quarta-feira, 4 de março de 2009

:: o comilão ::

:: TUDO QUE O AMOR COMEU ::


O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome. (...) O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. (...) O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água. (...) O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. (...) O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

(JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

O amor roeu meus muros,
abriu fendas na minha fortaleza,
me deixou translúcido e permeável.
A carne transformada em vidro cristalino.
E eu pulsando inteiro
Como se o coração não estivesse no peito
Mas em toda parte.

O amor comeu meus mapas e bússolas,
rasgou minhas velas e agitou os meus mares,
me fornecendo a magnífica vitória
que foi me perder
em você.
O amor veio e rompeu os diques
que mantinham contidas
as enxurradas da ternura represada.

Comeu meus planos de ser ordeiro e sereno,
de ter as noites calmas e sem esperança,
em que dorme em sossego o desejo.

Comeu meu silêncio e minha pouquidão de palavras,
me fazendo tagarelar momos e pieguices sem fim.
Comeu o pudor dos meus toques,
Descongelou os gestos de carinho
Acendeu nos meus olhos marejados uma chama.

O amor comeu minhas vergonhas, minhas roupas, minha compostura,
desencadeou a epidemia dos suores, dos tremores, dos fluidos.
Devorou minhas geleiras, tacou fogo em meus icebergs,
derreteu as nuvens negras no céu da mente,
que choveram em tempestades de beijos.
Comeu meu medo da aventura e da entrega – e me ensinou a ir.
Passeando por teus montes e abismos, picos e funduras,
turista extasiado explorando as doces geografias do teu corpo...

Depois o amor foi, mordeu e engoliu a minha carteira,
meus cartões de crédito, meus sonhos de consumo.
Me deu escárnio pela matéria e pelos que veneram cédulas.
Mandou goela abaixo meu carro, minha casa, minhas posses.
Comeu todos os centavos que eu tinha no bolso,
e limpou minha conta no banco,
me largando
mendigo de níqueis mas bilionário de estrelas.
Rico da única riqueza que importa.

O amor comeu minha filosofia, minha ideologia, minhas certezas.
Me fez magneto pulsante de saborosas sensações.
Comeu minhas opiniões, minhas leituras, meus saberes,
até que restasse somente o amor como única convicção.

O amor comeu minha maturidade,
Me fazendo menos sério e lindamente tolo.
De novo menino pedindo colo
Ou implorando por algodão doce.
Que brinca de fazer cócegas
E se diverte a te arrancar risinhos...

O amor comeu meu ódio pela vida,
a náusea, o cansaço, o tédio, a repulsa.
O amor me fez amá-la.

Engoliu a melancolia e vomitou alegria.
Devorou o medo, a angústia,
os calafrios por um dia ter que morrer.

Dilacerou com os dentes cada fibra da solidão.
Comeu as corujas, os urubus, as teias de aranha,
todos os cemitérios internos de sonhos mortos
todas as mágoas amargas por afetos desfeitos
todas as cartas de amor jamais respondidas
todas as passadas paixões amadas em vão
todas as nuvens negras que me barravam o sol
todas as nostalgias que tinha por um deus defunto
e toda a solitude que reinava no leito, no caminho, no peito.

O amor comeu o escuro e o frio,
as cortinas e as janelas e os batentes das portas,
abrindo alas
a golpes de doçura e benignas mordidas
para o desfile
de si mesmo.

Comeu as distâncias invencíveis,
os abismos intransponíveis,
o temor de enfrentar pontes bambas.
As correntes, os cadeados, as camisas de força.
A contenção, a sobriedade, a frieza,
O distanciamento, o deserto, a sede.

O amor, como uma fera faminta,
avançou sobre os suculentos frutos da terra,
esquecido do céu, indiferente ao céu,
crente de poder construí-lo AQUI.
O amor comeu a fé.
O amor comeu a dor.
E o amor comeu a morte.
E o amor comeu a ira.
E o amor comeu o mal.
O amor comeu tudo, tudo, TUDO!

Até que em mim
Não sobrasse nada
Além da glória
De ser por ele devorado.