réside dans l'acte d'aimer...”

* * * * * *

“...l'amour est un défi constant; il n'est pas un lieu de repos, mais un mouvement, une croissance, un travail réalisé en commun. Qu'il y ait harmonie ou conflit, joie ou tristesse, c'est secondaire par rapport au fait fondamental que deux personnes se rejoignent à partir des profondeurs de leur existence, qu'elles ne font qu'un l'une avec l'autre en ne faisant qu'un avec elles-mêmes, sans fuir leur propre realité. Il n'y a qu'une seule preuve de la présence de l'amour: la profondeur de la relation, la vitalité et la force de chaque partenaire.”


* * * * *

“...l'amour consiste essentiellement à donner, non à recevoir.” (...) “Le malentendu le plus courant est de croire que donner c'est 'abandonner' quelque chose, se priver de, renoncer. La personne dont le développement caractériel n'a pas dépassé le stade où prévaut la tendance à recevoir, exploiter ou amasser, éprouve le don de cette manière.” (...) “Pour un caractère productif, le don revêt une signification entièrement différente. Il constitue la plus haute expression de puissance. Dans l'acte même de donner, je fais l'épreuve de ma force, de ma richesse, de mon pouvoir. Cette expérience de vitalité et de puissance accrues me remplit de joie. Je m'éprouve comme surabondant, dépensant, vivant, dès lors comme joyeux. Donner est source de plus de joie que recevoir, non parce qu'il s'agit d'une privation, mais parce que dans le don s'exprime ma vitalité.”

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“La plupart des mères sont capables de donner du 'lait', mais rares sont celles qui sont capables aussi de donner du 'miel'. Pour être en mesure de donner du miel, une mère ne doit pas être seulement une 'bonne mère', mais une personne heureuse – objectif qu'il n'est pas fréquent d'atteindre. Il est difficile d'en exagérer l'incidence sur l'enfant. L'amour d'une mère à l'égard de la vie est aussi contagieux que son angoisse.”


* * * * *


“...l'amour est la seule réponse saine et satisfaisante au problème de l'existence humaine, alors toute société qui contrecarre de développement de l'amour doit à la longue périr de sa propre contradiction avec les exigences fondamentales de la nature humaine...”


[erich fromm. "l'art de aimer"]

quarta-feira, 11 de março de 2009

:: the winter of our discontent ::


O INVERNO DE NOSSA DESESPERANÇA
(The Winter of Our Discontent, 1961)
de John Steinbeck



PARA QUE A LUZ NÃO SE APAGUE!
- digressões e análises viajandonas
sobre o Grande Autor Americano! -

Ah, esse danado do Steinbeck! O cara tem o dom! O dom de escrever livros tão arrebatadores, tão convincentes em seu realismo, tão comovedores em suas tramas, com "figuraças" tão inesquecíveis como protagonistas e coadjuvantes, que a gente acaba o safado do livro dizendo: "mas o filho da puta tem o dom, tem o dom!" O dom de elevar "americanos médios" não só ao estatuto de incríveis personagens, mas de seres humanos que transpiram nobreza e dignidade por todos seus sofridos e suados poros. O dom de fazer um retrato fidelíssimo da América concreta, sem idealizar demais a pátria mãe como fazia Whitman em seus versos elegíacos, nem carregar nas cores sombrias e distópicas como fizeram os beatniks e Norman Mailer depois dele, nem centrar fogo demais em temáticas judaicas como fizeram Philip Roth, Saul Bellow e Malamud... O fato é que não consigo conter o meu entusiasmo e digo com muito gosto pelo exagero: dentre todos os autores que já li, considero sem dúvida o Steinbeck o Grande Autor Americano. Sem que isso, claro, o limite a ser um mero expoente desta literatura nacional específica: ele é assim tão grande pois consegue, muitas vezes, atingir o universal e criar certos "emblemas morais" inesquecíveis (não é de chorar aquela cena, ao final de As Vinhas da Ira, em que um seio repleto de leite, de uma mãe que acaba de perder o filho, amamenta um homem esfomeado?).

