quarta-feira, 1 de novembro de 2006

da série: FILMES da 30a MOSTRA de CINEMA DE SP


"ADMIRAÇÃO MÚTUA"
[Mutual Appreciation, de Andrew Bajalski, EUA, 2006]. Esse é o tipo de filme que me dá vontade de me tacar pra dentro da tela, à la A Rosa Púrpura do Cairo, pra bater um papo, tomar uma breja e fumar um baseado com aquelas pessoas tão legais que acabei de conhecer... Rolou aquela simpatia imediata, aquela conexão, aquela identificação: ei, essas pessoas se parecem comigo, tem sentimentos que eu reconheço, tem vidas que não diferem muito da minha... E se eu pudesse pular pra dentro da tela e morar no mundo deles, que nem é tão diferente assim do meu, tenho certeza que poderia ser amigão deles. E quando o filme acabou e as luzes se acenderam, me despedi deles com aquela mistura de alegria por tê-los conhecido e de decepção por ter que me separar dessas pessoas tão cedo...

Sim, senhores, acabei de cometer um dos erros mais crassos que um crítico de cinema pode cometer: chamar os personagens de pessoas! Mas foi de propósito, e disse com o coração. Porque pra mim Alan, Allie e Lawrence, o trio de protagonistas de Admiração Mútua, são inegavelmente pessoas: chama-los de "personagens" é ofensa grave, quase xingamento; é reduzi-los a serem coisinha de mentira, criações da fantasia, marionetes sob comando de atores, quando eles simplesmente não podem ser só isso.

Porque esse filme transpira realidade de tal forma que eu olhava pra tela e não conseguia acreditar que o que estava diante dos meus olhos era uma representação, uma atuação ou algo montado artificalmente para ser filmado. Era a própria vida e as pessoas que as vivem, com suas hesitações e seus silêncios, com seus cotidianos banais e seus momentos de alegria besta, com seus tédios e seus papos e seus amores e suas lutas, que engasgam nas próprias falas, que por vezes não sabem o que dizer, que se acariciam com medo e que temem um amor que pode ser destruidor... Pessoas como eu e você, vivendo vidas como as nossas, que não tem lá muita aventura e explosões, mas que são isso, nossas vidas, tudo o que temos.

O filme todo parece um longo improviso. É quase impossível ficar com a impressão de que os atores pudessem estar só declamando frases decoradas. O filme está tão vivo e pulsante, as pessoas que ele registra tem reações tão verossímeis, e falam e interagem de um modo tão reconhecível, que em nenhum momento se transformam em personagens, em ficção, em engôdo: são pessoas. E eu admiro imensamente essa capacidade de fazer um filme em que não existe um só segundo, uma só cena, uma só fala, que soe como algo artificial ou ensaiado, decorado ou composto. Tudo em Amiração Mútua parece indicar uma câmera escondida olhando com seu olhar espião as vidas de pessoas que não tem idéia de que há uma câmera as registrando. Desde os grandes filmes de Mike Leigh - Segredos e Mentiras, Naked e Agora ou Nunca que eu não me sentia tão admirado com a habilidade de um cineasta na criação desse efeito de veracidade humana de seus... herrrr... "personagens".

Admiração Mútua é o quê? Um filme independente americano, filmado num pebê basicão, com formato de tela quadradão, por um diretor semi-iniciante que não tem muita grana pra gastar com efeitos especiais e produções glamourosas... E o veredito é: adorei sem nenhuma dúvida, sem nenhuma hesitação, empolgado feito criança no Natal - e já coloco esse filme no meu Top 50 FILMES DA MINHA VIDA, fácil fácil (p.s.: no começo do ano que vem, vou soltar um TOP 100 revisado e revisto... aguardem!). Porque esse filme é a minha cara.

É um filme sobre um músico independente tentando se sobressair no indie rock de Nova York e sendo auxiliado por seus amigos e conhecidos, vivendo uma aventurinha amorosa, um show indie toscos para um público de meia dúzia de gatos pingados, alguns episódios bizarros envolvendo bebedeiras e travestimentos... Sim, é isso, um filme sobre o cotidiano de jovens educados e meio blasés através de uma vida vagamente sem-sentido mas que consegue ser suficientemente divertida e digna de ser vivida. E, além disso, Admiração Mútua é essencialmente um filme sobre a amizade - e sobre como ela vence, e gloriosamente!, uma perigosa "ameaça de destruição".

