domingo, 23 de abril de 2006

da série: OS FILMES DA MINHA VIDA.

DANÇANDO NO ESCURO
de Lars Von Trier

(Dancer In The Dark, Dinamarca, 2000, 140 min.)


Só sei que eu nunca vou me recuperar.

Dançando no Escuro foi o primeiro Lars Von Trier que eu vi; eu não sabia com quem estava lidando e fui despreparado para receber o golpe... Porque é de fato um golpe! Foi como um machucado na retina e no espírito que deixou uma cicatriz pra toda a vida. Nunca vai sarar. E nem quero que sare... Dogville, anos depois, também ia me deixar bestificado, quase que em estado de choque, sem saber o que dizer depois que aquelas metralhadoras pararam de cuspir balas e enquanto Bowie começava a cantar "Young American" - o que falar depois de um final daqueles?! Manderlay, que é menos chocante mas igualmente provocante, também iria dar nós na minha cabeça e me fazer pensar e pensar e pensar... Mas aí então eu já conhecia Lars, já tinha virado fã, já estava de sobreaviso... Mas Dançando No Escuro me pegou desprevenido: o nome Lars Von Trier ainda num significava nada pra mim. Era pra ser só mais um filme cult dinamarquês, provavelmente chatérrimo, algo que valia mais pela curiosidade de ver a Björk atuando do que por qualquer outra coisa... Eu não sabia que tava prestes a sentir um dos maiores impactos que já senti assistindo a um filme.

Dançando no Escuro, um dos grandes filmes desta década (Palma de Ouro em Cannes 2000), contando com a improvável atuação excelentíssima da Björk (melhor atriz em Cannes 2000), é mesmo uma obra-de-arte que está aí pra nos machucar, nos rasgar por dentro, nos fazer chorar de verdade, do desespero mais puro, da piedade mais bruta... Não sei se existe filme mais triste, mais emocionalmente devastador, mais impossível de assistir com indiferença, mais poderoso em fazer surgir uma resposta sentimental violenta no espectador... Até mais o empedernido dos insensíveis sente dificuldades pra não "passar mal" assistindo a esse trágico e doloroso melodrama de Von Trier. Sabe aquele seu amigo metido a machão que garante que nunca chorou em filme nenhum? Leve ele para ver Dançando no Escuro e faça a prova de fogo. Se isso não fizer ele chorar, não há mais esperança de cura: o coração é mesmo de pedra...

Você pode amar ou odiar Dançando no Escuro (e uma das características mais marcantes do cinema de Lars Von Trier é mesmo essa de dividir radicalmente as opiniões e levantar controvérsias intermináveis), mas ignorá-lo ou permanecer a ele indiferente ninguém vai conseguir. A principal função do cinema, segundo Lars, é mesmo provocar, causar um impacto, mexer diretamente com o espectador; ninguém sai ileso de um filme de Lars Von Trier. E eu assino embaixo. Acho que não tem nada a ver dizer que o filme é de "má qualidade" só porque nos faz sofrer e chorar, como se a função do cinema fosse só nos consolar e fazer carinho, como se a arte tivesse só uma função masturbatória... De má qualidade é um filme que não me faz sentir nada, que não questiona nada, que não serve pra nada além de passa-tempo! Quero filmes que me comovam, que me chacoalhem, que me questionem, que me coloquem contra a parede, que venham pra cima de mim querendo causar um estrago, que queiram me acordar e me arrancar da minha apatia... Quero sair de um filme uma pessoa diferente da que era ao entrar. E Lars sempre faz isso por mim. Nunca saí de um filme dele o mesmo que entrei.

Dançando no Escuro, apesar de não fazer parte da Trilogia Trieriana sobre a América iniciada com Dogville e seguida com Manderlay, poderia muito bem ser um capítulo do retrato pouco lisonjeiro dos EUA que o diretor fez através de sua obra, desta vez tratando de um dos símbolos da Justiça Americana: a pena de morte. Nunca tive nenhuma dúvida de que tudo no filme foi feito para que o espectador sentisse na pele a extrema injustiça que é a condenação de Selma à forca; não que ela não tenha cometido seu crime (sobre isso não há dúvidas), mas porque esse crime é perfeitamente desculpável e se justificava perante as circunstâncias.

Existe algum espectador que, ao final do filme, consegue achar que Selma merecia o cadafalso e que a Justiça realmente prevaleceu? É bastante improvável, porque Lars Von Trier, manipulador esperto como é, não pára um só momento de fazer com que simpatizemos com sua personagem, só pra depois nos machucar ao expô-la a um terrível martírio (que parece uma homenagem ao A Paixão de Joana D'Arc, clássico filme de Carl Th. Dreyer, cineasta de quem Von Trier é ídolo confesso).

