segunda-feira, 3 de abril de 2006


POR QUE ME CASEI COM A FILOSOFIA?
- uma digressão/brainstorming/meditação... -


"Question mark! Question mark!
I'm a walking-talking-question-mark!"
JAMIE LIDELL



Normalmente é com um certo espanto que as pessoas recebem a notícia de que eu tô fazendo um curso superior de filosofia... As reações são, no mínimo, bizarras:

- Filosofia? Ai, como você é chique!! - me disse uma moça.

- Filosofia? Mas seu pai tem dinheiro? Porque... - me disse um professor, quase a ponto de confessar que conhecia uma meia dúzia de filósofos morando debaixo da ponte.

- Filosofia? Que viááágem, Lucião! Que viááágem! - me disse um camarada.

E eu, como é que eu me explico? O que me levou a cometer uma loucura dessas? Porque não é "profissão" que dê dinheiro, nem algo que dê "status social", nem coisa que traga fama ou fortuna - muito provavelmente condena ao anonimato e à mendicância... E você tem que ser meio masoquista pra aguentar o suplício de ler todos aqueles textões complexos, e precisa ter uma alta tolerância à chatice e à prepotência, e se tornar um rato de biblioteca bitolado... Ao menos assim pensam muitos, inclusive eu, às vezes, quando fico com medo de virar um chato (se é que já não sou)...

Por que a filosofia, se agarrar a ela? Como explico por quê cometi essa loucura de entrar num curso universitário de filosofia? Posso responder parafraseando a Clementine: "I'm just a fucked-up guy searchin' for my own peace of mind"... Posso dizer que, simplesmente, sou um garotinho em busca da sabedoria, tateando na escuridão pelas respostas, pelos mapas, pelos interruptores (por que não consigo acender essa maldita luz?!)...

Por que a filosofia? Talvez seja a esperança de encontrar uma cura para a angústia, um remédio para a melancolia, um sentido para a vida, um facho de guiding light, uma direção que me guie na perdição... Um veterano disse uma coisa interessante - que tem muita gente que entra no curso por uma razão muito simples: porque está "meio perdido na vida"... Talvez seja esse o meu caso...

Por que a vida é esse presente que ganhamos no nosso aniversário de zero anos e que vem com um gravíssimo defeito: falta o Manual de Instruções... Isso só descobrimos depois, é claro, pois para todos nós houve o tempo em que tudo se explicava e tudo ia bem... Houve um tempo em que Deus ainda existia, mami e papi sabiam todas as respostas, ninguém morria de verdade e o Amor sempre se consumava numa apoteose igualzinha ao dos filmes ruins e dos contos-de-fada. "E foram felizes para sempre...". Só com o que tempo é que descobrimos quão pouco se sabe, como estamos todos vivos sem saber porquê, como é extremamente misterioso o simples fato de existirmos, e de existir alguma coisa, e como é terrivelmente doloroso saber que todos nós logo logo estaremos todos mortos, e, como, em geral, vivemos mal... E a Felicidade brilha tão raramente, sempre mais ausente e sonhada do que efetiva, frágil como uma bolha de sabão num dia de ventania...

Talvez eu exagere. Talvez exista sim a Felicidade, e não só para 2 ou 3 pessoas a cada século, como às vezes gosto de pensar... Não sei direito como é ser vocês, nem vocês jamais saberão direito o que é ser eu. Cada um está trancado dentro de si, e só com muita dificuldade é que conseguimos nos entender - e corro sempre o risco de generalizar o que é um sentimento meu como um sentimento de todos. Enfim, o fato de eu não ser feliz (ou ao menos não tanto quanto eu gostaria...), o que prova sobre a felicidade dos outros? O fato dos meus prazeres serem sempre tão efêmeros por acaso comprova a impossibilidade do homem em geral de conquistar algum prazer durável ou mesmo perpétuo?

Filosofia, também, por causa das perguntas. Tenho um monte delas. I'm a walking-talking-question-mark...