As Vinhas da Ira, um dos maiores livros que já li nesta vidinha, me parece um exemplo magistral de obra ao mesmo tempo nacional e universal - é um compêndio brilhante de história e cultura americana, que não à toa fascinou e influenciou o jovem Bob Dylan, e é simultaneamente uma narrativa inteligível e curtível por qualquer ser humano sensível e inteligente deste mundo. Apesar de ser um livro profundamente enraizado nos EUA, que retrata um momento bem específico da história americana (a migração rumo à Terra Dourada da Califórnia que realizam os camponeses devastados pela Grande Depressão dos anos 30, ainda mais depois das catástrofes naturais do Dust Bowl), o livro traz uma narrativa tão deliciosa, cativante e comovente que é digna de ser lida e adorada em qualquer latitude do planeta. Talvez até dê pra traçar um paralelo com obras da nossa própria literatura que, apesar de serem essencialmente brasileiras, e frequentemente rotuladas de “regionalistas”, possuem qualidades que rompem todas as fronteiras e podem ter seus encantos reconhecíveis por qualquer russo ou finlandês. Ou será que é realmente preciso ter estudado na escola o que foi a Guerra de Canudos para se embasbacar com o talento literário que transborda de Os Sertões?!

Bom, o Inverno De Nossa Desesperança pode não chegar a ser tão monumental quanto As Vinhas da Ira ou tão profundo em seu mergulho psicológico-existencial quanto A Leste do Éden, mas é outro romance notável do mestre.

Ethan Allen Hawley, o protagonista, começa o livro parecendo ser uma criatura incorruptível, uma flor de lótus em meio ao pântano, mas suas complexidades e paradoxos vêm à tona aos montes quando suas entranhas são expostas pelo bisturi do narrador steinbeckiano. Ele é um personagem infinitamente adorável: extremamente carinhoso e brincalhão com a esposa, fanfarrão e afetuoso com os filhos e genteboa pra caramba com todos os clientes de sua quitanda. Seu divertimento é fazer monólogos interessantes e lotados de gracejos para as latas de ervilha e as linguiças em conserva com quem convive. Parece levar uma vida desencanada e risonha. E é um filósofo do povo – e muito sábio!

“Causam-me surpresa essas pessoas que dizem não ter tempo para pensar. Quanto a mim, posso pensar em dobro quando estou ocupado. Verifico que pesar mercadorias, passar o dia todo a falar com fregueses, brigar ou amar Mary, enfrentar as crianças... nada disso me impede, um segundo sequer, de acumular camada após camada de pensamentos, indagações, conjeturas. Deve ser assim, seguramente, com todo o mundo. Talvez o não ter tempo de pensar seja o não querer pensar.” (204)

Ethan parece ser muito benquisto pela comunidade, que o considera um excelente sujeito, ainda que muitos, por vezes, fiquem pasmos com o fato dele ser inteiramente honesto. “Um homem honesto pode deixar a gente completamente zonzo", comenta um personagem (248). Sim: num “mundo de escroques”, não é raro que a gente se sinta “abalado por um cintilante raio de luz de honestidade” (254).

Pois Ethan dá a impressão, no começo do livro, de estar satisfeito com sua vida simples, ainda que o fantasma de seus antepassados ricos o assombre. Pois é como se ele fosse um exemplar menos digno da dinastia dos Hawley, que já foram grandes donos de grandes navios mercantes e piratas de muito garbo. Os Hawley de hoje não tem nem televisão, que dizer de grana pra torrar ou posição social respeitável! Viraram uns pobretões. E aos poucos esse desconforto material começa a aflorar.

Aí notamos que mesmo este homem trabalhador, bem-humorado, doce e semi-resignado à sua semi-pobreza não consegue escapar das garras da ideologia que o rodeia e que foi implantada, mesmo à sua revelia, na sua mente. Num país em que “todos fazem uma reverência ao Grande Deus Dinheiro” (145), é difícil, mesmo para um sujeito tão bacana quanto Ethan, viver desapegado das ambições materiais. Até mesmo porque sua esposa Mary e seus filhos não param de cutucá-lo para que ele dê um jeito de faturar um troquinho a mais, que permitisse um ou outro luxo adicional... Um americano “ascético” e bem pouco materialista como Ethan nota nos próprios filhos um materialismo indesejável vicejando: Ethan Jr., o filho caçula, se vale de plágios e citações indevidas para ganhar um concurso de redação com o tema “Por Que Amo a América”, louco que está de aparecer na televisão e visitar New York. Bem simbólico! Afinal, para se andar de cabeça erguida nas plagas do Tio Sam é preciso mais que virtude: é preciso grana e poder.

