domingo, 26 de março de 2006


Algumas razões que explicam porque gosto tanto de "O Jardineiro Fiel" (uma resenha em "asterísticos"!):

* Gosto que o filme demonstre como homens e mulheres comuns, sem grande poder ou influência, e sabendo do risco de vida que correm, ousem se levantar contra as megacorporações multinacionais e sua falta de escrúpulos. Gosto desse heroísmo da formiga que briga com o elefante porque sabe que, mesmo que acabe por ser esmagada, tem o direito e o dever de reclamar, gritar, lutar.

* Gosto da transformação de caráter ocorrida com Justin Quayle (Fiennes): antes ele era o diplomata racional e contido, certo de que não devia se envolver diretamente com atos de caridade (as Nações Unidas e outras instituições não estão aí para isso?), fiel defensor do cada-um-por-si; ao fim do percurso, se torna um entusiástico seguidor da moral militante e altruísta de sua ex-esposa. Gosto do modo sutil que o filme tem de sugerir que aquilo que o mundo mais precisa é da paixão, da indignação e do trabalho duro de uma Tessa do que do afastamento e semi-indiferença racionalóide do Justin inicial.

* Gosto de que esse seja um filme americano de grande porte que teve seu leme comandado, e com mãos de mestre, por um diretor brasileiro jovem, fresco, original, renovador. Gosto que um "ponto de vista de Terceiro Mundo" domine o filme, demonstrando através de um exemplo particular o modo como as grandes corporações (e os governos federais do primeiro mundo, que frequentemente são coniventes a elas), utilizam a África como um quintalzinho onde a vida é barata e desimportante, cuja exploração paga os benefícios da nossa querida civilização... E isso faz séculos e séculos.

* Gosto que o filme não caia numa certa frieza e num certo racionalismo comum a muitos thrillers políticos que, tão preocupados em descrever relações entre políticos, governantes e funcionários do Estado, exilam da obra qualquer tipo de emotividade. Gosto que haja uma história de amor dentro do filme de conspiração, principalmente quando este romance é contado de modo tão sutil e tão agradável: por meio de flashbacks que vão direto a aos momentos significativos na vida do casal, deixando fora as insignificâncias e construindo um painel de olhares, de sorrisos, de toques, de diálogos... Gosto do velho tema dos "opostos se atraem" se repetindo aqui, só que mais em termos de diferenças em relação à postura política, e do modo como o viúvo vai lentamente descobrindo a verdadeira face da sua esposa enquanto vai se aprofundando em sua investigação. Gosto que a fidelidade em questão, longe de ser entendida no sentido mais banal, é algo de mais profundo: a fidelidade de Justin não tem nada a ver com abstinência sexual ou castidade; é uma fidelidade ao que Tessa construiu, à luta que ela empreendeu, ao trabalho que deixou inacabado, ao ideal que a animava, enfim, à pessoa que ela era, com toda sua convicção, coragem e idealismo... Gosto do modo como a morte, nesse caso, longe de destruir a conexão entre os dois, é algo que a aprofunda. Gosto do modo como a vivacidade e a coragem de Tessa, mesmo que seja muito depois da morte dela, consegue chaqualhar a apatia de Justin e o modificar profundamente.

* Gosto do fato de que Fernando Meirelles tenha convencido toda sua equipe a filmar realmente no Quênia, ao invés de em alguma outra locação fingida, fazendo todos realmente se afogarem naquele ambiente sufocante de calor e de miséria, mais pobre que qualquer favela brasileira, mais trágico que muito campo de concentração... Gosto de ver os habitantes de Nairóbi aparecendo frequentemente na tela, sem disfarces, sem atuação e sem roteiro, o que dá um clima de realidade e de improviso a um filme que, também no seu estilo de filmagem e montagem, é sempre vivo, urgente, esperto. Gosto do modo como os quenianos não são somente mostrados como coitadinhos dignos de piedade.

* Gosto de pensar que um brasileiro esteja dando uma aula de cinema para os norte-americanos, frequentemente tão arrogantes e tão convictos de serem os melhores nessa arte... Depois do mexicano Alejandro González Iñarritu realizado aquela obra-prima irretocável que é o 21 Gramas, agora é a vez de um brasileiro deixar sua marca utilizando toda a engrenagem técnica do cinema americano. Mais do que a seleção brasileira, mais que qualquer esportista adorado por aqui, mais do um Paulo Coelho ou um Pato Fu, Fernando Meirelles é uma das poucas personalidades brasileiras que me dá aquele sentimento, que aliás sinto tão raramente, de ORGULHO NACIONAL...

