sábado, 23 de junho de 2007

:: let's sail to the moon, baby ::


QUERER A LUA
ou
I'VE GOT A HEAD WITH WINGS



"O mal todo do romantismo é a confusão entre o que nos é preciso e o que desejamos. Todos nós precisamos das coisas indispensáveis à vida, à sua conservação e ao seu continuamento; todos nós desejamos uma vida mais perfeita, uma felicidade completa, a realidade dos nossos sonhos...

É humano querer o que nos é preciso, e é humano desejar o que não nos é preciso, mas é para nós desejável. O que é doentio é desejar com igual intensidade o que é preciso e o que é desejável, e sofrer por não ser perfeito como se se sofresse por não ter pão. O mal romântico é este: é querer a lua como se houvesse maneira de a obter.”



Eu já deveria ter aprendido, depois de tanto tombo e tanto choro, a ouvir o bom conselho: “olhe sempre para o chão onde pisa, meu filho, pra que veja toda pedra e buraco no caminho...” E de tanto andar por aí com a cabeça inclinada para o alto, tropeçando nos pedregulhos e sujando os tênis de lama, acabei acumulando pelo corpo essas cicatrizes e feridas... Ocupado demais cismando com planos de alçar vôo e decolar, ou perdido demais em devaneios, de amor ou de qualquer outra coisa, sempre enviava meus pés para um desagradável encontro súbito com um obstáculo ao chão, e lá me ia, voando, a me esborrachar no chão... E depois era aquela cachoeira de Mertiolate pra cima do joelho rasgado...

“...todos os atalhos do meu sonho vão dar a clareiras de angústia.”

Mas houve sim uma época em que tentei – tentei ser humilde e pequeno. Tentei me curar da praga da curiosidade e da mania má de sempre perguntar. Tentei parar de insistir em não entender nada – porque a verdade, não sei se algum dia contei a vocês, é que eu não entendo nada. Quis parar com isso. Abaixei minha cabeça, fitei o chão à frente dos meus passos e quis não querer saber dos outros mundos e do resto do universo, quis não sonhar com nada de melhor do que esse chiqueiro e esse pântano onde estou, quis aceitar a vida como ela vinha... Quis ser como um cãozinho, simples e sem segredos, que arrasta seu focinho no solo a vida inteira e só responde aos chamados básicos e fáceis de satisfazer: comida, fêmea, xixi, côco. Quis ser simples como essas tantas criaturas que se contentam com pouco - enquanto a mim o Universo inteiro não preenchia. Quis não precisar nem de Deus, nem de amor, nem de sentido... Quis não querer – mas não pude...

Quis ser como essa infinidade de criaturas terrenas que não ouvem nunca o chamado do Universo pra que ergam suas cabeças baixas e olhem, com os olhos arregalados de criança maravilhada com um espetáculo que não entende, para a enorme bizarrice onde estão afundadas. Quis ser como todos esses que nunca viram nem no Céu nem na Terra um imenso mistério que parece convidar, mesmo em seu silêncio imperturbável: “decifra-me!” Quis ser uma dessas espantosas criaturas que não se espantam com nada. Para elas tudo é normal e basta viver, deixando-se funcionar, como os relógios ou os motores se deixam funcionar. Eles, todos eles, que deixam a vida vivê-los ao invés de viverem a vida...

Quis ser como aqueles que parecem de nada precisar. Mesmo que não tenham amor, não sentem dele a falta, o anseio, a saudade... Mesmo não tendo a felicidade, se contentam com suas alegriazinhas miúdas e inconstantes, suas diversões insignificantes, suas humildes resignações a serem infelizes... Mesmo não tendo respostas, não se torturam com dúvidas tenebrosas, não colocam jamais em questão o sentido da vida e o nosso valor dentro do esquema das coisas - não cometem a tolice de se presentearem com perguntas sem resposta. Mesmo que vivam cada segundo rodeadas pelo Mistério, acham tudo absolutamente normal. E essa vida, esse mundo, e o fato de existir alguma coisa, e o fato de estarmos aqui, respirando e comendo, e de haverem sóis e estrelas, e galáxias e buracos negros, e o fato de termos nascido, e o fato de termos todos que morrer, não é tudo um imenso Mistério?...

Quis me acostumar ao mundo e ao viver, mas não consegui. Tudo isso é estranho de mais para que seja possível me acostumar. Continuo sem entender nada.