O Inverno de Nossa Desesperança me parece ser o relato de como um homem procura conciliar seu desejo de “subir na vida” com um anseio igualmente profundo de manter-se um “homem bom”. Nada tão distante assim dos anseios da família Joad, em As Vinhas da Ira, que também partem em sua epopéia rumo à uma vida melhor na longínqua e utópica Califórnia, mas não aceitando cometer no caminho nenhuma indignidade ou vilania, certo?

Ethan pode até temer os poderes corruptores do dinheiro, mas não consegue evitar o sonho de possuí-lo em maior quantidade, para o conforto e digniddade da família, ainda que saiba que dinheiro é como a droga para um junkie: you just can't get enough. Diz à esposa, por exemplo: “Ó, minha princesa, não existe isso de 'apenas o dinheiro suficiente'. Existem apenas duas medidas: ou falta de dinheiro, ou dinheiro que não é nunca suficiente.” (122)

Eis então que o livro, de retrato de um americano bacaninha, com seu trampo humilde e sua família bonitinha, passa a ser a descrição de uma metamorfose: “O camundongo ia adquirindo juba de leão” (191). Ethan Allen Hawley, o filósofo da quitanda, começa a se questionar se sua vidinha não poderia receber um boost, se ele não teria se acomodado à mediocridade, se um salto para cima não era possível, se o hábito de acostumar-se ao morno e ao sem sal não seria um vício...

“Um homem pode habituar-se a tudo. Matar, servir de coveiro ou até mesmo participar de um pelotão de fuzilamento; torturar, destruir, pode converter-se apenas numa tarefa, quando a gente se acostuma. (...) Uma vez arranjei um emprego no qual era obrigado a transportar nitroglicerina numa fábrica de dinamite. O salário era alto, pois a coisa era arriscada. A princípio, eu me preocupava com todos os passos que dava, mas, depois de uma semana ou pouco mais, aquilo se converteu apenas numa tarefa comum. Se eu me havia habituado até a ser caixeiro de mercearia!” (133)

Enquanto ele conversa com seus legumes (ah! essa necessidade humana crucial de um interlocutor, de um ouvido receptivo, ainda que imaginário, ainda que leguminoso!), as águas se agitam em seu lago. É como se ele depositasse inconfessáveis confissões no Poço de Andersen, o que faz com que seu diálogo interior mergulhe fundo em temas morais e existenciais: “Suponhamos que a minha humilde e interminável condição de empregado de mercearia não constituísse virtude alguma, mas simplesmente preguiça moral?”, pergunta-se (99)

Ethan, como bom americano, tinha lutado na guerra metendo bala nos nazistas e já conhece o sabor de derramar sangue conservando intacto um senso de estar “do lado Certo” - with God on his side. Neste momento de sua vida em que Steinbeck o retrata, ele parece se perguntar: poderia eu voltar a suspender minha moralidade, ainda que temporariamente, para conquistar um maior conforto material para minha família, e depois voltar a ser esse sujeiro extremamente decente e ético que sempre fui?