Por que existe um mundo e um universo? Por que existe algo ao invés de nada? Que força misteriosa fez com que as galáxias saíssem da inexistência e viessem à vida? Ou será que o nada nunca existiu e que Algo sempre houve? Nesse caso, como pensar o Tempo? Se o passado é infinito, se não houve um ponto onde o tempo começou, como imaginar que tenhamos chegado aqui?

E pra que serve esse troço que me deram, essa vida que ganhei sem que tenha pedido e que se acabará mesmo que eu queira continuá-la? Que devo fazer com ela? Quem a fabricou, e com que intenção? E por que desse jeito, condenada ao nada? E por que assim, tão difícil...?

* * * * * *

(2.)

Deve haver muita gente que acha, preconceituosamente, que aprender filosofia não é algo lá muito nobre, muito útil, muito urgente... Num mundo onde um bilhão de pessoas passam fome, não há coisas mais importantes a fazer do que se enterrar na biblioteca tentando entender uns livrões cheios de mofo que uns mortos ilustres escreveram séculos atrás? A filosofia não será só um mero jogo de palavras, de conceitos e de idéias, sem nenhum efeito prático? Não será ela nada mais que um passatempo para a inteligência, uma diversãozinha elevada para distrair a razão? Os médicos nos curam, os arquitetos e engenheiros constroem nossas casas, o agricultor faz crescer a comida que a gente precisa, e o comerciante nos fornece os produtos necessários e supérfluos, e o palhaço pelo menos nos faz rir... etc etc etc. Mas e o filósofo, que é que ele faz? Pra quê ele serve? Em que ele ajuda a humanidade? Qual é a sua função social? O mundo seria muito pior se todos os filósofos, num átimo, fossem extintos? Às vezes parece realmente evidente a imensa inutilidade da filosofia, sua natureza de coisa unicamente teórica, sem nenhum ponto de contato com a vida e seus problemas... Só tagarelice da razão! Só a atividade dessa gentinha desprezível que gosta de ficar exibindo sua "superioridade intelectual" por mera vaidade! Só isso a filosofia...

É claro que eu não concordo. Se estou em definitivo na estrada da filosofia, se embarquei de vez nela, é por acreditar nos poderes que ela possui pra transformar a vida, naturalmente que para melhor, e por achar, ao contrário de muitos, que estudar filosofia é sim tão importante quanto estudar medicina, direito ou astronomia - se não for mais... Sou daqueles que acredita na filosofia como um meio pra atingir a felicidade, e um dos melhores. Se precisamos de um médico para o corpo, não precisamos também de um médico para o espírito - ou para a mente, para usar um termo mais pé-no-chão? Pois então: a vida veio sem Manual de Instruções, mas muitos homens ilustres e sábios que nasceram antes de nós tentaram, tateando e cambaleando, explicar e elucidar os mistérios da existência - e por que não ouviríamos o que eles tem a dizer e a ensinar? Pensar melhor pra viver melhor: não cabe aí toda a missão da filosofia?

Talvez eu esteja exagerando. Sei bem que a filosofia não deve se deixar escravizar pela felicidade, ou seja, abandonar idéias só porque elas não causam bem-estar. Porque o prazer nunca foi critério pra julgar veracidade. Muito pelo contrário. Conheço muitas idéias falsas - toda a imensa selva dos meus sonhos... - que me fazem muito mais feliz do que as verdades nuas e cruas da existência, que muitas vezes só servem pra me arrancar água dos olhos... Mas o fato de uma idéia ser prazeirosa e confortante não prova nada de sua veracidade - e isso pode parecer banal, mas uma pessoa que crê em Deus não se deixa nunca convencer de que a idéia de Deus não é necessariamente verdadeira só porque é consoladora. Só porque "é gostoso" crer em Deus isso não quer dizer que Ele exista...

