- acho que isso inaugura a seção FILOSOFAGENS, mas sei lá se isso aí é mesmo filosofia ou simplesmente o ato de ficar perguntando, perguntando e perguntando sem nunca achar resposta... Enfim, fazer os outros duvidarem comigo talvez seja tão útil quanto tentar responder. A coisa mais estranha que existe no mundo é que as pessoas não acham nada estranho. -
SOBRE A ESTRANHICE DE NASCER
“Quando considero a pequena duração da minha vida, absorvida na eternidade precedente e seguinte, o pequeno espaço que ocupo e, mesmo, que vejo, abismado na infinita imensidão dos espaços que ignoro e que me ignoram, eu me assusto e me espanto ao me ver aqui, e não ali, porque não há razão nenhuma de ser aqui e não ali, de ser agora e não então. Quem me pôs aqui? Por ordem e conduta de quem este lugar e este tempo foram destinados a mim?” PASCAL
Por que eu sou eu? Por que qualquer pessoa é ela mesma?
Essa pergunta tem me apoquentado muito. O incrível é que não encontro em livro algum, em pensador algum, em psicólogo algum, nenhuma tentativa de responder a pergunta da maneira como eu a coloco, e acabo, como sempre, com mais uma pergunta irrespondida, eu que sempre tive mais problemas que soluções e mais dúvidas do que certezas... Claro que há teorias explicando como se forma a personalidade, mas não estou perguntando por que tenho a personalidade que tenho. Estou perguntando por que eu sou eu e não um outro. São coisas diferentes. Para explicar a gênese da personalidade, pode-se recorrer à herança genética, à influência do ambiente, ao condicionamento da cultura via ideologias e mitologias, à educação recebida, à experiência de vida do indivíduo, às memórias e às aspirações, aos valores possuídos, etc. etc. etc. Posso explicar razoavelmente bem que sou quem sou dizendo que isso se deve à família que tenho, à educação que recebi, ao momento histórico onde vivo, à ideologia com a qual me bombardearam, às experiências pelas quais passei etc. Se eu tivesse nascido na Idade Média, ou se tivesse sido filho de terroristas muçulmanos, ou se fosse um somaliano raquítico morrendo de fome, eu seria certamente outro.
Mas a pergunta que me faço não diz respeito à formação da personalidade. Mas sim... como explicar por que nasci nessa família em particular, nesse momento histórico, com essa cara, com esse corpo, nesse lugar...? Não dá pra entender porque nasci quando nasci, e onde nasci, e dos pais que nasci. É absolutamente incompreensível. Por quê Brasil, 1984, e não qualquer outro lugar e tempo? Por quê não nasci no tempo de Cristo, no de Sócrates, no de Hitler, no de Agostinho? Por quê não sou francês, alemão, argentino, somaliano? Por que meus pais não são negros, índios, loucos, muçulmanos? E, mais geralmente, por que sou um homem e não um macaco, um leão, uma víbora, uma pulga? E (vamos até o fundo!) por que existo ao invés de não existir? Por que nasci ao invés de nunca ter nascido? Acho muitíssimo estranho - absolutamente absurdo, na verdade - isso de eu ter nascido no ano 1984. É um número muito grande! Isso quer dizer que muito tempo se passou antes que eu viesse a nascer. Bilhões e bilhões de bichos andaram pela Terra e viveram e se reproduziram e morreram e apodreceram antes de 1984, e eu não estava por aqui. Por que então surgi? O mundo seguiria muito bem se eu nunca tivesse surgido. Não sou exatamente uma existência fundamental para o Cosmos. Não, isso não sou mesmo.
E sei bem que não foram somente 1984 anos transcorridos antes do meu nascimento, mas infinitamente mais, milhões, bilhões, trilhões de anos... E onde estava eu durante esse período anterior ao meu nascimento? Pergunta estranhíssima! Mas se eu não existia... Incompreensível isso: esperar trilhões de anos, lá "dentro do nada" (estou louco mesmo... foi isso que eu disse: LÁ DENTRO DO NADA!), para enfim, num dia qualquer, finalmente nascer. Por quê nasci? Se morei tanto tempo dentro do nada, por que não poderia lá permanecer eternamente? Eu não reclamaria. Quem iria reclamar, se eu não existiria?
Mas o fato é que nasci. Não pedi pra nascer, não escolhi o momento histórico dentro do qual eu deveria ser inserido, nem o local do Terra onde seria jogado, nem muito menos as pessoas que me deram a vida e que daí em diante comecei a chamar de meus pais, nem que tipo de animal ou coisa eu seria, mas o fato é que assim, indesejadamente, estranhamente, absurdamente, nasci, em 1984 depois de Cristo, ser humano, brasileiro, filho de um João e de uma Mara. Coisa muito estranha.
Ah, como seria fácil recorrer ao eterno estratagema humano para a fácil resolução dos problemas, o bom e velho Deus! Poderia me dizer que nasci onde, quando e como nasci pois "assim quis o bom Deus", assim estava escrito "lá em cima"... Ou que minha alma já penetrou em muitos corpos antes deste que agora ocupa, e que muitas mortes já morri, e que já transmigrei para diversos organismos diferentes, e assim continuarei quando esse corpo onde agora estou encarcerado finalmente morrer... Mas não posso. Não tenho fé, que posso fazer? Ao deixar de crer em Deus transformei minha existência em algo absolutamente incompreensível pra mim mesmo?
E mais: será verdade que eu tenha morado dentro do nada durante todo o tempo anterior ao meu nascimento? Existe o nada? Mas se o nada é algo que existe, como pode ser nada? Não terei existido antes, sob outras formas? Não terei sido, talvez, uma pulga nas cuecas de Platão, um carneiro no rebanho de Jesus, uma chama nas fogueiras da Inquisição, um verme no caixão de John Lennon, até finalmente me tornar num insignificante brasileiro que nada entende da vida? Afinal, o que é que me impede de ter sido realmente uma pulga no passado? Se eu não estava ocupado sendo aquilo que sou hoje, estava livre para gastar meu tempo sendo outras coisas. Assim me parece. Posso ter sido outras pessoas? Eu posso ter sido um outro, que depois de aniquilado pela morte, virou outro, sem lembrar-se do que foi? Mas se eu era outro, como poderia ele ser eu?
Que não se enganem: não acredito em alma, em transmigração, em reencarnação, essas invenções humanas criadas pro nosso consolo e para o respondimento das perguntas que não podem ser respondidas pela razão... Sigo materialista: creio que eu não passo de um amontoado de carne, ossos, vísceras, sangue, tecidos, tripas, miolos, pêlos, líquidos - não passo de um amontoado de matéria. Não nego ter pensamentos, sonhos, desejos, devaneios, imaginações e sentimentos, mas não acho que isso seja causado por nenhuma substância imaterial e imortal, nenhuma alma, mas que seja tudo resultado, efeito, consequência da matéria. Isso não resolve nada. Uma pulga também é um amontoado de matéria. Por que sou esse amontoado X e não aquele amontoado Y?
Sem dúvida alguma, ter nascido foi a coisa mais esquisita que já me aconteceu.