terça-feira, 7 de novembro de 2006

MEMÓRIAS LITERÁRIAS e UM ENCONTRO COM UM POETA


ANTERO DE QUENTAL
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Talvez vocês se lembrem vagamente de terem ouvido esse nome nas velhas aulas de literatura no colegial. Aquelas que, é claro, vocês gastavam fazendo qualquer coisa a não ser prestar atenção. Como por exemplo: trocando bilhetinhos, fazendo aviões de papel, jogando Stop, desenhando diabinhos no caderno, conversando sobre a novela, atirando bolotas molhadas no cabelo alheio (com uma caneta Bic sem a tinta – lembram?) ou dormindo sobre o confortável travesseiros dos braços... enfim, todas aquelas coisas nobres e edificantes que nosso tédio inventava para passar pelas horas.

Talvez se lembrem do asco instintivo que sentiam quando o professor começava a enumerar as escolas literárias, em meio à sinfonia de bocejos e de caras entediadas, tentando convencer os inconvencíveis de que todos aqueles portugas com nomes estranhos tinham feito coisas grandes e bonitas. E talvez se lembrem que o tal do Antero de Quental (e lembram dos risinhos ao ouvir nome tão esquisito?) era um desses sujeitinhos aí que eles nos obrigavam a estudar pra passar no vestibular e pra que soubéssemos mais sobre a boa arte de nossa adorada nação colonizadora. Mas a gente não confiava: tanta piada tinha sedimentado a idéia de que português era tudo burro.

Eu, como todo mundo, tinha meus preconceitos e não gostava de nenhum desses caras que a gente era obrigado a estudar - mesmo sem ter lido uma só linha deles. E eu não estava sozinho. Quase todo mundo, fora as aberrações nérdicas e cê-dê-éficas, achava que a aula de literatura era um porre, que poesia era coisa de viadinho e que legal mesmo era ler gibi. A gente via as fotos dos escritores e achava que o caras tinham cara de malas e tirava logo a conclusão de que os livros não mereciam ser lidos... Ver uma foto de Graciliano Ramos ou de Guimarães Rosa não dava a mínima vontade de lê-los. Já Rimbaud, sim! Só peguei pra ler Uma Temporada No Inferno porque achei a fotinha da capa muito legal – o Rimbaud parecia um carinha da minha idade, enfezado com a vida, doido por escrever com raiva e com sangue. Me instigou mais ainda saber que ele tinha escrito tudo na adolescência, marcando a história da literatura francesa antes de completar 18 anos, e que tinha se desencantado completamente depois, abandonando a poesia como quem joga fora um tênis que parou de servir.

Além desse preconceito estúpido e inevitável de julgar escritor pela foto, também tinha outro não menos estúpido e um pouco mais evitável: julgar pelo nome. Uns caras tinham nomes tão ridículos que a conclusão brilhante de nossas mentes adolescentes tão sábias era: “pô, um cara que chama Eça, um cara que chama Antero, um que chama Camões... esses caras simplesmente não podem prestar! Um nome desses! Eça é o quê? Nem pro meu cachorro eu daria um nome desses!” Todo mundo achava que devia ser terrível. E quando a gente lia “O Primo Basílio” ou “Os Lusíadas” ou “Vidas Secas”, comprovava que tínhamos razão – a coisa era mesmo um porre. E a gente lia sempre com raiva, com ódio, com o balde do lado, pra ir vomitando...

Só comecei a curtir as aulas de literatura no colégio quando, no terceiro colegial, quem assumiu o comando foi o Mário, talvez o professor que mais me fez rir nessa vida. Não sei mais por onde anda o Mário, aquela figuraça, mas ele é um dos poucos professores do meu passado que eu guardo na memória com o maior carinho - e uma das pessoas que melhor me fez adquirir gosto pela leitura. Ele era muito melhor narrador do que qualquer dos autores que ele ensinava – pelo menos eu achava isso. Nessas escolas que estão mais interessadas em nos preparar pro vestibular do que instigar o amor pela literatura, vocês sabem, o esquema é aquele: o professor de literatura fica contando a historinha dos livros pra meio que dispensar o alunado do tormento diabólico de efetivamente lê-los. E o Mário ficava lá, microfoninho em mãos, curtindo-se pacas ao fingir-se narrador de romance, really enjoying himself, enquanto nos contava a história do "Memórias de Um Sargento de Milícias", do "Memórias Póstumas de Brás Cubas", do "A Hora Da Estrela" (desse ele era super fã... falava da Clarice como um fã de banda de rock fala de seu ídolo, e tratava a Macabéia com uma compaixão que um pai tem por uma filha). Tinha também teorias muito divertidas (que nem lembro mais – só que me faziam sorrir) sobre o velho dilema: a Capitu traiu ou não traiu o pobre do Bentinho?