Em suma, a filosofia está mais submetida à verdade do que ao prazer, e um verdadeiro filósofo, como sempre diz o mestre Sponville, prefere uma verdadeira tristeza a uma alegria de mentira... É evidente que a filosofia não tem como função inventar idéias e raciocínios consoladores que nos torne a vida mais fácil e confortável - disso, aliás, já se ocupa a religião... Mas é evidente, também, que a filosofia tem que se colocar um objetivo prático (que é a sabedoria, a felicidade...), pois senão corre o risco de se tornar eruditismo estéril, teorização vã... Ela precisa sim ter como fim a melhoria da vida humana, individual e coletiva, e colocar toda a máquina da razão e da sensibilidade a serviço dessa Missão... "Qual o melhor jeito de viver? O que devo fazer para ser mais feliz, para adquirir uma paz de espírito durável, um bem-estar tranquilo? Quais são os obstáculos que me impedem de ser feliz?" Pra mim essas são perguntas filosóficas - e, sinceramente, as minhas prediletas. E são ao mesmo tempo perguntas que todos fazem, que são de interesse ultra-geral, quase universal. Todos querem saber quais são os melhores meios para atingir a felicidade, e uma das atividades a que a filosofia se dedica é justamente essa de verificar, pelo pensamento e pela experiência, quais os caminhos mais seguros para a sabedoria... Sempre dentro da verdade. A missão é tentar alcançar o máximo possível de verdade, e tentar aceitar e se alegrar o máximo possível com essa verdade descoberta. Simples assim.

Eu não consigo entrar em sintonia com nenhuma filosofia que não coloque a sabedoria e a felicidade como os fins últimos. Não gosto dos filósofos que se entregam a um eruditismo vão e vaidoso, aos pensamentos monstruosamente complexos que não levam a lugar nenhum... Não gosto dos filósofos que morrem de medo de serem compreendidos. Nem daqueles que criaram filosofias que nunca ajudaram ninguém, por mais "monumentais" que sejam.... Infelizmente, é comum que aqueles que deveriam ser os amigos da sabedoria se tornem, pelo contrário, os amigos dos raciocínios inúteis, das complicações desnecessárias, da erudição estéril, da chatice sistemática, do mau-humor erguido ao status de virtude... Muitos filósofos não passam de mortos-vivos que se emparedaram vivos em suas certezas e construíram uma parede de raciocínios que os protege da vida e dos sentimentos... "Muitos de nossos livros de filosofia - e diria: inclusive nossos bons livros, até mesmo alguns de nossos grandes livros de filosofia - não servem para nada", diz o Sponville. "A única filosofia que vale reflete a vida para vivê-la melhor, para viver de maneira mais verdadeira, mais profunda, mais livre, mais intensa." Assino em baixo. Aliás, se estou fazendo filosofia, é também por uma razão mais simples: por ter descoberto André Comte-Sponville. Se eu não tivesse lido os livros dele, se eles não tivessem mudado a minha vida, e radicalmente, eu teria seguido outro caminho...

Acho que a filosofia tem muito mais a ver com a dúvida do que a certeza, muito mais com a angústia do que com a serenidade, muito mais com a insatisfação existencial do que com a felicidade... Pelo menos no seu ponto de partida. Se fôssemos felizes, pra quê precisaríamos da filosofia? Se é preciso filosofia é porque nossas almas estão doentes, por assim dizer, e ela, a filosofia, é (ou pode ser) medicinal e terapêutica. A filosofia é muito mais a arte de se lançar ao oceano sem certezas como bóias, e procurar atingir outras praias, outras ilhas, outros horizontes... A filosofia não é o mais importante: o que importa é a vida. A filosofia (e a arte em geral, da mesma maneira) só vale alguma coisa quando nos ajuda a viver melhor, com mais lucidez, com menos temor, com mais intensidade, com mais compreensão, com mais profundidade, com mais virtude, com mais autenticidade... em uma palavra: com mais sabedoria. A filosofia só vale pela melhora que traz à vida, pela paz de espírito que possibilita, pelos horizontes que abre, pelos temores e angústia que destrói... O resto é só tagarelice e vaidade.