O trecho seguinte é magistral e uma das chaves do romance:

“A guerra não me convertera em assassino, embora eu, durante algum tempo, tivesse matado homens. O fato de enviar patrulhas em missões perigosas, sabendo que muitos dos homens morreriam, não despertava em mim nenhuma alegria por seu sacrifício, como acontecia com outros, e eu jamais poderia sentir satisfação pelo que fizera, nem desculpar ou perdoar os meus atos. O importante era reconhecer o objetivo limitado e, uma vez alcançado este, deter o processo em sua marcha.” (221) “Não me sinto culpado pelas vidas dos alemães que matei. Suponhamos que, durante um tempo limitado, eu abolisse todas as normas de conduta, e não apenas algumas. Uma vez alcançado o objetivo, acaso não se poderia adotar de novo todas essas normas? Não há dúvida de que o mundo dos negócios é uma espécie de guerra. (...) Se, durante algum tempo, eu deixasse de lado as normas de conduta, sei que carregaria comigo as cicatrizes, mas acaso seriam piores do que as marcas do fracasso que eu carregava? Estar vivo é ter cicatrizes.” (100)

É assim que esse personagem, que os leitores certamente acabam vendo com simpatia e amabilidade (um puta dum gente fina, divertido e sensato!), quase se converte num criminoso. O que decerto chocaria toda a comunidade de New Baytown, que vê nele um exemplo ético e pretende fazer dele prefeito. Por muito pouco o modesto quitandeiro não acaba se tornando um assaltante de banco, daqueles que torna-se ou um milionário do dia para a noite, ou um desses que morre na sarjeta, alvejado pelo segurança, e recebe um cruel obituário nos jornais do dia seguinte...

Mas isso não quer dizer, de modo algum, que Steinbeck esteja condenando sua criação, como se dissesse: “vejam, no fundo, no mais secreto do coração, no íntimo deste humilde e honesto trabalhador, repousava um materialista adormecido, prestes a despertar com um revólver em mãos e a ganância em chamas!” Não. A sensação que o livro nos passa é muito mais outra: a de que todo ser humano é um fluxo inconstante de desejos e medos, anseios e inibições, ambições e freios éticos, sendo absolutamente impossível imaginar essa ficção utópica que seria um “homem 100% bom” (ou 100% mau) - ou seja, que fosse bom ou mau todo o tempo. “Santo Deus, que mixórdia de impulsos desencontrados um homem não é!”, comenta Ethan (225).

“A gente o vê na guerra: um covarde convertendo-se em herói e um homem corajoso caindo em chamas. Ou, então, a gente lê jornal da manhã acerca de um homem bondoso e amável que mata a esposa e os filhos a machadadas. Creio que o homem se transforma incessantemente. Mas há certos momentos em que a mudança se torna perceptível.” (95)

Talvez aí esteja uma das maiores virtudes deste brilhante psicólogo que é o romancista Steinbeck, que tão fundo penetrou nos mistérios da alma humana, especialmente na do homem americano esfarrapado, esfomeado ou alijado de dignidade: o fato dele mostrar essa tensa gangorra que existe entre o desejo de conforto material, plantado na mente de todos pela ideologia capitalista americana, e a exigência ética-existencial de não se corromper em demasia na busca desta riqueza, danando assim a alma. Isso se alça até o universal pois diz respeito a todos: ricos e pobres e todos entre eles. Não há por aqui respostas fáceis, finais felizes, bandidos e mocinhos bem definidos ou consolos tolos e ilusórios. Nem há uma fixidez de propósitos ou desejos nesta coisa fluida como uma enxurrada que é o coração humano. Tudo é infinitamente difícil, parece nos dizer Steinbeck, mas... se a jornada fosse fácil, como seria possível o surgimento de seres humanos que resplandecem com tamanha nobreza e dignidade quanto estes que Steinbeck retrata e emoldura com tanta maestria? São eles que, num cenário sempre um tanto sombrio, carregam suas frágeis tochas, mantendo-se vivos, às vezes contra os mais cruéis cansaços e desgastes, na batalha para que a luz não se apague.

“E não é verdade que haja uma comunidade de luzes, uma fogueira mundial. Cada qual carrega a sua luz – a sua própria luz solitária.” (305) – comenta Steinbeck, melancólico, tocando um acorde de réquiem no fim de seu romance. Mas, como sempre, ainda que a tragédia se acerque destes personagens, é sempre com um tom de esperança que a narrativa se desfaz, como se no mundo pudéssemos fazer bem melhor do que fizeram aqueles personagens dos livros, como se pudéssemos aprender, talvez, a inventar por aqui esta fogueira mundial unindo nossas pobres e dispersas luzes solitárias.

quarta-feira, 4 de março de 2009

:: o comilão ::

:: TUDO QUE O AMOR COMEU ::


O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome. (...) O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. (...) O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água. (...) O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. (...) O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

(JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

O amor roeu meus muros,
abriu fendas na minha fortaleza,
me deixou translúcido e permeável.
A carne transformada em vidro cristalino.
E eu pulsando inteiro
Como se o coração não estivesse no peito
Mas em toda parte.