Só sei que depois, quando eu fui ler os livros que o Mário já tinha me descrito, quase sempre me entediei: preferia a versão resumida, e entremeada com piadinhas, que o Mário contava a nós, fazendo o milagre de tirar risadas e interesse de uma classe de adolescentes numa aula de literatura. Por culpa dele, provavelmente, caí apaixonado pela Clarice Lispector (e comprovei minha teoria de que só autores com nomes legais prestavam: com um nome biito desses a mulher num podia ser ruim!) e pelo Machado (que achei divertido e cheio de humor negro! “Ao primeiro verme que roeu as frias carnes do meu cadáver, dedico essas memórias póstumas...” Achava o máximo!).

Por que tô dizendo tudo isso? Só pra dizer que estou me desfazendo de alguns dos meus preconceitos literários adquiridos nas salas de tortura desse troço infernal chamado Colegial e já começo a achar que é até bem possível que aqueles caras que a gente estudava na escola, e que a gente achava que eram uns babacas aí que não sabiam escrever nada de legal, podem até prestar. E isso por causa do Antero. O Antero, o cara de nome estranho. O Antero, que estudamos na escola com tédio mortal. O Antero, cujo nome a gente ouvia vagamente antes de cair no sono nas aulas de literatura portuguesa. Aquele cara que muitos de nós chegaram a odiar quando ele caiu na prova e a gente não soube interpretar aquela joça daquele poema complicado.

Li o Antero hoje, uns bons 5 anos depois de findo o colegial, e realmente fiquei admirado por gostar tanto. Os Sonetos Completos de Antero de Quental já estão entre os meus livros prediletos dentre todos os que já li. Ando até ficando com vontades estranhas de ler um poeminha do cara todo dia, logo depois de acordar, pra fazer meu dia mais feliz e mais poético, para despertar em mim a capacidade de ver a beleza do mundo, a doçura das coisas e a poesia do cotidiano - essas viadices todas. Até re-experimentei aquele prazer de declamar poesias, em voz alta, só curtindo a lindeza da coisa – e só assustando as pessoas lá fora, que me acham lunático por ficar assim, falando sozinho, e de um jeito esquisito.

Num tenho nenhum cacife pra brincar de crítico literário, muito menos quando se trata de poesia portuguesa, que conheço muitíssimo mal, mas vou dizer, com toda essa minha ignorância e estupidez, algumas coisas sobre Antero de Quental e porque eu gostei tanto desse troço. (De verdade, eu sempre curti mais ler romances e filosofia (e revistas de rock!) do que poesia; só recentemente fui encontrar uns poetas que realmente me empolgam: principalmente Walt Whitman, John Donne, Rilke, e ele, Antero.)

Uma coisa que me enoja na poesia, que meio que me afastou dela por muito tempo, é aquele lance do beletrismo, que eu encontro mesmo nos poetas que não são oficialmente etiquetados como beletristas ou parnasianos. É aquele lance de querer usar palavras ultra-estranhas, arcaicas e antiquadas, que nenhum ser normal jamais usa no cotidiano, como se fosse um mérito imenso ir até o dicionário para arrancar o termo mais bizarro que se conseguir encontrar. Gosto de despejar meu sarcasmo pra cima de muito poeta: pra mim um monte deles só quer se exibir como conhecedor das entranhas dos dicionários, como um humano com um vocabulário ultra vasto e original, como um depósito ambulante de termos mofados... São uns gabarolas que pensam que saber uma palavra que ninguém conhece é ser um ser humano superior (aliás, vocês sabem o que é um “gabarola”? usei só pra me exibir! Só pra me achar um ser humano superior!)...

Eu acho o óbvio: não acho que ter um vocabulário vasto e ter a capacidade de usar palavras bizonhas seja o bastante para constituir um bom escritor – e muito “bom escritor” por aí, pra mim, é só isso. Não vejo, como muitos vêem, nenhuma “beleza” nesse processo de juntar palavras esquisitonas, raramente utilizadas pelos mortais comuns, e ligá-las de modo “original”, só pelo bem da originalidade, em textos que só meia dúzia de entendidos conseguem decifrar...

O Antero é diferente. Os sonetos dele podem até parecer meio “virtuosísticos”, meio rock progressivo, meio complexos demais, meio vou-exibir-meu-talento-com-as-palavras, mas eu sinto que por trás de tudo, no fundo, o que fez aquele poema surgir é um sentimento puro, genuíno, verdadeiro, que se impunha com toda força. O poema nasceu por necessidade. E, como o próprio Rilke já dizia nas suas Cartas a Um Jovem Poeta, as grandes obras de arte sempre nascem por necessidade vital. Cria bem quem não pode viver sem criar.