Mas a coisa é mais complicada: Dançando No Escuro vai muito mais longe do que ser somente mais um filme sobre a pena capital (e já são muitos, só nos últimos tempos: A Vida de David Gale [de Alan Parker], À Espera de Um Milagre [de Frank Darabont], Os Últimos Passos de um Homem [de Tim Robbins]...). De um certo modo, Dançando no Escuro se enquadra naquele grupo de filmes sobre condenados à morte que se compadece do preso, se finge de advogado de defesa e se põe a enumerar circunstâncias atenuantes (caso também de filmes como Monster [de Patty Jenkins] ou A Viúva de Saint-Pierre [de Patrice Leconte]).

Agora a ressalva: o filme do Von Trier mostra sim o espetáculo doloroso de uma (injusta) Justiça que passa como um rolo compressor sobre uma mulher bondosa e pura, o que o torna sim um persuasivo manifesto contra a pena de morte... Mas ele é muito mais que isso. Porque a Selma, personagem principal de Dançando no Escuro, além de ser uma condenada das mais peculiares, parece consentir com a decisão de seus carrascos, o que faz o filme ir além do fechamento no tema "pena de morte". Pra mim, ele é quase uma "fábula existencialista" que trata de muitos outros assuntos além da pena morte: ética, amor, auto-sacrifício... É o que vou tentar explicar na sequência.


PARTE 2: UMA SANTA NA FORCA.

Não há dúvida de que o retrato que Lars Von Trier nos fornece de Selma não contêm uma reprovação oculta ou uma ironia desdenhosa, como parece ser o caso com a Grace e o Thomas Edison Jr. de Dogville e o Dickie de Querida Wendy (que são frequentemente zoados e tratados com desprezo por seu Criador...). Lars Von Trier pinta na tela uma mulher que é a própria encarnação da inocência, do altruísmo e do bem - em uma palavra: uma santa. Não é à toa que Dançando No Escuro é parte de uma trilogia - completada por Ondas do Destino e Os Idiotas - chamada Golden Hearts.

Selma simboliza um comportamento de uma "beleza moral" inegável: trabalha exaustivamente na fábrica, mesmo com a progressiva piora de sua condição física, fazendo inclusive horas extras e trabalhos por fora, para reunir o dinheiro para a operação que pode salvar seu filho da cegueira. Uma missão que exige obstinação e paciência, recusa dos gastos supérfluos e todo tipo de consumismo, rígido auto-controle e disciplina... A vida de Selma é de fato uma via-crúcis, e mesmo antes de sua condenação; uma vida que é tão dura e tão sofrida que é só mesmo entregando-se a suas fantasias musicadas que ela consegue achar a força para seguir em frente. Mas segue. Selma têm energia para continuar lutando e se esforçando, mesmo com a escuridão progressivamente avançando sobre ela por todos os lados, praticamente recusando uma vida para si mesma: sua vida inteira é dedicada ao bem de outrem. Ela é a santa da auto-abnegação que aceita todo o sofrimento e todo cansaço em nome do bem da pessoa amada...

Quando seu "amigo" policial tenta roubar suas suadas economias, é mais que dinheiro o que ele ameaça arrancar de Selma, é algo de muito mais precioso, algo que não tem preço: é todo o sentido de sua vida, é tudo aquilo que justificava para ela o sofrimento, é o resultado de um esforço imenso... É por isso que qualquer um consegue compreender como essa assassina está longe de ser malvada: qualquer um de nós faria o mesmo para defender algo de tão valioso...

A cena do assassinato, extremamente comovente e filmada com um realismo impressionante, de modo algum mostra Selma "caindo em perdição" ou "perdendo sua bondade", como parece ser o caso com a Grace no desfecho de Dogville e Manderlay. Selma não faz o que faz por maldade, eis o ponto - e o espectador sabe disso, sente isso. Mesmo com as mãos sujas de sangue e um cadáver em seu colo, ela não permanece tão pura quanto sempre foi? Seu ato não é absolutamente compreensível e desculpável? O problema é que os juízes e os jurados não estavam lá para ver a cena - e infelizmente "fatos são fatos"...

Após a prisão de Selma, quando Dançando No Escuro ameaça se tornar um "drama de tribunal", a atitude dela causa uma certa estranheza. Apática, silenciosa, distante da realidade, perdida no mundo da Lua, Selma assiste meio que de longe ao desenrolar do julgamento que vai selar seu destino. E a angústia cresce no coração do espectador, que quase se levanta e grita para a tela: "Vamos, moça, se defenda! Proteste! Se explique! Tente se salvar!" E ela não faz o mínimo esforço para se desculpar, se justificar, se inocentar, como também não reclama ao receber a sentença. Assume o papel da ovelinha que vai sendo conduzida ao matadouro e que não ousa dar nem um mínimo balido de protesto...

