sábado, 11 de março de 2006


A NOITE AMERICANA
de François Truffaut
(La Nuit Américaine / Day For Night, 1973)


Dos "filmes metalinguísticos" que procuram fazer, através do cinema, uma reflexão sobre o que cinema, esse adorável A Noite Americana é de longe um dos melhores. Pode não ser tão cáustico e finamente irônico quanto o magnífico O Jogador, de Robert Altman, nem tão incisivo na crítica à Indústria Cultural quanto o Barton Fink dos irmãos Cohen, nem tão genial e dionisíaco quanto o Oito e Meio do Fellini, nem conter uma análise de personagem tão brilhante quanto A Malvada de Joseph Mankiewicz, mas é certamente o mais divertido do gênero e, talvez, o mais apaixonante e o mais prazeiroso de assistir.

Vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1973, essa pequena pérola de François Truffaut parece, à primeira vista, somente um aglomerado de causos bizarros e engraçados que envolvem a arte de fazer cinema, reunidos numa fina comédia que se centra num behind-the-scenes de um filme falso. Eis um filme sobre pessoas fazendo um filme, e não se sai disso. Mas com que classe a coisa é feita...! Truffaut, que já era em 73 um reconhecido Grande Mestre da sétima arte, com toneladas de experiência acumulada e a maioria de seus grandes clássicos já lançados (Jules e Jim, Atirem No Pianista!, Os Incompreendidos são todos dos anos 50 e 60), fez em A Noite Americana uma bela crônica das desventuras de um cineasta e do árduo processo de parto de um filme. Acabou cometendo uma obra que, além de deliciosa de ver, mostra bem como se pode ser leve e divertido sem ser fútil. Esse é daqueles filmes pra fazer a gente sair do cinema incomparavelmente mais apaixonado pelo cinema do que era ao entrar...

Truffaut (que ataca também de ator e interpreta justamente o diretor do "filme dentro do filme") nos oferece aqui um delicioso painel do que significa ser um cineasta e de todas as aporrinhações que tornam esse trabalho um tanto complicado, estressante e cheio de imprevistos. Não é somente pelas gags, aliás engraçadíssimas, que vale esse A Noite Americana - ele vai muito além disso. A idéia principal é demonstrar o quanto de jogo-de-cintura, de corrida-contra-o-tempo, de fria paciência, de veloz improvisação e de criatividade é necessário para que o diretor consiga sobreviver ao caos do set e aos ataques do acaso... De certo modo, Truffaut faz elogio próprio, glorifica sua própria profissão, faz do cineasta um símbolo da bravura e do heroísmo, mas nem dá pra se sentir mal com esse "narcisismo". No fundo, o que acontece é que Truffaut nos faz sentir todo o imenso prazer que ele sinceramente sente como cineasta e amante de cinema - e um pouco desse amor e dessa empolgação dele certamente nos é transmitido e fica impregnado (felizmente!) em nós...

O que A Noite Americana deixa claro é que o cinema, como arte essencialmente coletiva, sofre com certas desvantagens e complicações: é preciso contar com a cooperação de pessoas frequentemente instáveis, excêntricas e falíveis, que possuem frequentemente interesses conflitantes e vícios abundantes, especialmente a vaidade e a ambição, num set superlotado e onde os mínimos detalhes tem que ser levados em conta. O acaso e o azar também não poupam ninguém: muitas vezes um ator morre durante as filmagens, ou uma atriz entra em crise nervosa e histérica, ou casinhos de amor, ciúme e traição ameaçam transformar o set num palco para o correr de sangue... Aos trancos e barrancos, e no improviso, vai-se seguindo em frente... E é papel do diretor ser o maestro desses músicos tão dissonantes a fim de tentar tirar daí alguma melodia digna. Tudo isso está maravilhosamente exemplificado nos inúmeros episódios do filme.

Além disso, A Noite Americana é também uma Aula de Desilusão, que põe às claras o quanto o cinema se utiliza de inúmeras técnicas de ilusionismo para se tornar uma verdadeira arte da enganação - o que todos sabemos bem, mas às vezes preferimos esquecer. As cenas em que a equipe de produção fabrica tempestades e nevascas artificiais, ou o jeito que arrumam pra filmar o desastre automobilístico, no contínuo esforço de fazer o fake parecer autêntico, diverte e instrui tanto quanto os melhores making-ofs que já se viu. Mostrando o quanto é difícil tornar verossímil o artificial, o filme acaba por nos fazer admirar ainda mais o esforço de todos os envolvidos com o cinema e a fabricação desses "mundos artificiais" a serem projetados numa tela de uma sala escura... A Noite Americana, no fundo, prova que fazer um filme é uma dureza, uma batalha, uma guerra - mas tornando essa dificuldade patente, nos faz achar o resultado - os filmes em si - ainda mais meritórios e admiráveis...

Apesar de ser um filme de ficção, e com um roteiro muito bem bolado, A Noite Americana mostra Truffaut engajado numa certa visão do cinema que me parece, paradoxalmente, anti-cinematográfica, como se dissesse que, apesar de tudo, o cinema não importa tanto assim: a vida vale mais, e a vida é o mais urgente. De certo modo, saímos desse filme com a certeza de que a vida é muito mais interessante do que um filme costuma ser, e que as pessoas reais são muito mais dignas de serem filmadas e terem suas vidas expostas do que quaisquer personagens...

A Noite Americana não deixa de ser crítica cinematográfica, eis o ponto. Truffaut sugere que o cinema tradicional, representado aqui pelo "filme dentro do filme", costuma registrar em fita uma realidade manipulada para parecer cheia de sentido, de ordem, de drama e de espetacularidade, quando nossas vidas, mais absurdas, menos gloriosas, não se assemelham muito às pinturas (distorcidas) que dela fazem a maioria dos cineastas. De modo que Truffaut, mesmo que encerrado no cinema de ficção, volta seu olhar para a vida, não tenta maquiar a verdade dela, não tenta embelezar nem distorcer, prefere o real ao imaginário... Filmando uma filmagem, o que Truffaut fez, na verdade, foi escolher registrar a vida como ela é - ou ao menos uma parcela desse negócio imenso e inesgotável que é a tal da vida como ela é.

E eu não posso deixar de considerar essa uma excelente decisão: Truffaut usa aqui o cinema, não para iludir ou para distorcer, mas para registrar, com um olhar cheio de amor e de afirmação, a vida em si, a vida e sua adorável imperfeição, a vida e sua bela anarquia... O resultado não poderia ser mais positivo: é possível sair da sessão, ao mesmo tempo, com um maior amor pelo cinema e um maior amor pela vida, ao mesmo tempo, o que não é um efeito dos mais comuns, apesar das aparências. A moral da história? Arrisco essa: a vida é mais fácil de amar porque existem filmes, e os filmes são mais fáceis de amar quando não mentem sobre a vida...

(12/03/2006, num pique só.)

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(...tem biografia e filmografia do Trúfô aqui no Allmovie... tem mais resenhas aqui no ROTTEN TOMATOES... esqueci de dizer q outro imenso atrativo do filme é a presença da gatérrima Jacqueline Bisset como protagonista, uma das 30 estrelas de cinema mais bonitas da História segundo esse site... 1o filme visto no CINUSP - meu relacionamento com ele promete!)