* Gosto que Tessa já seja dada como morta no começo do filme, antes que a gente tenha tempo de se envolver emocionalmente com ela, o que evita que o filme, mais pra frente, tenha que apelar para o velho truque melodramático de uma morte inesperada e dolorosa da heroína. Gosto da sutileza com que o luto e a dor pela perda é mostrada, sem exageros histéricos, sem apelação. O modo como o filme usa o contraste de cores para criar efeitos sentimentais, apesar de tão simples, me parece certeiro... Aquele tom azulado, acizentado e decadente que toma conta da tela quando Justin está em meio aos destroços da antiga casa, chorando com o rosto colado ao vidro, é entrelaçado com aquelas cenas cheias de claridade, como se houvesse um Sol brilhando dentro daquele quarto quando os amantes estavam juntos... Gosto dessa dolorosa saudade nos sendo transmitida só por imagens, flashes, mudanças de coloração. Poucos filmes antes me mostraram tão bem como usar o contraste de cores - só Traffic, que eu me lembre... - para mudar o tom emocional.

* Gosto de como o filme demonstra bem o quanto as empresas procuram fabricar uma fachada de preocupações humanitárias (testes gratuitos para tuberculose, remédios gratuitos supostamente distribuídos para a população...), que escondem interesses e atos repugnantes. A KDH e a Three Bees, as empresas fictícias do filme, à primeira vista parecem preocupadas com a melhora das condições de saúde da população africana, mas depois se torna claro que estão somente usando os quenianos como COBAIAS para o teste de remédios que podem causar sérios e letais efeitos colaterais. Os quenianos aqui não são nada muito diferente de ratos de laboratório que, se acabam por morrer, bem... isso não importa muito. "Só estamos matando gente que iria morrer de qualquer jeito", ousa dizer Sandy, um dos empresários. Gosto da indignação que eu sinto ao ouvir essa frase.

* Gosto da economia no sangue artificial e nas cenas chocantes, principalmente depois do espetáculo frequentemente gore e tarantinesco que Meirelles criou em Cidade de Deus. Gosto do que o filme não mostra: nem o cadáver de Tessa, nem a agonia de Justin, são explicitamente lançados ao nosso olhar - Meirelles, ao contrário do que eu esperava, se moveu para longe da glamourização da violência do seu filme anterior, se preocupando muito mais com a sutileza e com uma certa "ambientação emocional".

* Gosto do medo que o filme nos causa a respeito da nossa futura dependência em relação a alguma dessas empresas farmacêuticas na eventualidade de uma grande epidemia global. Imaginem só quão conveniente seria, para o capitalismo em geral, que uma doença perigosa se disseminasse mundo afora e uma empresa multinacional tivesse o monopólio do medicamento para curá-la. Imaginem os preços do produto subindo com o aumento exponencial da procura. Imaginem os estratos mais pobres da população mundial sem condições de comprar o remédio. Imaginem os governos nacionais incapazes de intervirem com as políticas das empresas privadas. Imaginem um quinto, um quarto, um terço da humanidade extinta, e justamente os mais pobres... Que formidável ferramenta de "limpeza étnica" não seria esse "divino vírus"! Temo ao imaginar que alguma empresa farmacêutica tenha a idéia diabólica de CRIAR uma doença e espalhá-la pelo mundo, só para ter o prazer de depois vender os medicamentos para uma Terra que se tornou, inteirinha, uma clínica... É exagerar na paranóia? É ver malignidade demais nas multinacionais? Não sei. I wouldn't be so sure. Gosto que "o Jardineiro Fiel" nos deixe alertas e saudavelmente paranóicos.

* Gosto de ficar na expectativa pelo próximo.

(CAMINHOS ALTERNATIVOS): FLICK PHILOSOPHER --- PABLO VILAÇA --- ALEXANDRE MATIAS --- ROTTEN TOMATOES --- VILLAGE VOICE --- BERARDINELLI --- A ARCA --- CONTRACAMPO --- CINEIMPERFEITO.