Isso me deixa curioso. Por quê Selma se entrega à morte de um jeito tão resignado? Ela certamente poderia ter se defendido melhor, tentando mostrar como as coisas se haviam passado na realidade, que tipo de circunstâncias praticamente a obrigaram a fazer o que fez... Poderia ter procurado conquistar a simpatia e a piedade do júri. Poderia inclusive dar o testemunho de sua consciência, que, ao que tudo indica, permaneceu sempre absolutamente limpa (a canção não diz exatamente: "Só fiz o que precisava fazer"?). A apatia de Selma quando senta no banco dos réus, sua falta de vontade para esforçar uma defesa e uma desculpa, parece inexplicável, como se a vontade de viver tivesse extinta dentro dela... Algo que me lembrou da atitude do Mersault de Camus na segunda parte d'O Estrangeiro.

Como explicar? Eu tento (mas é uma interpretação difícil de comprovar, mais uma hipótese do que uma certeza): é que, mais uma vez, esta santa da auto-abnegação está abandonando seu interesse pessoal, que seria salvar-se a qualquer preço, e tentando não fazer mal aos outros, mesmo aos mortos. Dizer a verdade naquelas circunstâncias seria acusar Bill de roubo, de egoísmo, de falsidade para com sua esposa... o que seria contaminar sua reputação e o amor que os vivos continuam a nutrir por sua memória. Talvez Selma aceite que a culpa recaia sobre ela só para que Bill possa descansar em paz também nas mentes de seus queridos. Talvez.

Outra coisa: é possível que ela pudesse ter se salvado da condenação, que muito provavelmente se deu pela incompetência do advogado de defesa (cujo discurso Von Trier omite), se tivesse aceitado pagar o novo advogado. No momento em que lhe oferecem a possibilidade de gastar suas economias pagando um advogado melhor ela se vê está frente a frente com um dilema: deve se apossar das economias arduamente conquistadas para se salvar da pena de morte e, com isso, impedir o filho de conseguir sua operação?

O direito de utilizar esse dinheiro ela o tem, certamente, pois é tudo fruto de seu suor e de seu trabalho. Mas isso não seria incoerente com sua vida e sua batalha? Ela, que sempre havia sacrificado tudo, todo o seu prazer, todo o seu interesse, toda a sua vida própria, na tentativa de dar ao filho o presente da cura, iria nesse momento deixar-se vencer pelo "egoísmo" e preferir-se em relação àquele que sempre foi o preferido? Na resposta de Selma a esse dilema está a prova da pureza de sua virtude: mesmo sob ameaça de morte, ela se recusa a tomar para si algo que fará um bem a outro. Prefere morrer pra fazer o bem ao filho do que se salvar tirando dele a possibilidade da cura.

Em definitivo, Lars Von Trier completa o retrato de sua Santa Selma: ela é sim uma mártir que deixa-se sacrificar pois coloca a vida de outra pessoa em um patamar superior ao da sua. Ela é um símbolo daquele tipo de amor (tão raro que parece que não existe fora da fantasia...) que vai até o extremo dos extremos e que acaba em auto-imolação... O que vimos em "Dançando no Escuro" foi mais do que uma execução, portanto: foi uma canonização! Algo que já tinha sido feito por Lars Von Trier em seu filme anterior, Ondas Do Destino (Breaking The Waves), que têm um final explicitamente místico-religioso... Arrisco uma conclusão pretensiosa: Selma - e também a Bess, protagonista de Ondas Do Destino - são como duas imagens de Jesus Cristo segundo Lars Von Trier! Ou, parafraseando Camus (que, se estivesse vivo, iria ter adorado Dançando no Escuro), "são os únicos Cristos que merecemos"...

No fim do percurso, Selma pode se entregar à morte sem resistência e sem protesto porque sabe que sua "missão" foi cumprida: o sentido que ela impôs à sua vida foi realizado, o salvamento do filho foi concretizado, seus esforços e seus suores deram seus frutos... Seu sacrifício valeu a pena. Dançando no Escuro, um dos filmes mais tristes de todos os tempos, não é só escuridão, afinal, e um pequeno Sol se acende e começa a brilhar ao final de tudo... O amor sobre-humano de Selma, seu sacrifício obstinado, sua luta infatigável, acabam por dar exatamente o resultado que ela buscava. A morte não pode arrancar dela essa vitória. É por isso que ela pode morrer de um modo extremamente incomum para um condenado à pena capital: morre cantando...