Quis também parar de imaginar outros mundos, mais encantadores, e outras vidas, mais felizes, e outros amanhãs, mais cantantes. Quis tacar pedras nas engrenagens da minha máquina produtora de sonhos para emperrá-la de vez... Porque eu oscilo entre ver na imaginação a maior das minhas aliadas e a mais terrível das minhas inimigas. Por um lado, é a imaginação aquilo que me permite experimentar imensas felicidades, e que não me parecem menos reais por serem imaginadas! Me invento um mundo só meu, onde sou rei e imperador, um universo confeccionado sob medida para atender a todos os meus desejos e necessidades, um filme onde tudo se desenrola de acordo com o script, um reino onde eu posso me divertir a brincar de Deus: fabrico tudo o que quero e preciso, crio, recrio e destruo ao meu bel-prazer. Meu crânio é o único local do Universo onde posso experimentar o sabor da Onipotência. Reconstruo o mundo como eu gostaria que ele fosse e faço ali o meu ninho, cheio de um calor e de um amor que no mundo não encontro, que pessoa alguma foi capaz de me dar – nem mesmo de tentar. Sinto dó de quem não sabe sonhar, não sabe estender os braços em direção ao Impossível, não sabe alçar vôo para longe deste mundo e fica aqui, prisioneiro do chão...

“Tenho mais pena dos que sonham o provável, o legítimo e o próximo, do que dos que devaneiam sobre o longínquo e o estranho. Os que sonham grandemente, ou são doidos e acreditam no que sonham e são felizes, ou são devaneadores simples, para quem o devaneio é uma música da alma, que os embala sem lhes dizer nada. Mas o que sonha o possível tem a possibilidade real da verdadeira desilusão. Não me pode pesar muito o ter deixado de ser imperador romano, mas pode doer-me o nunca ter sequer falado à costureira que, cerca das nove horas, volta sempre a esquina da direita. O sonho que nos promete o impossível já nisso nos priva dele, mas o sonho que nos promete o possível intromete-se com a própria vida e delega nela a sua solução. Um vive exclusivo e independente; o outro submisso das contingências do que acontece. Por isso amo as paisagens impossíveis e as grandes áreas desertas dos plainos onde nunca estarei.”

Mas, por outro lado, por vezes eu vejo que a Imaginação é como a cruz onde eu estou pregado, a pior inimiga que eu poderia ter, já que condena a Realidade, coitada, a sempre ter um certo gosto insosso, insatisfatório e decepcionante... Os maiores sonhadores são sempre os que estão mais expostos às grandes infelicidades: pois nunca se conformam por viverem em um mundo tão diferente daquele que desejam, que imaginam, que habitam, ao menos por momentos, quando se jogam de cabeça no Imaginário a ponto de até esquecerem que estão imaginando... E então me ocorre, frequentemente, reprovar as pessoas reais por serem terrivelmente decepcionantes quando contrapostas aos meu ideais, e xingar o mundo inteiro por ser a maior das frustrações comparado com aquele outro mundo que consigo me inventar...

“Os meus sonhos são um refúgio estúpido, como um guarda-chuva contra um raio.”

Talvez sonhar faça parte do viver, e talvez seja mesmo a melhor parte do viver, mas quem gostaria de viver sempre a sonhar? E sempre amar somente os próprios sonhos, e não a vida como é, o mundo como é e as pessoas como são? “Se a vida é decepcionante”, diria o Mestre, “talvez não seja culpa da vida, mas sim das esperanças que nela depositamos...”

Por enquanto, vivo só com o sonho de um dia deixar de sonhar, imaginando como seria poder amar esse mundo tão sem brilho e conseguir me afastar do parque de diversões da minha Imaginação...

Por enquanto, mesmo percebendo que para ser amado é preciso antes amar, e que para receber é preciso primeiro dar, me debato com o mistério de saber: como dar o que não tenho? Procuro achar a chave para entender como é possível isso: que amar seja dar o que não se tem...

Por enquanto, vivo nessa gangorra entre sonho e realidade, entre esperança e decepção, entre paixão e ódio, entre onipotência e completa indigência, entre a imensa necessidade de ser amado e a triste constatação de que amei em vão...

Sim, mamãe já me dizia: “ah, meu filho, traga de volta para a terra essa tua cabecinha alada! Deixe os planetas e os sóis para os astrônomos, as nuvens e os raios para os metereologistas, os deuses e os anjos para os teólogos, o mistério do universo e o sentido das coisas para os filósofos, as mulheres perfeitas para os poetas românticos, e fique, fique aqui, meu filho, fique aqui embaixo! Pois quem olha muito pro céu sempre acabada por tropeçar em pedras, cair em buracos e sujar os tênis de lama... Menino, você é criatura da terra: agarre-se à terra!”

E vocês acham que eu obedeci?!


(OBS: tudo em azulzinho saiu do Livro do Desassossego do F. Pessoa)