Grande parte dos poemas do Antero de Quental, me parece, não são nada além de uma descrição de um sentimento. E de um sentimento que, na maior parte das vezes, eu reconheço inteiramente. Rola aquele sentimento de identificação: o que ele descreve são sentimentos que já senti, que sei que surgem em uma multidão de corações, que sei que ele sentiu de verdade... E o que ele faz é agarrar esse sentimento e palavrear em cima dele, descrevê-lo o mais completamente possível, sendo que o sentimento é muito mais importante do que o palavreamento - e as metáforas, mais do que “ornamento”, são o único meio para comunicar algo que, sem metáfora, seria incomunicável.

Pois a gente sabe: nossos sentimentos são complexos demais, vagos demais, misturados e fluentes demais, para que seja possível descrevê-los com uma só palavra, uma mísera palavra, uma minúscula palavra, como costumamos fazer. Podemos rotular o quanto quisermos nossos “estados de alma” com as palavrinhas usuais – raiva, angústia, alegria, medo, paixão... – mas sabemos bem que uma palavrinha é pequena demais para descrever algo tão grande e complicado quanto um sentimento – ou, como eu prefiro dizer, um “estado de alma”. E pra mim o Antero é um mestre, um grande mestre, na descrição de sentimentos com beleza e sinceridade.

Gosto também da DOR que está infiltrada em cada fresta dessas páginas. Isso aqui é poesia dum cara que realmente sentiu na pele todos os padecimentos que relata, e que conseguiu espremer suas feridas e fazer jorrar delas a bela fonte da poesia... Há o momento do Antero que se dói por achar que não vive uma vida cheia de aventuras e emoções; a do Antero que sonha, sozinho no quarto, com uma garota qualquer que ele idealiza (que poeta sem esse louco sonho de amor?); a do Antero que se revolta contra os ideais, ao perceber que eles só lhe dão o que todos os ideais sempre nos dão: melancolia e insatisfação; a do Antero que se irrita com seus próprios sonhos vagos e suplica por um amor de verdade, um amor dos que têm vida!; o Antero que vê o espetáculo ridículo dos homens rezando a deuses que nunca respondem; o Antero que vê na Morte, mais que uma desgraça, uma libertação da dor, quase que uma aliada...

Antero também costuma ser considerado como um poeta-filósofo – e realmente dá pra notar que a obra dele não está interessada somente em criar um “efeito estético”, mas que há por baixo de tudo um anseio de compreensão – como diz o Oliveira Martins no prefácio, Antero de Quental pensa seu sentimento e sente seu pensamento, e não vê nenhuma contradição nisso. Gosto disso: de alguém que não se racha em duas metades e taca uma no lixo. Não quer ser nem totalmente racional, nem totalmente sentimental. Concilia o que deveria viver em guerra perpétua.

Claro que não dá pra ficar descrevendo em termos precisos qual é a “Filosofia de Antero de Quental” – que seria, sei lá, uma mistureba indigesta de budismo, cristianismo, ceticismo, niilismo e romantismo... enfim, uma mistura de tudo um pouco. Mas é tolice exigir de um poeta que tenha uma “visão de mundo coerente”, um conjunto de idéias sistemático... Pra mim, Antero é muito mais um observador de si mesmo, um cara que, ao invés de ficar observando paisagens pra pintar com palavras as colinas, os bosques e os riachos, ficou olhando a paisagem que ele mesmo é e se esforçando por descrever-se.

E já que tudo flui, o poeta também flui. Cada dia acorda sentindo algo diferente, um pouco ou muito, do que já sentiu ou vai sentir. Arrisco uma metáfora: o poeta é aquele que tira fotos do céu de sua própria alma, sem se preocupar muito se haverá conexão e coerência entre as fotos que tirar, nem muito menos querendo acabar com um álbum só de fotos ensolaradas ou só de fotos nubladas. Da mesma maneira que no firmamento vão passando nuvens negras e nuvens brancas, nuvens de chuva e nuvens de calmaria, relâmpagos e trovões agora, gaivotas e céu azul daqui a pouco, sobre a alma do poeta também vão passando os estados climáticos da alma – os catastróficos, os suaves, os sombrios, os luminosos, e assim por diante... Antero se limita a descrever o céu que vê dentro de si, esteja ele com cara de chuva ou luminoso de Sol, esteja ele firmado ou duvidoso, esteja ele como estiver... Por isso, ter em mãos um livro de Antero de Quental é muito mais do que ter em mãos um mero livrinho de poesias: é ter em mãos um conjunto de instantâneos da alma de um homem. E de um grande homem!