Andrew Bujalski, que escreveu, dirigiu e atuou este seu segundo longa (o primeiro chama-se Funny Ha Ha e não foi lançado no Brasil), já pode muito bem se considerar inscrito na história do cinema indie americano. Bujalski não ficaria mal na companhia dos caras que mais marcaram época nos indie-movies-made-in-USA: Richard Linklater, Jim Jarmursch, Kevin Smith, Hal Hartley, Wes Anderson, entre outros. Só suspeito, depois de assistir e ser fisgado por Admiração Mútua, que seu talento possa ser maior do que o de qualquer um de seus predecessores.

Também está por aqui algo daquele espírito anárquico e improvisativo de John Cassavetes, um dos grandes heróis e messias do cinema indie americano em seus primórdios, mas de modo algum Brujalski pode ser chamado de um mero imitador ou plagiador. Admiração Mútua é sim puro Cassavetes (principalmente o de Faces e Shadows), mas um Cassavetes rejuvenescido e recriado...

Outras relações com mestres do cinema podem ser estabelecidas, meio que provando que Bujaswki é um perfeito movie-geek (ou nerd cinematográfico) que estudou muito bem a história da sétima arte e aprendeu todas as boas lições. O retrato de relacionamentos lembra a sensibilidade apurada e a sutilidade do mestre francês Eric Rohmer; os diálogos entrecortados e improvisados trazem à mente uma das características mais marcantes do Robert Altman (aquele lance de um monte-de-gente-falando-junto); o senso-de-humor (que flui deliciosamente bem, sem escracho, sem forçação) lembra alguns dos melhores momentos dum Woody Allen ou dum Kevin Smith... Mas no fundo Bajalski tem vida e estilo próprios e nasce como um dos grandes jovens cineastas americanos hoje vivos.

Alguns vão achar o filme muito "episódico", muito centrado em acontecimentos cotidianos meio banais, sem nada de espetacular acontecendo... Mas só é assim porque ele tenta representar a vida como ela é com toda a fidelidade possível. E é rasidão pensar que Admiração Mútua não passa de um amontoado de cenas legais sem um enredo que perpasse o todo como um fio condutor. Porque há porque aqui, sim, uma história - um conto moral, diria até! - e dos mais lindos. Essa é uma história sobre a amizade, e sobre como três amigos conseguem fazer com que ela sobreviva mesmo quando tinha tudo para explodir.

E eu acho adorável, absolutamente adorável, a maneira como esses personagens não deixam que nada prejudique a amizade que construíram. Admiração Mútua, pra mim, soa como uma história ultra-convincente de como a compreensão pode prevalecer sobre o ódio, como o alegre compartilhar pode prevalecer sobre o ciúme e sobre a possessividade, sobre perdão, acolhimento e camaradagem... Pra eles, a amizade conta mais que tudo e é ela que eles cultivam com a maior dedicação. Se Alan e Allie não chegam a se beijar uma única vez, mesmo que a admiração mútua e até a atração sexual fosse óbvia, é porque não desejavam destruir a amizade que tinham nem causar desavenças com Lawrence... Esses personagens, que saem de cena após um esquisito e adorável abraço grupal, são realmente amigos do peito demonstrando como é que no curso do dia a dia se faz para que essa amizade permaneça resistente e forte - e sendo tudo o que vale a pena.

( 10.0 / 10.0 )

LEIA MAIS: SITE OFICIAL - ROTTEN TOMATOES - LOS ANGELES TIMES - EFILM CRITIC - VARIETY - VILLAGE VOICE - STYLUS - CONTRACAMPO - CINÉTICA.

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Os outros filmes que eu vi na MOSTRA e não vou ter saco pra resenhar vão aí, com as devidas cotações de 0.0 a 10.0:

"MARY", de Abel Ferrara (EUA) - 7.8
"COMO EU FESTEJEI O FIM DO MUNDO", de xxx (Romênia) - 5.5
"O CHEIRO DO RALO", de Heitor Dhalia (Brasil) - 7.1
"AMOR MODERNO", de ALex Frayne (Austrália) - 5.9
"UMA VERDADE INCONVENIENTE", de David Guggeheim (EUA) - 7.5
"A SCANNER DARKLY", de Richard Linklater (EUA) - 5.8
"RÉQUIEM PARA BILLY THE KID", de Anne Feinsilber (França) - 6.9
"LEONARD COHEN: I'M YOUR MAN", de Lian Lunson (EUA?) - 6.7