O amor comeu meus mapas e bússolas,
rasgou minhas velas e agitou os meus mares,
me fornecendo a magnífica vitória
que foi me perder
em você.
O amor veio e rompeu os diques
que mantinham contidas
as enxurradas da ternura represada.

Comeu meus planos de ser ordeiro e sereno,
de ter as noites calmas e sem esperança,
em que dorme em sossego o desejo.

Comeu meu silêncio e minha pouquidão de palavras,
me fazendo tagarelar momos e pieguices sem fim.
Comeu o pudor dos meus toques,
Descongelou os gestos de carinho
Acendeu nos meus olhos marejados uma chama.

O amor comeu minhas vergonhas, minhas roupas, minha compostura,
desencadeou a epidemia dos suores, dos tremores, dos fluidos.
Devorou minhas geleiras, tacou fogo em meus icebergs,
derreteu as nuvens negras no céu da mente,
que choveram em tempestades de beijos.
Comeu meu medo da aventura e da entrega – e me ensinou a ir.
Passeando por teus montes e abismos, picos e funduras,
turista extasiado explorando as doces geografias do teu corpo...

Depois o amor foi, mordeu e engoliu a minha carteira,
meus cartões de crédito, meus sonhos de consumo.
Me deu escárnio pela matéria e pelos que veneram cédulas.
Mandou goela abaixo meu carro, minha casa, minhas posses.
Comeu todos os centavos que eu tinha no bolso,
e limpou minha conta no banco,
me largando
mendigo de níqueis mas bilionário de estrelas.
Rico da única riqueza que importa.

O amor comeu minha filosofia, minha ideologia, minhas certezas.
Me fez magneto pulsante de saborosas sensações.
Comeu minhas opiniões, minhas leituras, meus saberes,
até que restasse somente o amor como única convicção.

O amor comeu minha maturidade,
Me fazendo menos sério e lindamente tolo.
De novo menino pedindo colo
Ou implorando por algodão doce.
Que brinca de fazer cócegas
E se diverte a te arrancar risinhos...

O amor comeu meu ódio pela vida,
a náusea, o cansaço, o tédio, a repulsa.
O amor me fez amá-la.

Engoliu a melancolia e vomitou alegria.
Devorou o medo, a angústia,
os calafrios por um dia ter que morrer.

Dilacerou com os dentes cada fibra da solidão.
Comeu as corujas, os urubus, as teias de aranha,
todos os cemitérios internos de sonhos mortos
todas as mágoas amargas por afetos desfeitos
todas as cartas de amor jamais respondidas
todas as passadas paixões amadas em vão
todas as nuvens negras que me barravam o sol
todas as nostalgias que tinha por um deus defunto
e toda a solitude que reinava no leito, no caminho, no peito.

O amor comeu o escuro e o frio,
as cortinas e as janelas e os batentes das portas,
abrindo alas
a golpes de doçura e benignas mordidas
para o desfile
de si mesmo.

Comeu as distâncias invencíveis,
os abismos intransponíveis,
o temor de enfrentar pontes bambas.
As correntes, os cadeados, as camisas de força.
A contenção, a sobriedade, a frieza,
O distanciamento, o deserto, a sede.

O amor, como uma fera faminta,
avançou sobre os suculentos frutos da terra,
esquecido do céu, indiferente ao céu,
crente de poder construí-lo AQUI.
O amor comeu a fé.
O amor comeu a dor.
E o amor comeu a morte.
E o amor comeu a ira.
E o amor comeu o mal.
O amor comeu tudo, tudo, TUDO!

Até que em mim
Não sobrasse nada
Além da glória
De ser por ele devorado.