* * * *

Sempre o futuro, sempre! e o presente
Nunca! Que seja esta hora em que se existe
De incerteza e de dor sempre a mais triste,
E só farte o desejo um bem ausente!

Ai! que importa o futuro, se inclemente
Essa hora, em que a esperança nos consiste,
Chega... é presente... e só à dor assiste?...
Assim, qual é a esperança que não mente?

Desventura ou delírio?... O que procuro,
Se me foge, é miragem enganosa,
Se me espera, pior, espectro impuro...

Assim a vida passa vagarosa:
O presente, a aspirar sempre ao futuro:
O futuro, uma sombra misteriosa.

* * * * *

Em vão lutamos. Como névoa baça,
A incerteza das cousas nos envolve.
Nossa alma, em quanto cria, em quanto volve,
Nas suas próprias redes se embaraça.

O pensamento que mil planos traça,
É vapor que se esvai e se dissolve;
E a vontade ambiciosa, que resolve,
Como onda entre rochedos se espedaça.

Filhos do Amor, nossa alma é como um hino
À luz, à liberdade, ao bem fecundo,
Prece e clamor dum pressentir divino;

Mas num deserto só, árido e fundo,
Ecoam nossas vozes, que o Destino
Paira mudo e impassível sobre o mundo.

** * * * *

DESESPERANÇA

Vai-te na asa negra da desgraça,
Pensamento de amor, sombra duma hora,
Que abracei com delírio, vai-te, embora,
Como nuvem que o vento impele... e passa.

Que arrojemos de nós quem mais se abraça,
Com mais ânsia, à nossa alma! E quem devora
Dessa alma o sangue, com que mais vigora,
Como amigo comungue à mesma taça!

Que seja sonho apenas a esperança,
Enquanto a dor eternamente assiste,
E só engane nunca a desventura!

Se em silêncio sofrer fora vingança!...
Envolve-te em ti mesma, ó alma triste,
Talvez sem esperança haja ventura!

* * * *

AMOR VIVO

Amar! Mas dum amor que tenha vida...
Não sejam sempre tímidos harpejos,
Não sejam só delírios e desejos
Duma douda cabeça escandecida...

Amor que viva e brilhe! Luz fundida
Que penetre o meu ser – e não só beijos
Dados no ar – delírios e desejos –
Mas amor... dos amores que têm vida...

Sim, vivo e quente! E já a luz do dia
Não virá dissipá-lo nos meus braços
Como névoa da vaga fantasia...

Nem murchará do sol à chama erguida...
Pois que podem os astros dos espaços
Contra uns débeis amores... se têm vida?

* * * *

MÃE...

Mãe – que adormente este viver dorido,
E me vele esta noite de tal frio,
E com as mãos piedosas ate o fio
Do meu pobre existir, meio partido...

Que me leve consigo, adormecido,
Ao passar pelo sítio mais sombrio...
Me banhe e lave a alma lá no rio
Da clara luz do seu olhar querido...

Eu dava o meu orgulho de homem – dava
Minha estéril ciência, sem receio,
E em débil criancinha me tornava,

Descuidada, feliz, dócil também,
Se eu pudesse dormir sobre o teu seio,
Se tu fosses, querida, a minha mãe!

* * * *

DIVINA COMÉDIA

Erguendo os braços para o céu distante
E apostrofando os deuses invisíveis,
Os homens clamam: - “Deuses impassíveis,
A quem serve o destino triunfante,

Porque é que nos criastes?! Incessante
Corre o tempo e só gera, inextinguíveis,
Dor, pecado, ilusão, lutas horríveis,
Num turbilhão cruel e delirante...

Pois não era melhor na paz clemente
Do nada e do que ainda não existe,
Ter ficado a dormir eternamente?

Porque é que para a dor nos evocastes?”
Mas os deuses, com voz inda mais triste,
Dizem: - “Homens! Porque é que nos criastes?”

* * * *

O QUE DIZ A MORTE

”Deixai-os vir a mim, os que lidaram;
Deixai-os vir a mim, os que padecem;
E os que cheios de mágoa e tédio encaram
As próprias obras vãs, de que escarnecem...

Em mim, os Sofrimentos que não saram,
Paixão, Dúvida e Mal, se desvanecem.
As torrentes da Dor, que nunca param,
Como num mar, em mim desaparecem.”

Assim a Morte diz. Verbo velado,
Silencioso intérprete sagrado
Das cousas invisíveis, muda e fria,

É, na sua mudez, mais retumbante
Que o clamoroso mar; mais rutilante,
Na sua noite, do que a luz do dia.